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Solidariedade*





O dia 6 de Agosto é internacionalmente dedicado à Solidariedade (o dia de aniversário do Tio Zé Alberto - o benjamim dos Nunes Pereira; aproveito para o felicitar).
Ciente das minhas limitações, questiono-me amiúde acerca do mundo que me rodeia e em que vivo, acerca dos seres humanos com quem me cruzo e com quem interajo e me relaciono de modo mais ou menos próximo.
Apesar da fragilidade do que vou publicando, e admitindo que poderia aprofundar mais, acredito e confio que a partilha de determinadas ideias e até mesmo anseios pode suscitar, pelo menos, alguma reflexão por parte dos leitores. Por conseguinte arrisco no tema da solidariedade.
Comecei por perguntar a diversas pessoas o que compreendem por solidariedade e se se consideram pessoas solidárias. As respostas foram várias, o que sugere um entendimento diferenciado do conceito. Não obstante, todas detinham um ponto em comum: a ideia de partilha.
Segundo um dicionário, a solidariedade é o sentimento que leva a prestar auxílio a alguém; é a responsabilidade recíproca entre os elementos de um mesmo grupo (social, profissional, institucional ou de uma comunidade); é a adesão ou apoio a uma causa, a um movimento ou princípio; pode ser também o sentimento de partilha do sofrimento alheio.
De acordo com outro dicionário, a solidariedade é um acto de bondade com o próximo ou um sentimento, uma união de simpatias, interesses ou propósitos entre os membros de um grupo; é a cooperação mútua entre duas ou mais pessoas; é a interdependência entre seres...
Quanto aos sinónimos, entre outros encontram-se os seguintes: ajuda, amparo, apoio, companheirismo, interdependência.
Cooperação, interdependência, partilha, reciprocidade - elementos inerentes à ideia de solidariedade.
Quando agimos e vivemos em cooperação, estamos atentos às necessidades dos outros. Nesse agir, é mais do que frequente que recebamos ajuda alheia para alcançar os nossos próprios intentos. Mais do que isso, é usual que, em situações de competitividade, a cooperação seja fundamental para o melhor cumprimento de objectivos mútuos, ainda que pessoas ou empresas ou instituições ou clubes, etc., sejam concorrentes entre si.
A interdependência pressupõe que estamos todos dependentes uns dos outros. Por mais independentes que aparentemente sejamos, é indubitável que sozinhos (quase) nada possamos fazer, que sozinhos (quase) nada possamos ser. Sendo certo que as circunstâncias em que nos encontramos em cada instante decorrem do contributo de muito mais pessoas (e instituições) do que aquelas que conhecemos. Motivo pelo qual, aliado ao conceito de solidariedade, está, inevitavelmente, o sentimento de gratidão. Pelo menos para mim.
Adicionalmente, não há como descartar o facto de sermos todos, sem excepção, seres vivos da mesma Natureza. Cada ser vivo tem o seu papel e função no ecossistema do qual faz parte, influenciando e sendo influenciado por outros seres vivos. E cada ecossistema interage no seu todo com todos os outros ecossistemas, de forma mais ou menos visível, mais ou menos intensamente. As repercussões são incalculáveis, são intangíveis. Depreende-se ‘apenas’ que as vidas estão todas ligadas, que estamos todos ligados, que dependemos todos, sem excepção, uns dos outros.
A reciprocidade surge, assim, de forma natural, como natural poderia ser partilhar todos os bens materiais e imateriais que nos estão disponíveis. Sim, disponíveis hoje, mas não necessariamente amanhã. Parecem ser ‘nossos’ hoje, mas a posse, não só é relativa, como momentânea e, com frequência, até aparente.
É neste contexto que a solidariedade pode ser vivida de forma contínua, sem pensar, sem hesitar. Basta que estejamos um pouco atentos para, em momento algum, nos esquecermos que se alguém necessita de ajuda, esse mesmo alguém poderíamos ser nós próprios. E se alguém está a passar por uma situação difícil, é possível que também nós ou uma pessoa que nos seja muito querida venha a passar por algo semelhante. E mesmo que tal, aparentemente, seja totalmente improvável, que importância tem isso?
Relevante é o facto de alguém estar a precisar de ajuda e, estando nós mais ou menos próximos, com mais ou menos capacidade para intervir, tenhamos pelo menos o cuidado de olhar para a pessoa de forma compassiva, de forma empática.
Por vezes, para ser solidário basta olhar, sem desviar o rosto, sem desviar a atenção. Basta reconhecer que o outro é um prolongamento de nós próprios... E isso, sem dúvida, faz toda a diferença!


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Na pele de um rinoceronte



Posso tocar? O cuidador anuiu. Não hesitei. A pele do rinoceronte bebé era muito mais dura, muito mais grossa e, ao mesmo tempo, muito mais macia do que imaginava.

O dorso cinzento da cria de nove meses era uma camada protectora forte. O relevo das marcas na pele jovem era tão suave como o seu olhar - quando se desviava dos ramos e folhas para perscrutar a sua observadora.

Saltitei, deslumbrada como se tivesse seis anos, na sua direcção logo que o avistei. A indiferença do animal selvagem surpreendeu-me. Talvez por estar entretido na sua ruminação, como se meditasse. Sentado a seu lado, um homem de cabelo preto recentemente pintado, com olhos rasgados no seu rosto tisnado pelo sol nepalês: o seu cuidador. Informou-me quase no final do encontro. Ah... Até aí ignorava a razão da sua presença, tão-pouco a utilidade da cana de bambu à sua frente e menos ainda o esforço que aparentava fazer para não a usar.

Tenderi estava ferido. Caiu na casa (?), justificou o homem, sem tirar os olhos do telemóvel. Vi sangue em várias partes do corpo. Uma ferida no focinho, uma ferida numa pata, duas feridas no dorso, uma outra numa perna. O jovem animal continuava a intrigar-me. Não parecia nada de grave, mas tendo em conta que os rinocerontes órfãos ficam sob cuidado humano até aos três anos, antes de regressarem à selva - neste caso, para o parque nacional de Chitwan -, presume-se que seja para estarem protegidos dos grandes predadores e outros perigos.

