Exquisito - Machu Picchu IV






O silêncio brilhava. O dia estendia-se até aos cumes nevados. Às cinco da manhã despertávamos para o pequeno-almoço ‘exquisito’ – a palavra preferida de Isidora – a chilena do grupo que me provocava uma espécie de saudade do futuro.
No relâmpago de um instante, o amanhecer. Farrapos de luz: o fogo no céu mesclado com o azul eléctrico envolveu-me como um halo.
Sensações inéditas alastravam-se levianamente pelo meu corpo: “Nico, preciso caminhar mais devagar... estou-me a sentir muito tonta...” Ofegava. Via estrelas a desenharem um crocodilo no ângulo do olho direito. As pálpebras mexiam-se num movimento discreto, entre o pavor e a incredulidade. Estaria eu preparada para atingir os quase cinco mil metros de altitude? A voz tranquila num sorriso de Verão acalmou o meu receio: “Cada um pode ir ao seu ritmo...”

Retomei o caminho com alguma solenidade – as montanhas e vales que me rodeavam requeriam uma reverência de veludo. Consegui. O orgulho fugaz de uma principiante ficou registado na fotografia da praxe – para o meu futuro eu, uma memória visual a comprovar: 4600 metros, lia-se na placa do ponto mais alto do Salkantay trekking.
Uma perigosa obsessão conduziu-me sozinha pelo trilho até uma lagoa verde, muito verde, no meio dos montes secos e áridos varridos pelo vento. Vinte minutos que me atrasaram do grupo. Ficar para trás não foi um acaso: deste modo, Sebastião – um dos rapazes portugueses – teve alguém que lhe segurasse a testa no início da descida. Esse sim, estava num estado crítico – as ervas recebiam resquícios das entranhas do jovem português.


A magia não se perdeu. De todo! Éramos apenas os dois no trilho, com o guia um pouco mais à frente, escutando assim o vento a roçar na vegetação cada vez menos rasa. Lentamente, as botas faziam um inventário de cada passo inesquecível pelo ‘sendero’ misterioso, até ao acampamento seguinte.
Ao terceiro dia, o cenário era irreconhecível. Chegámos a uma floresta semi-tropical polvilhada de borboletas e borboletas multicolores e animada pelo canto das aves e aves exóticas.
O calor infligiu alguns estragos na força anímica do grupo: o odor do namorado de Melissa, o australiano Mathew, era implacável. Na pausa para o almoço, as belgas e a chilena foram ostensivas: sentaram-se o mais longe possível do rapaz.
Escutei em português a indignação de Melissa e a justificação: Mathew só levara duas t-shirts e a água fria não convidava ao duche. Eu escolhi pagar dez soles e tomei duche de água quente... O programa dessa tarde salvou-nos o olfacto: tarde nas hotsprings. Três piscinas de água quente no meio dos Andes – o grupo desfrutou com incontida satisfação a temperatura perfeita para a recuperação do esforço inabitual.

Sair da água revelou-se, contudo, uma experiência irrepetível ou pelo menos muito, muito rápida: em segundos, para além do fato de banho vermelho, o meu corpo vestia uma camada de insectos facínoras, frenéticos, furiosos e fatais. Ganhei um novo visual: pontos róseos por todo o corpo.
Foi já em Aguas Calientes, no dia seguinte, que partilhei uma fotografia na rede social. Mostrava, orgulhosa, os antebraços com as picadas dos mosquito. Os comentários que logo recebi reportavam-se, no entanto, a outros elementos decorativos: as pulseiras que habitavam os meus pulsos. Eram várias e duas delas eram novinhas em folha; presentes desse quarto dia enquanto passeava com Valerie e o Ferdinand pela vila. Um casal de alemães com quem a empatia se desenvolveu desde a primeira hora pelos longos trilhos até Machu Picchu. Valerie presenteou-nos com uma pulseira: pedras vermelhas e pretas – as cores protectoras dos Andes, escutáramos. O modo que encontrámos para nos recordarmos desses cinco dias extraordinários e ‘exquisitos’.
Foi na véspera de subirmos à cidade perdida. Terminávamos mais um dia de caminhada, dessa feita, pelos carris que ladeiam o rio Urubamba até Aguas Calientes: a vila turística com gente de todo o mundo. Só a escola primária, de onde se escutavam as crianças a cantar e a brincar me fez duvidar da natureza do lugar. As lojas de artesanato, os cafés, os restaurantes, hotéis, albergues – tudo me levava a crer que me encontrava num não-lugar – recorro mais uma vez à expressão de Marc Augé. O antropólogo desenvolve este conceito reportando-se essencialmente ao aeroportos. Espaços de transição e passagem, a partir dos quais nos deslocamos de um lado para outro: a sensação que me transmitia Aguas Calientes. Edgar, o guia de outro grupo com quem nos íamos cruzando ao longo do ‘sendero’, despertou-me dos devaneios: “Hola Ana!!”; “Hola Edgar!” Numa das ruas da vila: “Te regalo con esta brazalete”. Oferecia a pulseira de artesanato andino, dizia ele à medida que dava três nós para me proteger nos Andes. Nessa vila, fiquei ainda mais ‘protegida’ uma hora depois.
Entrei numa loja de acessórios para comprar um brinco em forma de pena para a minha querida cunhada M. Sei que são os seus preferidos. O proprietário, Marco – de nome espiritual e de curandeiro Sara (acho que era este, confesso que nem sempre compreendo a minha letra... e este é o caso) – convidou-me a entrar e a sentar-me à medida que ia questionando numa voz serena e muito macia a minha data de nascimento, cor preferida e outras coisas associadas ao esoterismo. Informações que gravou para então manufacturar um brinco. Escolheu não uma, mas duas penas azul índigo com veios vermelhos, uma pedra turquesa (para libertar a garganta), uma pedra de quartzo (para os sete chacras), e duas pedras vermelhas e uma preta (para a tal protecção). Sentados na sua mesa de trabalho, as suas mãos trabalhavam com minúcia o arame com um alicate, ao mesmo tempo que me ia explicando o poder dos diversos elementos. Um brinco que usei durante muito tempo e com o qual faço quase sempre um brilharete – pelo menos assim interpreto os comentários que se lhe tecem.


Ao final do dia o jantar de grupo, onde Nico nos providenciou o pequeno-almoço embalado para a manhã seguinte. O despertar seria às 3.30h da madrugada para aqueles que desejassem subir a pé até à entrada da cidade perdida: o local de encontro até às seis da manhã... 




Fevereiro, 2016
Matosinhos, Portugal

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