A estrada da morte - parte II









“Do the things on a whim” – o Todd, na sua maneira de ser e estar. Rimo-nos durante toda a tarde com o Ron. Convidaram-me para me juntar a eles para jantar. Gostaria muito, mas tinha outro compromisso. Em Copacabana, no regresso de barco da Ilha do Sol, conversei com a Rennie, alemã; mais uma viajante solitária. As duas horas de conversa queriam prolongar-se para lá daquela cidade do lago. A Rennie também tinha como destino seguinte a capital da Bolívia. Trocámos e-mails e combinámos jantar nesse dia. O encontro ficou marcado em frente à catedral. Mais valia ter-me juntado aos dois homens. Até à visita guiada, eu desconhecia a existência de duas catedrais em La Paz. O encontro com a Rennie redundou em desencontro.
Para além das duas catedrais existem muitos locais de culto religioso. Os bolivianos têm lutas interiores quanto às doutrinas, se mais ou menos pagãs, se mais ou menos católicas. Todavia, tal como no Peru, o catolicismo impera, pelo menos aparentemente. Observei muitas pessoas a benzerem-se sempre que passavam em frente, ao lado ou atrás de uma igreja ou afim.
Todos os que buscam a verdade falam a mesma linguagem. Rendi-me à linguagem visual. Quando disse ao Todd que desejava ir a Arica para sentir o aroma do deserto: “No way! Aí não vais ver nada. Se queres pisar o deserto, tens de ir a San Pedro de Atacama”. Digamos que nesta fase eu estava muito permeável à sua opinião. Ligou o Ipad e mostrou-me fotografias belíssimas dos flamingos do Salar de Tara. Tão belas que sonhei toda a noite com o deserto.
No dia seguinte à visita, eu e o Todd tomámos o pequeno-almoço juntos. Ambos nos preparávamos para a aventura sobre duas rodas na Estrada da Morte. Reserváramos em agências diferentes. Ele pagou mais do que eu. Cerca de dez euros a mais que fizeram toda a diferença. Saí antes dele, às oito e meia da manhã; entrei no albergue eram quase dez e meia da noite. O Todd e o Ron na sala de estar, mostrando cuidado pela minha hora tardia. O Todd chegara às quatro da tarde. Esperavam-me ansiosos para partilharmos as experiências.
A minha aventura em BTT começou a 4600 metros. Num planalto próximo da cidade, o grupo de ‘bttistas’ – éramos doze, no grupo do Todd eram três: mais uma diferença que fez toda a diferença – no qual estava incluída, vestiu-se a rigor. Protecções nos joelhos e cotovelos por cima dos fatos de motoqueiros e com capacete à prova de (quase) tudo. Uma hora e meia depois de chegarmos ao ponto de partida, de muitas fotografias e de experimentarmos as bicicletas, seguimos estrada fora. Primeiro na via comum aos carros. Uma via-rápida ou similar sempre a descer com a adrenalina ao rubro. Dos meus companheiros apenas eu andava de bicicleta regularmente e de BTT era única. Desde logo esse facto fez de mim a mais pró, a mais arrojada (sem presunção e água-benta). Aquela que seguia colada ao guia da frente e à maior velocidade possível; a permitida pelo vento contra.
Ao fim de mil metros a descer, eu e o guia esperávamos há quase dez minutos pelo resto do grupo. Uma das raparigas deu um tralho. Nada de grave, felizmente para ela e para nós. O único transtorno foi o facto da moça ter ganho algum receio, o que provocou mais esperas ao longo do percurso. Sempre a descer... até que fizemos uma pausa para um lanche que me soube a almoço. Um ovo estrelado dentro de um pão muito saboroso, complementado com bolo de chocolate. Não admira que à chegada ao aeroporto Sá Carneiro eu fosse eu mais quatro ou cinco quilos nas pernas e no rabo.
Quando baixámos aos três mil metros, o cenário mudou. A estrada de alcatrão deu lugar à famosa estrada de gravilha onde morreu muita gente. Não é de espantar. Com pouco mais de dois metros de largura com ravinas atrás de ravinas, os carros tinham de seguir à vez quando se deparavam com outros no sentido inverso. Frequentemente, esse encontro era mais do que terceiro grau e o carro que fazia a curva por fora acabava fora de estrada... barranco abaixo.