Foi Raj Indra, o guia do sítio onde me hospedei, que me deu a saber a origem do jovem Tenderi. Durante a conversa com o seu cuidador, se é que se pode considerar conversa (as poucas palavras que aprendi em nepalês eram insuficientes para aprofundar o assunto), não me foi possível perceber que o rinoceronte bebé era órfão. Na verdade, a proximidade que me permitiu tocá-lo, sentir a sua pele, escutá-lo e observar a sua boca ruminante, emocionou-me ao ponto de ficar confusa quanto à causa das lágrimas que tentei reprimir. Os olhos húmidos resultavam da alegria da minha criança e da tristeza pelo eventual (?) sofrimento da 'criança' rinoceronte.

O guia atenuou parte da angústia causada por aquele encontro. Pelo menos existem alguns cuidados em relação às crias que perdem os seus progenitores. Pelo que percebi, esta é uma forma de os proteger de grandes predadores, como o leopardo, uma das espécies que vivem naquela área protegida.

Na manhã seguinte, durante o passeio ao amanhecer: outro bebé, outro toque, outra emoção, mais angústias. Um elefante bebé. Outro cuidador que o trazia a passear, como se de um animal de estimação se tratasse. Também senti a pele desta cria, cuja reacção me fez novamente transbordar. O som que emitia era uma novidade, uma espécie de guincho, dando-me a sensação de que estaria a gostar e queria mais (ou talvez fosse o que a minha criança queria acreditar).

Mas o seu cuidador estava com pressa e tive de me contentar em passar a mão por um minuto. E que minuto... Os pêlos negros da pele cinzenta esbatiam a sua rugosidade. Enquanto a mão se movia, tentando agarrar as sensações, para mais tarde as transpor em palavras, o cérebro processava as novidades que o tacto lhe providenciava. A memória deste sentido ficou ainda mais rica.

A minha criança deslumbrava-se.

Não obstante, a pessoa que em mim habita ficava ainda mais em cuidado. Aquele jovem elefante, como muitos outros em Chitwan e outras partes do mundo, estava a ser domesticado, a fim de ser mais um dos entretenimentos para os milhares de visitantes do Parque Nacional.

Pergunto-me se, pelo menos por algum momento, se, pelo menos um ou outro visitante se tenta colocar na pele de um rinoceronte ou de um elefante... quando se deixa passear em cima da sua pele...


15 e 18/04/2018
Chitwan, Nepal
Nova Déli, Índia

O banho dos elefantes


 O banho dos elefantes é uma das atracções de Sauraha, uma das vilas que dá acesso ao Parque Nacional de Chitwan, Nepal. São inúmeras as agências turísticas que oferecem uma série de actividades aos visitantes. Caminhadas de um ou vários dias na selva, passeios de jipe na selva ou até ao lago 20000, passeios de canoa, passeios nocturnos, a pé ou de jipe, noites na torre - presume-se que numa das muitas torres de militares, aqueles que fazem a vigilância do parque nacional -, observação de aves, passeios de elefantes e banhos dos elefantes.

Aluguei uma bicicleta e ontem pedalei até ao lago 20000, onde subi a uma das tais torres de madeira e tecto de alumínio azul. Os seus dois andares têm um impacto discreto na paisagem. O mesmo não se pode dizer das garrafas de plástico à beira-lago, tão-pouco do pó que engoli antes de me sentar num dos bancos providenciados para a contemplação.

 Entre a bilheteira e o parque de estacionamento percorri cerca de cinco quilómetros em terra batida na companhia de um militar, com quem ia trocando impressões acerca de Portugal e Nepal. O cheiro a queimado era resultado de um incêndio recente provocado por algum fumador distraído. Ali, na floresta de Chitwan. A conversa ia sendo interrompida pelo motor e o pó dos jipes, o que me obrigou a lavar o cabelo à chegada a casa.

 Contemplei os muitos verdes das águas e da vegetação em torno do lago, melhor dizendo, lagos. Os diversos leitos de água faziam adivinhar dezenas, não milhares de pequenos lagos. Um local também apreciado pelos mais jovens, a ver pelos pares amorosos que ali se encontravam a passear. Também duas famílias nepalesas desfrutavam do lugar.

 No regresso a Sauraha, cruzei-me com muitos nepaleses deslocando-se bicicleta, sendo abordada inúmeras vezes com um sorriso acompanhado de Namastê. Não era a única estrangeira, mas os poucos que escolhem a bicicleta para conhecerem as redondezas faziam de mim uma atracção local. Os óculos de lentes azuladas e espelhadas também cativavam as crianças sorridentes e curiosas.

 Nas proximidades da vila ultrapassei vários elefantes transportando algumas pessoas no seu dorso. Tão altivas que não tinham como vislumbrar, só assim entendo a sua opção, o olhar tão pesado, quanto triste dos animais. A sensação que tive foi a de que a sua angústia era proporcional ao seu tamanho. Mas o olhar dos turistas não terá captado o rio perdido dos seus transportadores.

 Quando, hoje, me dirigia para o lugar onde os elefantes vão a banhos, não sabia o que ia ver. No dia em que cheguei, Raj Indra, um dos funcionários e guia do hostel, conduziu-me por um curto passeio pelas redondezas, assinalando-me à distância este local, informando-me a hora estipulada para o efeito: onze da manhã.

Passava-me pela cabeça que seriam às dezenas, os maiores mamíferos terrestres no rio, dado o número de locais que oferecem os seus serviços. Durante o caminho observava uma espécie de discurso interior, como que a preparar-me psicologicamente: muito bem, pelo menos levam os pobres animais ao rio; talvez assim se sintam um pouco livres dos seus deveres.
 Qual quê!

Ainda era cedo, dez e pouco, quando alcancei a margem do rio e vi três elefantes. Imagino que o número tenha subido ao longo da manhã. Em cima de cada um deles, estavam outros animais, os humanos. Nem ali os trombudos estavam em paz. Pelo contrário, eram estimulados - espicaçados, melhor dizendo, com um pau - para molharem os humanos com as suas trombas, à laia de mangueira.



 Os grandes paquidermes tinham a pele manchada, parecia gasta e doente. Perguntava-me se as escovas seriam adequadas para aquela pele sem a sua camada de lama protectora face aos raios solares. Acredito que em Chitwan essa protecção seja necessária, uma vez que a cor avermelhada do sol, aquando das suas fases nascente e poente, confirma os elevados níveis de poluição.

 Sentei-me debaixo da palhota com cerca de dois metros de largura e cinco de cumprimento. Insuficiente para a plateia que chegara com antecedência.

