No deserto da Guajira

Guajira...

O viajante encerrado num enfermo, para sempre sedentário, interessa-se pela morte. Esta representa uma partida. Escrevia o Adriano de M. Yourcenar. Não era o caso quando viajava num jipe de caixa semiaberta, desde Ubira para Cabo la Vella.
Deserto da Guajira. Os cabelos longos das raparigas a eriçaram-se pelo vento temperado de areia dourada eram uma prova de vida. 
As cores e os sorrisos registavam-se nas fotografias dos engenhos electrónicos. Fundamental guardar para a posteridade os rostos alegres e as cabeças descabeladas, como diziam os colombianos que com as quatros jovens europeias se aventuravam no deserto.
Esforcemo-nos por entrar na morte de olhos bem abertos. A morte estava esquecida, estando sempre presente pela sua inevitável possibilidade em qualquer instante. Ainda assim, foi um acaso não haver vítimas mortais na noite seguinte à chegada a Cabo la Vella. Dois carros chocaram de frente na estrada improvisada, sem luz artificial. As estrelas que povoavam o céu não foram suficientes para iluminar os dois condutores em estado de sonolência. Hospitalizados, os dois, com muitas e graves fracturas. A noite no deserto é traiçoeira, desqualificando qualquer às do volante.
A notícia do acidente chegou à hora do jantar. Patacon com arroz e salada para a vegetariana e lagosta acabada de pescar para as restantes europeias. Arihana, Raquel e Delphine. As três vivendo na Colômbia por uma larga temporada.  Os laços de sangue são frágeis na ausência de afectos. Os que ligam as três de língua francesa são os de amizade. A facilidade de comunicação estimulou o rápido crescimento e fortalecimento dos laços entre as jovens. Amigas que se escolheram. Vidas distintas, com caminhos diversos, que entretanto se cruzaram, acolhendo-se. 
Como a mim, acabada de chegar de Rioacha para entrar no mesmo jipe que sairia de Uribia. "Também és portuguesa" - em português. Ao fim de três semanas na Colômbia, escutava pela primeira vez português pela voz de Raquel, de origem portuguesa; os pais portugueses emigrantes em Paris. A mulher de trinta e quatro anos vive há três meses neste lado do oceano com o objectivo de aprender espanhol in loco. O modo que a empresa da qual se despediu (em comum acordo; estava cansada (!) e com vontade de mudar de vida...) encontrou para dotar a comunicadora social de mais habilitações. Raquel agradeceu!
A ligação pelo idioma e perspectivas comuns contribuíram fortemente para que a outra francesa, a Arihana, e a belga, Delphine, naturalmente me incluíssem no grupo. Passámos a ser quatro mulheres jovens. Isso é naturalmente relativo. 

