“Do the things on a whim” – o Todd, na sua maneira de ser e
estar. Rimo-nos durante toda a tarde com o Ron. Convidaram-me para me juntar a
eles para jantar. Gostaria muito, mas tinha outro compromisso. Em Copacabana,
no regresso de barco da Ilha do Sol, conversei com a Rennie, alemã; mais uma
viajante solitária. As duas horas de conversa queriam prolongar-se para lá
daquela cidade do lago. A Rennie também tinha como destino seguinte a capital
da Bolívia. Trocámos e-mails e combinámos jantar nesse dia. O encontro ficou
marcado em frente à catedral. Mais valia ter-me juntado aos dois homens. Até à
visita guiada, eu desconhecia a existência de duas catedrais em La Paz. O
encontro com a Rennie redundou em desencontro.
Para além das duas catedrais existem muitos locais de culto
religioso. Os bolivianos têm lutas interiores quanto às doutrinas, se mais ou
menos pagãs, se mais ou menos católicas. Todavia, tal como no Peru, o
catolicismo impera, pelo menos aparentemente. Observei muitas pessoas a
benzerem-se sempre que passavam em frente, ao lado ou atrás de uma igreja ou
afim.
Todos os que buscam a verdade falam a mesma linguagem.
Rendi-me à linguagem visual. Quando disse ao Todd que desejava ir a Arica para
sentir o aroma do deserto: “No way! Aí não vais ver nada. Se queres pisar o
deserto, tens de ir a San Pedro de Atacama”. Digamos que nesta fase eu estava
muito permeável à sua opinião. Ligou o Ipad e mostrou-me fotografias belíssimas
dos flamingos do Salar de Tara. Tão belas que sonhei toda a noite com o
deserto.
No dia seguinte à visita, eu e o Todd tomámos o
pequeno-almoço juntos. Ambos nos preparávamos para a aventura sobre duas rodas
na Estrada da Morte. Reserváramos em agências diferentes. Ele pagou mais do que
eu. Cerca de dez euros a mais que fizeram toda a diferença. Saí antes dele, às oito
e meia da manhã; entrei no albergue eram quase dez e meia da noite. O Todd e o
Ron na sala de estar, mostrando cuidado pela minha hora tardia. O Todd chegara
às quatro da tarde. Esperavam-me ansiosos para partilharmos as experiências.
A minha aventura em BTT começou a 4600 metros. Num planalto
próximo da cidade, o grupo de ‘bttistas’ – éramos doze, no grupo do Todd eram
três: mais uma diferença que fez toda a diferença – no qual estava incluída,
vestiu-se a rigor. Protecções nos joelhos e cotovelos por cima dos fatos de
motoqueiros e com capacete à prova de (quase) tudo. Uma hora e meia depois de
chegarmos ao ponto de partida, de muitas fotografias e de experimentarmos as
bicicletas, seguimos estrada fora. Primeiro na via comum aos carros. Uma
via-rápida ou similar sempre a descer com a adrenalina ao rubro. Dos meus
companheiros apenas eu andava de bicicleta regularmente e de BTT era única.
Desde logo esse facto fez de mim a mais pró, a mais arrojada (sem presunção e
água-benta). Aquela que seguia colada ao guia da frente e à maior velocidade
possível; a permitida pelo vento contra.
Ao fim de mil metros a descer, eu e o guia esperávamos há
quase dez minutos pelo resto do grupo. Uma das raparigas deu um tralho. Nada de
grave, felizmente para ela e para nós. O único transtorno foi o facto da moça
ter ganho algum receio, o que provocou mais esperas ao longo do percurso.
Sempre a descer... até que fizemos uma pausa para um lanche que me soube a
almoço. Um ovo estrelado dentro de um pão muito saboroso, complementado com
bolo de chocolate. Não admira que à chegada ao aeroporto Sá Carneiro eu fosse
eu mais quatro ou cinco quilos nas pernas e no rabo.
Quando baixámos aos três mil metros, o cenário mudou. A
estrada de alcatrão deu lugar à famosa estrada de gravilha onde morreu muita
gente. Não é de espantar. Com pouco mais de dois metros de largura com ravinas
atrás de ravinas, os carros tinham de seguir à vez quando se deparavam com
outros no sentido inverso. Frequentemente, esse encontro era mais do que
terceiro grau e o carro que fazia a curva por fora acabava fora de estrada... barranco
abaixo.
Essa parte do percurso foi naturalmente muito mais
exultante. Como a estrada está encerrada aos veículos a motor, era ver-nos por
ali a abaixo a toda a velocidade, rodeados de montanhas com vegetação
luxuriante e sob um céu azul exuberante. Disso o Todd não desfrutou. Como o seu
grupo era de apenas três pessoas, desceram em corrida competitiva. Em vez das
cinco horas que o meu grupo demorou, o seu fez a descida em acto contínuo. Sem
esperas, sem demoras, sem quedas. Sempre a abrir. O nosso também ia sempre na
esgalha, mas com muitas paragens para as fotografias a partilhar nas redes
sociais e não só, claro. Até porque esta aventura dificilmente se repetirá e
tinha de ficar gravada para além da experiência sensorial. Valeu bem a pena. Desfrutámos
da paisagem única, dos cheiros únicos, das sonoridades únicas e de uma
borboleta única.