Ao meu lado, uma jovem turista perguntava ao seu guia se este iria ao banho, com um dos elefantes. Ele respondeu com a mesma questão. A jovem loira de olhos azuis parecia na dúvida. Talvez estivesse céptica quanto à qualidade das águas. O fraco caudal - estamos em meados de Abril - aguarda o início da monção para recuperar deste clima mais quente e seco. O verde acastanhado era pouco convidativo, pelo menos para esta estrangeira. Mas à beira rio adivinhava-se uma fila de gente a querer saltar para as costas dos elefantes e assim levar com a sua tromba... de água. Escutava a conversa de ambos com curiosidade e até expectativa. O guia dizia à moça que podia tomar banho quando lhe apetecesse, enquanto que ela teria ali a sua oportunidade... única.

Engoli em seco as palavras que voaram numa voz doce e num inglês não nativo, tentando captar traços de ironia: "eu gostava de te ver a tomar banho com o elefante". Sim senhora, um dois em um. O maior animal terrestre, aqui domesticado (na melhor das hipóteses), subjugado aos caprichos dos turistas e a dar banho ao guia local. Uma bela fotografia para postar nas redes sociais.

Não consegui esperar pelo ponto alto do espectáculo circense. Ainda que não tenha poder para evitar este tipo de prática, o facto de estar aqui implica-me o suficiente para, pelo menos, partilhar este texto, ao mesmo tempo que reflicto acerca dos meus próprios comportamentos e atitudes, questionando-me: como posso eu contribuir para um mundo um pouco mais justo, um pouco mais
amoroso e mais sustentável?...


12/04/2018
Chitwan, Nepal




Viagem à Índia III – cinco anos depois




Em Agosto de 2017, cinco anos depois de passar cerca de um mês em Pune, Índia, decidi voar novamente para esse subcontinente. Num tempo sem contrários e sem adiar por muito mais o futuro, a escolha recaiu sobre Nova Deli.
Foram necessários mais de dois meses para romper o cerco e finalmente consumar a compra. Nesse período em que vivi uma espécie de suspensão, confirmei a vontade de voltar a caminhar decidindo o primeiro destino, ao mesmo tempo que esperava o resultado de um exame médico de uma pessoa muito querida. Tranquila e segura, comprei a viagem. A partida será em Fevereiro de 2018. Curioso, é o facto de nessa altura perfazer cinco anos que terei aterrado em Melbourne, sob um céu azul luminoso, onde a temperatura cálida me salvou do frio invernal do Porto. Igualmente estranho, para mim, é o facto de ter sido em Fevereiro, mas de 2012, que fui pela primeira vez à Índia – Goa. Também nessa época, os 32º centígrados foram um aconchego, ainda que por apenas dez dias. De Mumbai, só conheço o aeroporto (razoavelmente bem, dado o número de horas à espera das ligações, sobretudo no regresso de Pune, onde perdi o avião...).
Se porventura as frases anteriores soam pretensiosas, os elementos expostos servem apenas para reforçar a ideia de que, pese embora seja a terceira vez que me aventuro sozinha para esse país, é-me difícil afirmar que conheço a Índia. Pelo contrário, Pune e Goa são duas cidades particulares e as experiências aí vividas foram em ambientes assépticos e muito cuidados pelas pessoas e entidades que me receberam.
Assim, mesmo que um dos critérios de selecção dos países a visitar seja a ausência de entradas, repito-me no destino, sem saudades do futuro. Ainda que, e há que dizer, a Índia não esteja na minha lista do ‘tenho de fazer’ antes de morrer.
Muita informação no parágrafo anterior, eu sei. Uma lista? De quantos itens? Quais as categorias incluídas nessa lista? Antes de morrer?
Ora bem... desde 2013 que elaboro uma lista de experiências a viver, lugares a visitar, pessoas a conhecer... antes de morrer. Como diria um amigo, antes de transitar, como diria outro amigo, antes de tudo acabar. Como diriam os budistas, antes de deixar esta vida (a quinquagésima?) ... vulgo, antes de ir desta para melhor, ou pior... antes de me tornar húmus!
Antes de tudo baixar e antes que o tempo me ganhe (ou não), estarei a voar. Será no dia 1 de Fevereiro, para Nova Deli – um destino que não constava naquela lista. O meu rol de lugares imperdíveis é, aliás, bem reduzido. São duas regiões – enormes – que quero experienciar antes de morrer, sabendo que todos os países que me são desconhecidos têm, quase de certeza, o seu encanto. A questão está relacionada com o tempo que me resta de vida. Pelo menos esta – no caso de haver outras, então vamos lá. Mas como não sei se existe alguma coisa para além da morte, quero viver o melhor possível, enquanto me é possível.
Calma! Não faço a mínima ideia de qual o prazo de validade deste corpinho, onde esta consciência habita, mas hoje pode ser o último dia viva e de boa saúde. Não é um chavão! Para mim, é evidente que para morrer basta estar viva. A morte é, seguramente, a única certeza que tenho nesta vida, sempre em mudança, impermanente. Assim sendo, repito-me: quero viver o melhor que sei e que posso, antes que o vazio me preencha e o silêncio me cale.
Estando de boa saúde, com alguns trocos no bolso (ainda que apenas o suficiente, mas o suficiente tem sido suficiente), comecei a sentir que estaria a criar ‘raízes’, como brincam os meus companheiros da Quinta. Cheguei do Rio de Janeiro no dia 25 de Setembro de 2016! Apesar de já ter voado (para a Madeira), não saio de Portugal há um ano, um mês e onze dias. Em Fevereiro, essa soma será muito mais avultada. Não é ironia, é uma necessidade de conhecer, de aprender, de desinstalar rotinas, de reinventar os dias, de crescer... cá dentro. É, talvez, uma insatisfação insaciável, mas de quê? Ainda não sei. Só sei que preciso aprender... como quem precisa repousar. E quero fazer a minha parte, quero fazer o que está ao meu alcance para, contrariamente à personagem Palomar, de Italo Calvino, sentir que a minha vida foi mais do que uma sucessão de ocasiões falhadas.
E então, porquê Índia, porquê Nova Deli? Pois bem. Os dois destinos na minha lista primordial são os Himalaias e a Patagónia, com a Terra do Fogo. No que ao segundo destino concerne, as sementes foram lançadas desde que optei por regressar a Portugal. Aliás, quando viajei para o Rio de Janeiro o ano passado, a mala ia preparada com a mochila para prosseguir viagem. Não obstante, depois de quase quatro meses a trabalhar para os Jogos Olímpicos sentia-me exaurida. Já para não dizer, confesso, que ‘morria’ de saudades dos meus amores e ainda não conhecia a minha ‘pseudo-sobrinha’ mais nova, nascida enquanto eu estava na terra do Samba. De maneira que, é verdade, adiei ir à Argentina. De qualquer modo, viajar por viajar também não é o meu registo, tão-pouco o de obter mais um carimbo no passaporte. Poucos dias depois de ter assentado arraiais (mas pouco, já se vê) comecei a envidar esforços (ainda não reconhecidos, ainda!) para ser chamada para Buenos Aires.
Enquanto isso não acontece... a vida não pára e o tempo é o meu maior tesouro. Daí que o queira desfrutar do modo que me parece mais adequado. E nesta fase pressinto que é apropriado agradecer a vida que me é concedida, glorificando-a, nomeadamente, indo até ao outro local que mais gostaria de visitar: o Tibete. Em concreto, realizar um trekking nos Himalaias. Pelo que me vou informando – estou a iniciar o trabalho de casa –, para entrar no Tibete e para aquele objectivo, é fundamental integrar um grupo autorizado, cuja saída é, geralmente, de Katmandu.
Nepal era o destino que tinha em mente. Nepal e Tibete, vá. Quando comecei a verbalizar esta minha vontade, uma das companheiras da Quinta perguntou-me: “E porque não ir para Katmandu, via Nova Deli? Já viste os preços? Costumam ser muito mais económicos...”
Aceitei a sugestão depois de pesquisar. De facto, a viagem é menos um terço do valor. Dava que pensar. E dá que pensar que no dia em que escrevo, já com o bilhete comprado para Nova Deli, as escolas da cidade indiana tenham sido todas fechadas... devido aos níveis de poluição. Dá que pensar.