É comum que a idade cronológica entre os viajantes não se questione. Irrelevante. Essa informação assome quando o tema da conversa está impregnado de questões acerca do como é que a vontade de deixar tudo aconteceu? Porque viajas... Desde quando... Porque deixaste o teu país... O pronome possessivo entre muitos viajantes tende a anular-se à medida que os meses avançam numa velocidade vertiginosa.
Em vertigem nos sentimos ao aproximarmo-nos de Cabo la Vella. Uma pequena povoação piscatória, onde o mar e o deserto se mesclam. A junção é de tal modo promíscua que os olhos duvidam da realidade da beleza assombrosa. 
O poço vai aumentando de profundidade à medida que nos afundamos na temporalidade risível. As horas deixam de fazer sentido. São como o relógio com o ponteiro das horas danificado. Só contam os minutos e os segundos. Assim se desconecta da realidade alheia. 
O céu azul reflectindo-se no mar, a fonte de inspiração. Flamingos e pelicanos apontando para outras perspectivas, quem sabe mais reais. Os olhares emocionados desvendando lágrimas de gratidão. A riqueza aumentava em cada instante de partilha. 
A subida até ao Pilon de Açúcar foi em silêncio. Quebrou-se no topo para fotografar as lusófonas junto ao pequeno santuário com a imagem da senhora de Fátima. A santa portuguesa tem devotos em toda a Guajira. Terá sido ela quem salvou os exploradores que atracaram na hoje denominada província de Rioacha, onde a fé pela senhora é ainda mais visível.
Antes de descermos o monte da devoção, Arihana presenteou-nos com o som da gaita de Cartagena. Um instrumento tradicional da cidade do Caribe. Um dos elementos de estudo para a sua dissertação de doutoramento. Razão pela qual voou desde Nice para a Colômbia. 
O final do primeiro dia foi contemplando o pôr-do-sol no farol de Cabo la Vella. Yo quiero bailar contigo, a banda sonora dos colombianos que também se deslocaram até à enseada para se deslumbrarem com o sol que não chegou a tocar o horizonte.
Quem está em Cabo la Vella não resiste a abrir os cordões à bolsa para tocar e cheirar a ponta mais a norte América do Sul: Punta Gallinas. Ao nosso grupo juntaram-se cinco jovens. Paola, colombiana, e dois casais. Um de instrutores de esqui nos Alpes franceses. A temporada de férias (a sua) quer-se prolongada, desta vez na Colômbia. O outro casal confirma a precariedade crescente das fronteiras. Ela, sul-africana, casada com um alemão. Conheceram-se de mochila às costas no Vietname e assentaram arraiais - mas pouco - na cidade europeia mais cosmopolita (pelo menos para mim) - Amsterdão.
Entre o português, francês e o inglês, era o espanhol que dominava com a banda sonora que animava o grupo. Cantando as travessuras sem nos podermos conter, as risotas aumentavam com os solavancos no jipe. O meu cóccix terminou essa semana num estado miserável, mas feliz. Hola bebé calou-se quando o jipe se atolou na areia. Os cactos alinhavam-se ao longo do caminho feito estrada. As pedras ajudaram o guia que se empenhava sem desanimar. A boa-disposição gravada em fotografias para memórias futuras. 
O grupo de nove pessoas ia partilhando experiências de viagens, de vidas profissionais antes estáveis para outras com propósitos maiores. Como a de Delphine. Belga da parte da mãe, nascida nos EUA, após alguns anos em Londres com a irmã regressou a Bruxelas. A cidade da União Europeia não a cativou e após um ano de testes foi seleccionada. Vive em Barrancabermeja. A mais quente e das mais pobres cidades colombianas. Vale a pena pela missão. É observadora de uma ONG. Com outros voluntários tenta que os direitos humanos sejam com efeito postos em prática. 

Despelucadas, as mulheres cantavam e bailavam com Enrique Iglesias. A respiração foi cortada quando, no silêncio, os flamingos esvoaçaram pintando de cor-de-rosa o céu muito azul. O fogo no coração ardeu ainda mais com o sol sobre as dunas de cem metros acima do nível do mar,  desafiando as então novamente crianças a rolarem até ao mar. 
A água cálida banhou as coxas e os troncos brancos que contrastavam com os braços e rostos bronzeados. Espraiados na areia escutávamos os mergulhos dos pelicanos que fisgavam o almoço. O nosso foi em Punta Gallinas a meio da tarde. Patacon com salada e arroz para a vegetariana e postas de peixe enormes e muito frescas para o resto do grupo. 
No farol da ponta mais a norte do continente mais musical e alegre (para quem escreve), o sol espalhava o dourado de despedida pelo mar sem ondas. Silêncio...

As palavras voltaram cantando mais uma travessura bebé no regresso ao alojamento  nessa ponta emblemática. Das hamacas, apreciou-se o céu nocturno de lua nova: um quadro luminoso. As constelações expunham sem filtros mitos e arquétipos da humanidade.
Como Ibn Battuta, aquele que não viaja não conhece o valor dos homens. Vale a pena acrescentar que quem não viaja não sente a abundância amorosa da Natureza. Por isso, faço como Buda: caminho, caminho sempre!




30 de Junho, 2015

Villa de Leyva, Colômbia 

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