Essa parte do percurso foi naturalmente muito mais exultante. Como a estrada está encerrada aos veículos a motor, era ver-nos por ali a abaixo a toda a velocidade, rodeados de montanhas com vegetação luxuriante e sob um céu azul exuberante. Disso o Todd não desfrutou. Como o seu grupo era de apenas três pessoas, desceram em corrida competitiva. Em vez das cinco horas que o meu grupo demorou, o seu fez a descida em acto contínuo. Sem esperas, sem demoras, sem quedas. Sempre a abrir. O nosso também ia sempre na esgalha, mas com muitas paragens para as fotografias a partilhar nas redes sociais e não só, claro. Até porque esta aventura dificilmente se repetirá e tinha de ficar gravada para além da experiência sensorial. Valeu bem a pena. Desfrutámos da paisagem única, dos cheiros únicos, das sonoridades únicas e de uma borboleta única.
Uma borboleta azul índigo com pelo menos cinco centímetros de diâmetro. Os meus olhos pararam a bicicleta e ali vislumbrei uma tatuagem que retratasse aquela borboleta singular no fundo das costas. Nada melhor que uma borboleta – azul – para me lembrar a metamorfose constante do meu ser e da vida e das asas que quero abrir até que o corpo me doa. Ainda – ainda! – não fiz a tatuagem. Não é uma prioridade. É oneroso e no dia em que escrevo estou de viagem marcada: para a Colômbia.
Eram quatro da tarde quando as bicicletas se estacionaram para bebermos uma cerveja, enquanto os guias e o motorista lavavam as bicicletas. Uma hora ou mais e nós esgazeados de fome. O programa das festas incluía um mergulho na piscina no local do almoço. Só queríamos o almoço antes da hora do jantar. Dispensei a piscina. O frio dos mil metros e do fim de tarde era um arrepio no corpo. Preferi um duche enquanto esperávamos pelo ‘almoço’.
O duche foi outra aventura, não tão fascinante. Não havia água! Ou a que corria era escassa. Saía pelo chuveiro aos bochechos. Toda nua, esperei pela água quase dez minutos. Um fio de água... fria. Ensaboei-me e esperei outro tanto por mais uma fiada de gotas geladas. Nada a fazer. Quando chegasse ao albergue tomaria um banho decente: os meus devaneios antes das sete da tarde, hora em que os pés se instalaram debaixo da mesa para jantar. Frango, a refeição esmerada para o grupo. Eu aguardei por uma omeleta deliciosa. Não era só apetite, estava com efeito muito boa.
Para onde vais? Vou para a festa, respondem as raparigas todas contentes. De onde vens? Exauridas, as mesmas moças dizem num suspiro: venho da festa... Foi assim que o nosso grupo se acomodou na carrinha e quase todo adormeceu durante as duas horas de caminho até ao centro da cidade.
Passava das dez da noite quando dei de caras com o Todd e o Ron. “Então, pensávamos que te tinha acontecido alguma coisa!” O Todd não se evitou: “estás a ver; paguei mais, mas...”
E saímos os três para mais uma aventura em La Paz. Não sei onde fui buscar energia. A essa hora o meu estômago berrava por mais qualquer coisinha e eles como que estariam à minha espera para jantar. Eu agradeci o seu cuidado e sem hesitar acompanhei-os. Eu e Ron dividimos uma sande vegetariana assistida por um mojito. Em Cuba sê cubano. A música ao vivo era cubana e estimulava os sentidos. Só faltou dançar. Isso foi depois. Ou quase.
De regresso ao albergue, parámos à porta de um bar com música em partilha para quem passasse na rua. Sentimo-nos convidados; subimos as escadas. A música era chamativa, mas apenas para nós. A única pessoa que ali se encontrava era o funcionário, um homem jovem. Estava completamente estatelado num dos sofás vermelhos e não nos ouviu chegar. E não nos ouviu a abrir o frigorífico para sacar cervejas. E não nos ouviu tirar fotografias à sua volta e a rir às gargalhadas com a situação mais caricata até ao momento. Os meus olhos eram um rio de lágrimas de tanto rir. As fotografias do Ron ainda hoje me provocam o riso.
Como três pessoas honestas que vamos aprendendo a ser, aquilo que apreciamos deve ser retribuído. Escrevemos um bilhete ao rapaz que deixámos no balcão com a quantia que nos parecia adequada para as bebidas.
A nossa borga foi interrompida, não pelo sonolento, mas por um colega que entrava pasmado, sabe-se lá porquê. O outro despertou muito estremunhado sem saber onde estava. Obrigaram-nos a pagar o dobro do que honestamente deixáramos. Apresentámos o nosso argumento, mas não foram em cantigas. E não discutimos. Afinal estávamos tão divertidos. Quando descemos à rua, mais uma fotografia à porta que pedimos a um grupo de três jovens que passava. Quiseram juntar-se na memória fotográfica.
O Todd e o Ron ainda vagueiam pela América Latina. O primeiro está na Venezuela para apreciar o fenómeno das trovoadas contínuas. O Ron em Buenos Aires... Até já Todd e Ron. Muito obrigada pelo riso e pela partilha em La Paz!





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