A opção foi reflectida. Muito. Houve várias coisas a ponderar e até por que esperar. No dia em que fiz o clique para efectuar a compra, tudo me parecia possível. Continua a parecer. E ter em conta a distância de um dia desde essa megacidade até ao Taj Mahal, e ter em conta que terei oportunidade de rever pessoas que conheci noutros lados do mundo, e ter em conta que em Varanasi, de onde pretendo tomar o comboio para Katmandu, terei oportunidade de ir à margem do Rio Ganges, e ter em conta que terei finalmente a ocasião de conhecer parte desse subcontinente, faz-me acreditar que terá sido, é, será, uma resolução deveras interessante e, porque não dizê-lo, desafiante.
Será que um mês no norte da Índia é suficiente?

8 de Novembro, de 2017
Porto, Portugal

PS1: Para além das duas viagens mencionadas, só tenho mais três itens na minha lista: viver uma experiência, conhecer um escritor que muito aprecio e conversar com uma pessoa... talvez um dia destes.
PS2: As fotos aqui partilhadas ainda! não são ‘minhas’.





Fotografia de um instante*



Há palavras que nos tocam como beijos de uma criança.
Há sons que nos adentram como o abraço da avó.
Há cores que se espalham tão brilhantes que nos iluminam o caminho.
Há gestos simples que, de tão subtis, se sentem como uma leve brisa de Primavera à beira-mar.
Há bebidas tão suaves, que nos alimentam tanto como um fausto jantar.
Comecei deste modo, a propósito da obra “A quinta dos animais”, inicialmente traduzida para português como “O triunfo dos Porcos”. A sua publicação remonta a 17 de Agosto de 1945. Um livro da autoria de George Orwell que me tocou profundamente. Há palavras que continuam (e continuarão) a reverberar em mim. A parábola do autor é, na minha perspectiva, uma metáfora muito actual. Actual em demasia, diria até. Em particular quando se resgata o último dos princípios instituídos pelos animais. Um princípio adulterado pelos porcos que se encarregaram de liderar, de forma totalitária, os restantes animais em revolta contra os proprietários da Quinta do Infantado: “Os animais são todos iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Na sua origem, o mandamento era ‘apenas’: “Os animais são todos iguais”.

O que resta da essência da Política? Aquela que se reportava à organização de uma cidade-estado, a cidade dos cidadãos. Quando os cidadãos que a ‘administram’ se posicionam como mais iguais do que os outros, com mais direitos do que aqueles a quem, em teoria, estão a servir...
Servir ou controlar. Como noutra obra tão ou mais emblemática do mesmo autor: “1984”. O fictício (?) ‘grande irmão’ é de tal ordem visível na sua ‘invisibilidade’ aparente, que a distopia publicada em 1949 continua a ser fonte de fervorosos debates. Actualmente, quando se pára para reflectir um pouco – neste tema, nem sequer é necessário aprofundar o nível de reflexão –, é facilmente perceptível que não existe (quase) nada que escape ao controlo e escrutínio alheio.
Se parte da responsabilidade é individual, uma grande parte é totalmente incontrolável e mesmo desconhecida do comum dos mortais. Só quando nos detemos em determinados pormenores (só na aparência) despiciendos é que nos ocorre questionar: Como diabo é que isto veio aqui parar? Como diabo se sabe que estou aqui ou acolá a fazer isto ou a comprar aquilo?
Dá que pensar...
As teorias da conspiração – se é que são teorias e se é que são conspirativas – deixaram, no entanto, de ser uma fonte de ‘pre-ocupação’ para mim. Há muito que compreendi que não tenho controlo sobre quase nada, tão-pouco sobre a minha própria privacidade. Desisti de me incomodar. Guardo a energia para dimensões mais relevantes e enriquecedoras.
Procuro ler mais, por exemplo.
Escuto mais música.
Abro mais os olhos para caminhar de forma mais atenta.
Uso menos roupa, menos coisas, para assim captar melhor a temperatura dourada do sol de Verão.
Saboreio mais lentamente um refresco de melancia, sentindo o abraço dos meus sobrinhos, que são cada vez mais.
“Tiaaaaa!!” – o Rodi, a Matilde e a Carlota. Uau! As lágrimas até saltam quando o Gu me pergunta expectante: “E tu vens, tia?” (ao espectáculo de Dança onde, entretanto, actuou muito feliz por estar em palco a realizar o que adora).
Quando a Íris sorri e ri... Ah, um ano já: a Íris, no dia 9 de Agosto! A minha ‘sobrinha’ mais nova. Há mais ‘sobrinhas’ e ‘sobrinhos’ das minhas amigas – ‘irmãs’ que me acompanham e enchem o coração.
Que bom que temos máquinas fotográficas; desse modo temos como gravar instantes de alegria; desse modo temos como tornar esses instantes eternos, não apenas no coração, mas também na memória futura.
No dia 19 deste mês comemora-se mundialmente a fotografia. A data que a Academia Francesa anunciou como sendo da invenção do daguerreótipo, em 1837, por Louis Daguerre. O daguerreótipo foi considerado, então, como um presente de Daguerre para o mundo. E nós agradecemos a possibilidade de fotografar, mesmo que as fotografias se fiquem pelo formato digital. Pelo menos assim não se gastam recursos...