Uma borboleta azul índigo com pelo menos cinco centímetros
de diâmetro. Os meus olhos pararam a bicicleta e ali vislumbrei uma tatuagem
que retratasse aquela borboleta singular no fundo das costas. Nada melhor que
uma borboleta – azul – para me lembrar a metamorfose constante do meu ser e da
vida e das asas que quero abrir até que o corpo me doa. Ainda – ainda! – não
fiz a tatuagem. Não é uma prioridade. É oneroso e no dia em que escrevo estou
de viagem marcada: para a Colômbia.
Eram quatro da tarde quando as bicicletas se estacionaram para
bebermos uma cerveja, enquanto os guias e o motorista lavavam as bicicletas.
Uma hora ou mais e nós esgazeados de fome. O programa das festas incluía um
mergulho na piscina no local do almoço. Só queríamos o almoço antes da hora do
jantar. Dispensei a piscina. O frio dos mil metros e do fim de tarde era um
arrepio no corpo. Preferi um duche enquanto esperávamos pelo ‘almoço’.
O duche foi outra aventura, não tão fascinante. Não havia
água! Ou a que corria era escassa. Saía pelo chuveiro aos bochechos. Toda nua,
esperei pela água quase dez minutos. Um fio de água... fria. Ensaboei-me e
esperei outro tanto por mais uma fiada de gotas geladas. Nada a fazer. Quando
chegasse ao albergue tomaria um banho decente: os meus devaneios antes das sete
da tarde, hora em que os pés se instalaram debaixo da mesa para jantar. Frango,
a refeição esmerada para o grupo. Eu aguardei por uma omeleta deliciosa. Não
era só apetite, estava com efeito muito boa.
Para onde vais? Vou para a festa, respondem as raparigas
todas contentes. De onde vens? Exauridas, as mesmas moças dizem num suspiro:
venho da festa... Foi assim que o nosso grupo se acomodou na carrinha e quase
todo adormeceu durante as duas horas de caminho até ao centro da cidade.
Passava das dez da noite quando dei de caras com o Todd e o
Ron. “Então, pensávamos que te tinha acontecido alguma coisa!” O Todd não se
evitou: “estás a ver; paguei mais, mas...”
E saímos os três para mais uma aventura em La Paz. Não sei
onde fui buscar energia. A essa hora o meu estômago berrava por mais qualquer
coisinha e eles como que estariam à minha espera para jantar. Eu agradeci o seu
cuidado e sem hesitar acompanhei-os. Eu e Ron dividimos uma sande vegetariana
assistida por um mojito. Em Cuba sê
cubano. A música ao vivo era cubana e estimulava os sentidos. Só faltou dançar.
Isso foi depois. Ou quase.
De regresso ao albergue, parámos à porta de um bar com
música em partilha para quem passasse na rua. Sentimo-nos convidados; subimos
as escadas. A música era chamativa, mas apenas para nós. A única pessoa que ali
se encontrava era o funcionário, um homem jovem. Estava completamente
estatelado num dos sofás vermelhos e não nos ouviu chegar. E não nos ouviu a
abrir o frigorífico para sacar cervejas. E não nos ouviu tirar fotografias à
sua volta e a rir às gargalhadas com a situação mais caricata até ao momento.
Os meus olhos eram um rio de lágrimas de tanto rir. As fotografias do Ron ainda
hoje me provocam o riso.
Como três pessoas honestas que vamos aprendendo a ser,
aquilo que apreciamos deve ser retribuído. Escrevemos um bilhete ao rapaz que
deixámos no balcão com a quantia que nos parecia adequada para as bebidas.
A nossa borga foi interrompida, não pelo sonolento, mas por
um colega que entrava pasmado, sabe-se lá porquê. O outro despertou muito
estremunhado sem saber onde estava. Obrigaram-nos a pagar o dobro do que
honestamente deixáramos. Apresentámos o nosso argumento, mas não foram em
cantigas. E não discutimos. Afinal estávamos tão divertidos. Quando descemos à
rua, mais uma fotografia à porta que pedimos a um grupo de três jovens que
passava. Quiseram juntar-se na memória fotográfica.
O Todd e o Ron ainda vagueiam pela América Latina. O
primeiro está na Venezuela para apreciar o fenómeno das trovoadas contínuas. O
Ron em Buenos Aires... Até já Todd e Ron. Muito obrigada pelo riso e pela
partilha em La Paz!
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