Noite de sono
rápido, sem tempo para alcançar a dimensão onírica. Às 3.30h da manhã tocava o
despertador. Quinze minutos depois, encontro com Valerie e Ferdinand e Hanuku e Bastien –
outro casal que se adentrou no meu coração. Ela, japonesa, fizera voluntariado
em Cusco, onde conheceu Bastien. Um jovem de origem francesa que vagueava pela
América Latina há pelo menos um ano. Muito amorosos entre si, partilhando
cigarros de erva de meia em meia hora... Planeavam viajar uma
temporada pelo Japão para que o francês – a quem só escutei espanhol; pareceu-me que
renegava o país e a língua materna – conhecesse a família nipónica. Quanto
tempo aí se demorariam: uma incógnita para um viajante sem destino como
Bastien.
Noite cerrada e
demorada. As lanternas escorriam um fio de luz que guiava os passos ainda
ensonados. Às 4.30h juntámo-nos aos muitos que preteriram o autocarro (dez
dólares dá que pensar...) que saía de quinze em quinze minutos de Aguas
Calientes até às bilheteiras da cidade perdida.
Os portões que
davam acesso ao trilho ascendente abriram meia hora depois. Uma fila de gente
recomeçou energicamente o caminho sob uma bruma tão misteriosa quanto a cidade
perdida que nos estava cada vez menos remota. O magnetismo crescia, ao mesmo
tempo que a humidade se entranhava nos ossos daqueles que subiam degraus
perenes. A distância entre os visitantes também ia crescendo. Afastamento que
se esbateu totalmente na entrada de Machu Picchu. Éramos os primeiros
visitantes do dia. O meu bilhete incluía a visita guiada pelo Nico entre as
seis e as sete e meia da manhã, a subida à montanha Machu Picchu e claro,
algumas horas por entre as ruínas incas.
Pouco depois
das seis, o grupo escutava, sentado, o que se conhece da cidade Machu Picchu.
Sílabas do tempo, em relação às quais não me era fácil focar de forma plena o
sentido da audição. Os meus olhos estavam por detrás de Nico, vidrados na névoa
que pairava sobre os canhões escarpados. À medida que os minutos se esfumavam,
os primeiros raios de sol, tímidos, tentavam penetrar na neblina que se ia
dissipando... lentamente. Aspirava prolongar o máximo que me era possível as
cinco horas que me eram permitidas vaguear pelos vestígios mais famosos e
enigmáticos da civilização Inca.
Feita a
apresentação do santuário, a visita deslocou-se pelas escadarias, terraços, templos
e casas da cidade, culminando, para mim, no observatório solar. Aí, a memória
transportou-me à infância. Os desenhos animados – As misteriosas cidades de
ouro – que me estimularam desde miúda o desejo de conhecer o vôo do condor.
Mal sabia eu que um mês depois estaria no lugar onde eles arquitectam os seus
ninhos e se dão à estampa.
Às sete e meia,
o grupo reunia-se rodeando Nico. Os aplausos, a ‘propina’ por todo o seu
empenho e entrega total durante os cinco dias que nos guiou, acompanhou e
partilhou o seu conhecimento e experiência. Muito obrigada, Nico! E muito
obrigada ao grupo. Nesse momento dispersávamos para fruir talvez pela única vez
(falo por mim, o mundo é tão grande...) de tão emblemático lugar.
Vagueei,
toquei, cheirei, escutei, tentando captar a magia que sentia entranhar-se em
cada poro do meu ser. Só depois resolvi subir à Montanha Machu Picchu.
Demorei cerca
de uma hora pela escadaria de sentidos. Uau! Uau! Uau! E mais umas quantas
expressões interiores de espanto, assombro e regozijo. Escutava sobretudo
palavras que ratificavam o sentimento que me vem envolvendo com cada vez maior
frequência. Sentia-me grata pela condição física, pelas pernas fortes que me
permitiam subir e subir e continuar a subir. Sentia-me grata pelos olhos que
podiam contemplar uma paisagem tão grandiosa. Sentia-me grata por estar e ser
apenas, e tanto, num lugar que arrebatava a totalidade do meu ser.
Quando os pés
finalmente alcançaram o último degrau: Uau! Uau! Uau! Estou mesmo aqui? Muito
obrigada!
Após mais uma
fotografia para o meu futuro eu, sentei-me durante pelo menos meia hora no topo
do mundo – a minha percepção. Apreciei, respirei profundamente várias vezes. O
meu olhar varria tudo o que lhe era possível, para assim guardar no coração um
dos lugares mais belos onde tive o privilégio de estar... de ser. Muito
obrigada!
Claro que
depois de subir, há que descer – como quase tudo na vida. E foi então que o
cansaço dos últimos dias se fez sentir nos joelhos, não tão estranhamente,
inseguros. As escadas pareciam, então, muito mais perigosas e difíceis. Diz o
provérbio que a descer todos os santos ajudam. Ali ajudariam, certamente, a
rolar que nem uma bola de neve, desintegrando cada pedaço, cada osso. Por
conseguinte, mantinha-me alerta, descendo cada nível com o cuidado e atenção
que me eram possíveis nessa hora do dia, já bem longo.
Quando me
sentei no comboio de regresso a Cusco, as lágrimas, há
muito reprimidas, começaram a fluir languidamente. Terminava, enfim, uma das
experiências mais bonitas que alguma vez vivi. Ah... como estou/sou grata por
cada dia que me é concedido viver... assim!
Fevereiro, 2016
Matosinhos,
Portugal
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