Contudo, tenho de confessar que a fotografia impressa dos meus sobrinhos e das pessoas que me são queridas são e serão um dos presentes que me acompanham, também nas viagens. Até porque me transportam em viagens... no tempo e no espaço.

* Texto publicado no Jornal Chapinheiro

Mapas e fronteiras...*



 No dia 1 de Julho, a TAP – transportadora aérea portuguesa – celebra mais um aniversário. A sua inauguração ocorreu em 1953. Mas em Portugal, é sabido, esse é apenas o corolário de séculos de histórias, de séculos na História dos Descobrimentos. Não fosse o povo português um povo ávido pela descoberta de novos ‘mundos’.
Foi em Julho, também, mas no dia 8 em 1497, que Vasco da Gama iniciou a viagem marítima desde a Europa, até à Índia. É possível que o ensejo para os Descobrimentos tenha sido suscitado pela necessidade de expansão, de expansão do território. Sendo certo que não existia mais espaço terreno a conquistar e descobrir nas imediações, o mar, o além-mar tornou-se o desconhecido a descobrir... a conquistar, também...
É de realçar o contributo que os portugueses, desde o início do século XV até meados do século XVI, tiveram na composição dos mapas através das explorações marítimas por todo o mundo. O ‘Planisfério de Cantino’ ilustra isso mesmo, sendo a mais antiga carta náutica portuguesa conhecida. Data de 1502 e resulta daquela mesma viagem de Vasco da Gama, juntamente com a de Cristóvão Colombo à América Central, Gaspar Corte-Real à Terra Nova e a de Pedro Álvares Cabral ao Brasil, em 1500.

Já no século XX, outras viagens se estrearam. Viagens que, pelo menos na minha perspectiva, demonstram o desejo incontestável da humanidade em descobrir novos lugares, lugares além do limite planetário. E assim, em 1969, no dia 16 de Julho, era lançada Apollo 11 – a primeira missão espacial tripulada que, quatro dias depois (contabilizados pelo relógio terreno), aterrava na Lua. E assim, no dia 20 de Julho de 1969, Neil Armstrong era o primeiro homem a pisar solo lunar. Materializava, deste modo, o mapa lunar, ampliando, por consequência, a espacialidade ‘palpável’ do universo.
Se este evento já aqui foi referido, o tema desta crónica motiva-me à sua alusão. Tão-somente demonstra a necessidade que o ser humano tem de conhecer e expandir os seus limites. A necessidade, parece-me, de ultrapassar as suas próprias fronteiras, sejam elas físicas, territoriais, sejam psicológicas, emocionais, ou de qualquer outra índole. Por conseguinte, questiono-me amiúde acerca da possibilidade de vivermos sem limites, sem fronteiras – reporto-me, em concreto, à ausência de limites e fronteiras territoriais, à ausência de muros fronteiriços e todos os sinónimos que se possam aqui incluir.
É muito provável que as viagens me tenham aberto os olhos, e ampliado os outros sentidos para outras experiências sensoriais. Sim, são incontáveis os estímulos a que tenho estado sujeita, através do espaço além-fronteiras e, por consequência, experimentando a passagem de fronteiras; uma passagem tantas vezes aborrecida.
‘Aborrecida’ é um adjectivo aplicável para quem se vê obrigado aos procedimentos de segurança, controlo e vigilância dos serviços de estrangeiros e fronteiras. É uma situação ‘aborrecida’ pelos incómodos que causa a todos quantos viajam por uma razão ou por outra. Todavia, esse é apenas um dos inconvenientes das fronteiras. Talvez seja o mais facilmente aceite, de todos os aspectos desconfortáveis inerentes às viagens. Pode passar a imagem de uma menina petulante e/ou mimada. Mas trata-se, sob o meu ponto de vista, muito mais do que um contratempo. Para mim, é a constatação da fronteira, do limite, do muro construído que obsta a um passo livre no território, a mais um passo no mundo, no planeta.
Por isso, mimada ou petulante, em cada passagem pelos corredores fronteiriços, em cada carimbo no passaporte, questiono-me sobre a necessidade, para mim vazia de sentido, em abrir ou passar pela câmara de vigilância os meus poucos pertences, como se fosse uma criminosa. Ademais, nos dias de hoje, a distância que separa o criminoso de um terrorista é uma separação apenas aparente. Aos olhos de quem controla os postos fronteiriços todos são suspeitos, todos sem excepção são alvo de controlo. Todos sem excepção são vigiados: para quê? Para manter a ilusão: “O meu país está seguro”, ou, “No meu país, só entra quem eu quero”, ou “No meu país quem manda sou eu”. No limite: “Este país é só para quem eu deixo entrar”.
Estou a exagerar, é certo. Mas o exagero permite a caricatura e a caricatura também é o excesso possível: um excesso visível!
Seria interessante perscrutar os políticos – os presidentes das repúblicas, ou federações por exemplo – e incitá-los a desenhar o mapa do mundo à luz dos seus desejos mais recônditos, mesmo que insidiosos. Seria interessante observar a dimensão que cada um daria ao ‘seu país’. Talvez baste abrir os manuais de geografia e história de cada país. Talvez a comparação mostre diferenças no destaque. O mapa-múndi da Rússia será certamente díspar do mapa-múndi dos EUA.
Pergunto-me, ainda, se a perspectiva com que nos são mostrados os mapas é casual. Porquê o norte assim e o sul assado, colocando no hemisfério norte os países ditos desenvolvidos... quando o planeta Terra é redondo (ou uma elipse).

Bem sei que estes são assuntos algo polémicos. Na verdade, se se pensar no primeiro Rei de Portugal, nascido no dia 25 de Julho de 1109, e se se pensar no seu cognome – o Conquistador –, logo se encontram mais achas para a fogueira da territorialidade e para o desenho dos mapas políticos... e quantas vidas se continuam a perder para ganhar mais um centímetro de poder...
Para terminar e terminar de um modo mais terno, relembro o dia 26 de Julho: o dia dedicado aos avós. Este ano exaltarei os avós dos meus queridos sobrinhos, e o leitor e a leitora?

