O silêncio brilhava.
O dia estendia-se até aos cumes nevados. Às cinco da manhã despertávamos para o
pequeno-almoço ‘exquisito’ – a palavra preferida de Isidora – a chilena do
grupo que me provocava uma espécie de saudade do futuro.
No relâmpago de
um instante, o amanhecer. Farrapos de luz: o fogo no céu mesclado com o azul
eléctrico envolveu-me como um halo.
Sensações
inéditas alastravam-se levianamente pelo meu corpo: “Nico, preciso
caminhar mais devagar... estou-me a sentir muito tonta...” Ofegava. Via estrelas
a desenharem um crocodilo no ângulo do olho direito. As pálpebras mexiam-se num
movimento discreto, entre o pavor e a incredulidade. Estaria eu preparada para
atingir os quase cinco mil metros de altitude? A voz tranquila num sorriso de
Verão acalmou o meu receio: “Cada um pode ir ao seu ritmo...”
Retomei o
caminho com alguma solenidade – as montanhas e vales que me rodeavam requeriam
uma reverência de veludo. Consegui. O orgulho fugaz de uma principiante ficou
registado na fotografia da praxe – para o meu futuro eu, uma memória visual a
comprovar: 4600 metros, lia-se na placa do ponto mais alto do Salkantay trekking.
Uma perigosa
obsessão conduziu-me sozinha pelo trilho até uma lagoa verde, muito verde, no
meio dos montes secos e áridos varridos pelo vento. Vinte minutos que me
atrasaram do grupo. Ficar para trás não foi um acaso:
deste modo, Sebastião – um dos rapazes portugueses – teve alguém que lhe segurasse a testa no início da
descida. Esse sim, estava num estado crítico – as ervas recebiam resquícios das
entranhas do jovem português.
A magia não se
perdeu. De todo! Éramos apenas os dois no trilho, com o guia um pouco mais à frente,
escutando assim o vento a roçar na vegetação cada vez menos rasa. Lentamente,
as botas faziam um inventário de cada passo inesquecível pelo ‘sendero’
misterioso, até ao acampamento seguinte.
Ao terceiro
dia, o cenário era irreconhecível. Chegámos a uma floresta semi-tropical
polvilhada de borboletas e borboletas multicolores e animada pelo canto das
aves e aves exóticas.
O calor
infligiu alguns estragos na força anímica do grupo: o odor do namorado de
Melissa, o australiano Mathew, era implacável. Na pausa para o almoço, as
belgas e a chilena foram ostensivas: sentaram-se o mais longe possível do rapaz.
Escutei em
português a indignação de Melissa e a justificação: Mathew só levara duas t-shirts e a água fria não convidava ao
duche. Eu escolhi pagar dez soles e tomei duche de água quente... O programa
dessa tarde salvou-nos o olfacto: tarde nas hotsprings.
Três piscinas de água quente no meio dos Andes – o grupo desfrutou com
incontida satisfação a temperatura perfeita para a recuperação do esforço inabitual.
Sair da água
revelou-se, contudo, uma experiência irrepetível ou pelo menos muito, muito
rápida: em segundos, para além do fato de banho vermelho, o meu corpo vestia
uma camada de insectos facínoras, frenéticos, furiosos e fatais. Ganhei um novo
visual: pontos róseos por todo o corpo.
Foi já em Aguas
Calientes, no dia seguinte, que partilhei uma fotografia na rede social.
Mostrava, orgulhosa, os antebraços com as picadas dos mosquito. Os comentários
que logo recebi reportavam-se, no entanto, a outros elementos decorativos: as
pulseiras que habitavam os meus pulsos. Eram várias e duas delas eram novinhas
em folha; presentes desse quarto dia enquanto passeava com Valerie e o
Ferdinand pela vila. Um casal de alemães
com quem a empatia se desenvolveu desde a primeira hora pelos longos trilhos
até Machu Picchu. Valerie presenteou-nos com uma pulseira: pedras vermelhas e
pretas – as cores protectoras dos Andes, escutáramos. O modo que encontrámos
para nos recordarmos desses cinco dias extraordinários e ‘exquisitos’.
Foi na véspera
de subirmos à cidade perdida. Terminávamos mais um dia de caminhada, dessa
feita, pelos carris que ladeiam o rio Urubamba até Aguas Calientes: a vila
turística com gente de todo o mundo. Só a escola primária, de onde se escutavam
as crianças a cantar e a brincar me fez duvidar da natureza do lugar. As lojas
de artesanato, os cafés, os restaurantes, hotéis, albergues – tudo me levava a
crer que me encontrava num não-lugar – recorro mais uma vez à expressão de Marc Augé. O antropólogo desenvolve este
conceito reportando-se essencialmente ao aeroportos. Espaços de transição e passagem,
a partir dos quais nos deslocamos de um lado para outro: a sensação que me
transmitia Aguas Calientes. Edgar, o guia de outro grupo com quem nos íamos
cruzando ao longo do ‘sendero’, despertou-me dos devaneios: “Hola Ana!!”; “Hola
Edgar!” Numa das ruas da vila: “Te regalo con esta brazalete”. Oferecia a
pulseira de artesanato andino, dizia ele à medida que dava três nós para me
proteger nos Andes. Nessa vila, fiquei ainda mais ‘protegida’ uma hora depois.
Entrei numa
loja de acessórios para comprar um brinco em forma de pena para a minha querida
cunhada M. Sei que são os seus preferidos. O proprietário, Marco – de nome
espiritual e de curandeiro Sara (acho que era este, confesso que nem sempre
compreendo a minha letra... e este é o caso) – convidou-me a entrar e a
sentar-me à medida que ia questionando numa voz serena e muito macia a minha
data de nascimento, cor preferida e outras coisas associadas ao esoterismo.
Informações que gravou para então manufacturar um brinco. Escolheu não uma, mas
duas penas azul índigo com veios vermelhos, uma pedra turquesa (para libertar a
garganta), uma pedra de quartzo (para os sete chacras), e duas pedras vermelhas
e uma preta (para a tal protecção). Sentados na sua mesa de trabalho, as suas
mãos trabalhavam com minúcia o arame com um alicate, ao mesmo tempo que me ia
explicando o poder dos diversos elementos. Um brinco que usei durante muito
tempo e com o qual faço quase sempre um brilharete – pelo menos assim
interpreto os comentários que se lhe tecem.
Ao final do dia
o jantar de grupo, onde Nico nos providenciou o pequeno-almoço embalado para a
manhã seguinte. O despertar seria às 3.30h da madrugada para aqueles que
desejassem subir a pé até à entrada da cidade perdida: o local de encontro até
às seis da manhã...
Fevereiro, 2016
Matosinhos,
Portugal
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