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Fora da caixa...*




            A Primavera chegou e o azul do céu está mais azul. Um dos motivos que torna esta estação fonte da minha predilecção. Outros elementos irrefutáveis há, nomeadamente a exuberância dos aromas das árvores em flor, os cantos apaixonados dos pássaros esvoaçantes, o toque dos raios solares mais quentes, que se estendem cada vez mais e por cada vez mais minutos ao longo do dia.
            É tempo de renovação. O clima convida à limpeza, abrindo as janelas que durante o Inverno permaneceram fechadas; abrindo armários e libertando-os das roupas mais quentes, mais escuras. Uma das práticas habituais nesta mudança de estação é a de examinar a roupa: aquela que não é usada há pelo menos dois anos é oferecida a quem eventualmente possa dar-lhe mais e melhor utilidade. Desse modo, cria-se espaço no armário, ao mesmo tempo que outra pessoa lhe dá uma nova vida.
            Num dia de Primavera1, os olhos podem demorar-se numa amendoeira em flor, enquanto o polegar e o indicador podem segurar uma gota do orvalho reflectindo os primeiros raios de sol. Num resplandecente amanhecer, os ouvidos podem dilatar-se com o trinar de um rouxinol ou o assobio de um melro.
Num pôr-do-sol, à beira-mar, as mãos e os pés podem refrescar-se nas águas salgadas que as ondas mais ou menos rasas conduzem até ao areal (não arrisco a mais que isso nas águas gélidas das praias do Porto).
            Entre o mar e o parque, entre o parque e o mar, a exuberância de cada segundo é uma manifestação guardada pelos sentidos, enquanto os pés, apoiados nos pedais, pressionam languidamente de maneira a prolongar uma cena que só na aparência é banal. Pedalando com atenção, a experiência de uma manhã de Primavera pode providenciar uma renovação há muito desejada, pelo menos inconscientemente.
            Os sentidos expandem-se, abrem-se, receptivos à generosidade da Natureza. Perfumes sem fim, fragrâncias silvestres multicolores espalham-se pelos jardins, desabrochando curiosidades nas borboletas... azuis, brancas, amarelas. Que aroma é este? Que odor é aquele?
Assim sopram as flores azuis florescendo viçosas... Oferecem-se, partilham-se aos olfactos mais ou menos atentos. Durante as deslocações de bicicleta pelas ruas do Porto e arredores, tenho tido o privilégio de inspirar estes e outros odores. Enquanto pedalo por entre os caminhos, ruas e ruelas surgem-me no pensamento inúmeras coisas. E pergunto-me, então, se as caixas em que vivemos e nos movemos nos concedem esses encontros com a ternura primaveril? E se os compartimentos, em que nos guardamos, nos protegerem ao ponto de nem sequer nos apercebermos do sentido do mundo, dos sentidos do mundo?
            Nessas deslocações diárias, se bem que seja fundamental permanecer em estado de alerta, observo-me inspirando e pedalando, ao mesmo tempo que o meu olhar pára no interior das caixas automóveis, nas quais ‘jazem’, com frequência, seres adormecidos que ignoram aqueles que pedalam a seu lado, por vezes também distraídos, e até embriagados, pelas cascatas de flores que se sacodem lançando pétalas (azuis) pelo ar e para a estrada. Note-se que quando o dia acorda de uma noite com chuva primaveril, essa desconcentração tende a aumentar, por parte de certos ciclistas. As camélias vermelhas luxuriantes inclinam-se para os moradores das cidades, oferecendo os seus aromas... quase em vão.

            Em vão... Existe uma grande maioria das gentes das cidades que, sem se aperceber, vive numa moldura. O alarme que vibra de uma caixa sonora assusta o mais inocente dos sonhadores. De compartimento em compartimento desloca-se pela casa até à hora de sair. Da porta de casa caminha sonâmbulo para outra caixa que, em sentido descendente, o transporta até à garagem, onde entra num compartimento ambulante. Nesse recipiente fechado segue para outra garagem, a partir da qual subirá noutra caixa para outro compartimento onde permanecerá grande parte do dia...
            De caixa em caixa, de compartimento em compartimento, está ausente e protegido do exterior. A pele deixa de sentir o ar ameno da Primavera, o olfacto não distingue o cheiro de uma rosa e de uma erva molhada; o olhar só capta, como se de um écran de televisão se tratasse, imagens fragmentadas: vermelho e pára; verde e avança; amarelo e abranda. Como pode ser frágil o corpo que vive sem o vento perfumado de um salgueiro, sem a maresia fresca num dia de Primavera.
            Numa curta viagem de bicicleta os sentidos estão todos abertos ao mundo. De um lado, golfadas de aromas flores de todas as cores. Do outro, golfadas de gases dos canos de escape. Como os que alguns autocarros da área metropolitana do Porto lançam sem prurido nos trajectos entre Leça, Matosinhos, Porto e concelhos próximos. Os da Resende (é forçosa a sua alusão) serpenteiam a velocidades inquietantes com o objectivo de cumprir horários. O seu pára-arranque é um atentado ao ciclista e aos transeuntes que com eles se cruzam. Desfazem-se na rua, ardem nas ruelas, soltando nuvens negras. Às vezes tenho a sensação que recebo ondas de alfazema de um lado e baforadas de pura poluição do outro. É desconcertante; ao mesmo tempo, confesso que é em sorriso que ultrapasso esses autocarros azuis. Não sem sentir um pouco de tristeza por aqueles que parecem viver de forma contínua em caixas, vendo tudo através de um écran, como se encaixados numa moldura, ainda que protectora...
            Mas é tempo de celebrar o toque de uma libelinha, em noite de lua cheia. À beira-mar ou à beira-rio, contemplando o reflexo do luar. Mas que se cante fora da caixa, qualquer caixa, caso contrário é impossível sentir a Primavera no espelho decorado com amendoeiras, camélias ou crisântemos...


1: Intertexto com ‘O eremita viajante’ de Matsuo Bashô
* Este foi publicado no Jornal Chapinheiro

A propósito do dia do voluntário




Dia cinco de Dezembro: dia internacional do voluntário para a economia e desenvolvimento social. O tema do voluntariado não me é estranho. A experiência como voluntária foi vivenciada em várias situações, em diversos contextos e com motivações distintas. Se bem que distintas apenas na aparência.
Até há uns anos, considerando os meus próprios motivos para partilhar o tempo, pensava que o voluntariado acontecia sobretudo, senão quase unicamente, pela dádiva. Este ‘apenas’ não é redutor – reporto-me ao facto de supor que, como eu, aqueles que se dispõem a contribuir com o seu tempo para uma ‘qualquer’ causa, o fazem com esse mesmo fim.
Como escuteira e avezinha (uma das categorias nos grupos femininos de Cristo Rei, seguindo-se as guias, nas quais não cheguei a entrar...) participei amiúde em peditórios e actividades similares. Partilhava o tempo, ajudando de alguma forma, alguma causa, alguma instituição, ou alguma comunidade.
Em adulta, as tardes que passei a separar alimentos, no armazém do Banco Alimentar, proporcionaram-me a sensação de ser útil. Os meus afazeres eram colocados de lado, em prol de pessoas desconhecidas, é certo, mas certamente necessitando de ajuda. O ambiente no armazém era claramente de boa disposição. Nos últimos anos que fui, havia tanta gente ao longo dos tapetes rolantes que, mais do que me sentir relevante, emergiu o desconforto de me sentir a mais. Muita gente com vontade de ajudar, excelente! Muita confusão inibindo movimentos, ao ponto de aceitar que, enfim, a minha presença era desnecessária. Até que notícias acerca das pessoas que dirigiam o Banco Alimentar e sobre o seu usufruto dúbio dos bens alimentares, doados por gente com muita frequência com mais necessidades do que se vislumbra, me fizeram questionar a continuidade nas iniciativas promovidas pelo Banco. Não regressei ao armazém de Perafita.
Por outro lado, as experiências que fui vivendo tornaram evidente que a minha perspectiva acerca do voluntariado era deveras pobre. O contacto com estudantes universitários apostando no seu futuro profissional, mostrou-me que o seu Curriculum Vitae é muito mais atractivo se integrar pelo menos uma linha dedicada ao serviço comunitário, ao voluntariado. Um aluno afirmava com recorrência ser voluntário no Banco Alimentar – o M era um fervoroso e activo militante de um partido político, no qual trabalhava infatigavelmente, demonstrando claras pretensões em ser dirigente político.
Os meus horizontes alargaram-se com a investigação, através da qual entrevi que muitas pessoas, sobretudo as mais jovens, preparam as suas viagens, pesquisando também sobre como podem contribuir para as comunidades dos seus destinos.
Os meus horizontes alargaram-se quando as minhas viagens se tornaram mais longas e, como consequência, com mais tempo – esse tesouro!, talvez o mais valioso – para observar as pessoas e os seus modos de agir. Conheci pessoas que viajam com o intuito de aprender. A melhor maneira de aprenderem, de crescerem afirmam, é participando nas actividades quotidianas de uma comunidade em particular, compartilhando as suas valências. Ensinando inglês às crianças menos favorecidas, por exemplo. O retorno é tão evidente que o seu benefício é, sem margens para dúvidas, muito superior.
O ano passado conheci Alberto, no México. Um professor espanhol de férias naquele país. Passou um mês numa comunidade indígena – o seu olhar era refulgente, o seu sorriso era luminoso, as suas palavras eram de deslumbramento. Alberto sentia-se feliz e profundamente grato por ter sido acolhido e por terem aceite o seu modesto contributo. Os presentes, em formas de abraços apertados das crianças da região de Chiapas, eram a maior oferenda que alguma vez recebera.
Houve uma época em que pesquisei afincadamente (mesmo que sem resultados) sobre como ser voluntária em diversas ONG’s. O valor que eu tinha de pagar era tão elevado (para mim...) que desisti das ilhas Galápagos, de Madagáscar... – locais onde desejava realizar voluntariado... Com essas incursões percebi que muitas ONG's se mantêm com base nos donativos dos que querem ser voluntários. Se nessa altura me era estranho pagar para servir, posteriormente compreendi um pouco melhor as circunstâncias – mesmo que ainda me seja difícil concordar e candidatar-me ao voluntariado nesse tipo de acção.
Em finais de 2014, o sítio das Nações Unidas publicava um anúncio para os Jogos Olímpicos de 2016. Inscrevi-me! Realizei diversos testes on-line, ao longo de um ano, que culminaram com a participação em corpo presente no Evento-Teste de Mountain Bike. No início de Outubro de 2015 voava desde a Cidade do Panamá para o Rio de Janeiro. Estava exultante e orgulhosa por ter sido seleccionada para o maior acontecimento desportivo do planeta. No dia nove de Outubro de 2015, chorava baba e ranho quando, na sala de formação, era transmitido um vídeo da candidatura do Rio de Janeiro para a realização dos Jogos Olímpicos. As lágrimas eram de emoção incontida: eu fazia parte do maior evento à face da Terra. Pela primeira vez na vida, testemunhava de dentro outra forma de ser voluntária, ao mesmo tempo que o contacto com outros voluntários me apresentava outras razões para que também eles ali estivessem.
Quando este ano, também como voluntária, participei na realização do Campeonato Europeu de Natação Adaptada no Funchal, os significados do voluntariado tornaram-se ainda mais ambíguos. As mais de cem crianças, jovens, adultos e idosos que ali estavam sorridentes, disponíveis e ansiosas para integrarem a equipa tão diversa de voluntários, traziam consigo uma energia desprovida de expectativas em relação a eventuais ganhos. Estavam ali para doar o seu tempo: como contrapartida, bastava-lhes desfrutar desse tempo com outras pessoas e aprender algo com essa experiência. Ah, como puderem aprender e apreender como são, como éramos todos tão abençoados. Os atletas especiais demonstravam ao minuto, ao segundo, como a minha vida é fácil, ao mesmo tempo que nada, vezes nada, é garantido. Escutei algumas mães dizerem que no dia seguinte levariam os filhos para que observassem e comprovassem a vida privilegiada que viviam.
No final das duas semanas maravilhosas que vivi na ilha atlântica das flores, era forçoso integrar mais factores de ordem pessoal e social. E, se em Maio, decidi parar de pensar sobre esse assunto, ser coordenadora (ainda que paga) de voluntários no Rio 2016, ampliou infinitamente os elementos para possíveis reflexões.
A alegria expressa, por aqueles que eram chamados a participar (após as várias etapas por que também eu anteriormente passara), confirmou como pode ser ilimitada a disponibilidade do ser humano para ajudar: tão-somente estando no centro do universo desportivo (e não só!) durante três ou quatro dias.
Sagan, um jovem indiano ilustra-me. Quando recebeu o meu telefonema, extático, só lhe escutava desde o outro lado da linha: “Obrigado! Obrigado! Obrigado!” A única coisa que eu havia feito fora ler o seu percurso na ficha de voluntário e contactá-lo para saber se ainda estava disponível. Como? Claro!!! E confirmei a sua presença sorrindo. Alguma vez me passara pela cabeça que o Sagar, da Índia, e a Azucena do México (dois de múltiplos exemplos que poderia expor) ansiavam tanto como eu integrar os Jogos Olímpicos e ajudar a escrever uma linha na história da humanidade?
O Sagar marcou nesse mesmo dia a sua viagem desde Mumbai. Às suas custas, claro! Reservou alojamento. Às suas custas, claro! No seu primeiro dia de actuação, e depois de ter passado no centro de acreditação e de uniforme orgulhosamente vestido, oferecia-me mais um presente (os seus abraços e palavras de rejubilo já me tinham avassalado...): uma saia cor-de-rosa, linda. Apenas por lhe ter telefonado e de o ter incluído na equipa de voluntários do Ciclismo.
Talvez tenha sido um dos momentos mais bonitos daqueles quase quatro meses no Rio de Janeiro, e que me permitiu apreender, ainda que de forma ténue, o alcance de um mero acto inerente às funções para que fora contratada. A experiência prévia como voluntária no Evento-Teste ajudou-me a compreender um pouco a euforia de Sagar, assim como a de muitos outros voluntários, em particular os estrangeiros – aqueles que organizaram as suas férias para participar e oferecer o seu tempo na realização dos Jogos Olímpicos. Contribuindo, assim, para o tal desenvolvimento económico e social implícito no conceito de voluntário.
A teoria não me explica, porém, os sentidos de acção e de dádiva dos cinquenta mil inscritos na base de dados do Rio 2016. A proximidade aos atletas, aos super-atletas, aos heróis desportivos é, indubitavelmente, um elemento a ponderar. Mas não me esclarece cabalmente. Na verdade, a renitência e mesmo recusa de brasileiros, residentes no Rio de Janeiro, em participar acrescentou dúvidas acerca do assunto. Cada vez que desligava o telefone após uma resposta negativa num português quente e carioca, perguntava-me como era possível que aquela pessoa, tão próxima do centro do mundo (para mim...), apresentasse razões mais do que plausíveis para, no fim de contas, não estar disponível e não vestir um uniforme de voluntária. E, ao contrário dos estrangeiros, sem qualquer custo, a não ser o seu tempo – ah!, esse bem tão precioso, que de tão valioso me provoca indagações sobre como viver cada instante de forma a eternizá-lo.
Questionamentos pessoais à parte, vou despendendo tempo a pensar sobre este tópico, até porque dia cinco de Dezembro intervirei numa sessão dedicada voluntário. A P convidou-me para participar numa sessão dedicada ao assunto na escola em que lecciona. Tenho, pois, mais uma oportunidade de ser útil, nem que seja apenas para a minha querida amiga P.
É nesta acepção de utilidade, de realizar algo pelo outro que me parece estar o cerne de todas as iniciativas associadas ao voluntariado. Esta é, aliás, uma tendência em crescendo – não fosse eu, por exemplo, tal como outros voluntários que conheci no Rio de Janeiro, já nos termos candidatado a futuros eventos desportivos.
Os dados que os meus sentidos captam – naturalmente condicionados pelas minhas experiências – sugerem-me que existem cada vez mais pessoas insatisfeitas com os seus empregos. Aqueles que lhes providenciam o suficiente (ou, talvez, nem sempre suficiente) para as suas necessidades (e aqui incluo todos os tipos de necessidades, desde as básicas, às mais supérfluas, ainda que não deixem de ser necessárias para o bem-estar vivenciado como um todo). O que vou assistindo, no entanto, é que essas mesmas necessidades se têm tornado cada vez mais insuficientes. A sensação que tenho é que, de alguma forma, um crescente número de pessoas se questiona quanto ao sentido que faz ter um emprego que não satisfaz por aí além, tão-pouco garante os bens (materiais, sublinho), que entretanto vão perdendo importância.
Ao escutar o senhor presidente do Uruguai, as minhas cogitações tomaram forma nas suas palavras. E creio que para muitas outras pessoas, também. Gastar tempo – o bem mais valioso e cada vez mais escasso – num emprego que não satisfaz para comprar coisas que ao fim de meia dúzia de dias (estou a ser optimista) se juntam as outras mil e uma coisas – num armário... cheio, talvez a abarrotar. E é aqui que encaixo o aumento da participação no voluntariado. É um trabalho. Um trabalho no sentido mais humano que apreendo. Um trabalho, cujo propósito é palpável e que, acima de tudo, proporciona o sentimento único de se ser útil, de se estar a contribuir para algo que realmente confere sentido – sem com isso se esperar retorno financeiro.
É possível – e o contacto com voluntários do IPO apoia-me neste raciocínio – que muitos daqueles que têm necessidade e/ou desejo de serem voluntários numa causa ‘maior’ – coloco assim – procurem situações que lhes promovam esse sentimento ‘superior’ de serem importantes, úteis.
O que me provoca outras indagações do género: o que será que aconteceu para que cada vez mais gente viva em contextos e a viver uma profissão que cada vez menos contribui para o bem da Humanidade.
Quem sabe o ficcional “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley seja tudo menos ficção. E assim aquele mundo virtuoso, onde o apanágio da felicidade era ‘real’; aquele em que se fazia acreditar gostar daquilo que se é obrigado a fazer – o tal segredo da felicidade daquele ‘admirável mundo’ – tenha deixado de ser ficção científica (foi escrito em  1931!) e seja mais real que admirável...
Não obstante, nos Jogos Olímpicos, os meus sentidos apreenderam uma matéria infinita de sorrisos imateriais e ilimitados, em pessoas vindas de todo o mundo (admirável ou não), que se expandiam numa felicidade só invisível e ‘obrigada’ ao mais céptico dos examinadores...
Admirável, para mim, é o voluntário despojado que partilha o seu tempo sem orgulho. Admirável, para mim, é a pessoa que compartilha o seu tempo, porque sim, porque está cheia, porque tem um emprego que lhe providencia os sentimentos de realização e felicidade. Cheia que está, partilha-se, é útil, sem estar a pensar que a sua utilidade contribuirá para o tal desenvolvimento social e económico...

16 a 21 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal