Cenotes de Cuzamá


            Foi em Mérida, México, que no ano passado sofri pela segunda vez uma otite. A primeira vez que senti essas dores horríveis, das piores dores físicas até ao momento (confirma-se mais uma vez como sou uma pessoa protegida e privilegiada), foi na Mina de São Domingos, em Mértola. Passava uns dias de férias de Verão com a minha querida amiga P. Uma das grandes companheiras da faculdade... e da vida.
            O motivo de ambas as otites é o mesmo: saltos para a água – mergulhos de cabeça que me mostraram que o sonho das profundezas dos mares e dos oceanos terá de se ficar pelo snorkeling – melhor que nada, como é óbvio.

            Como afirma o antropólogo francês David Le Breton, as cicatrizes de acidentes em actividades de risco, que os aventureiros tão orgulhosamente mostram, são memórias indeléveis no corpo de experiências vividas. As otites não deixam marcas visíveis, mas as dores que senti são revividas com um sorriso, ao resgatar as fotografias e filmagens do dia bem passado com Jacob – um dinamarquês de férias no México pela terceira vez! – nos Cenotes de Cuzamá, nos arredores de Mérida.
            Conheci Jacob no hostal Art Apart. O segundo em que fiquei nessa cidade mexicana. Reservara apenas uma noite no Nomads hostal. À chegada a Mérida, fiquei a saber que esse albergue estaria cheio nas noites seguintes: estava para chegar um grupo grande. Os meus lábios formaram um arco descendente – decorria uma aula de salsa à hora em que fazia o check-in e fiquei com vontade de desenvolver as minhas aptidões nas danças latinas. Paciência. Nada a fazer. Na manhã seguinte, enquanto tomava o pequeno-almoço, acontecia uma aula de yoga. Novo desapontamento por não ter reservado mais noites nos Nómadas de Mérida.
A duas quadras de distância encontrei o Art Apart. Ao entrar, o sentido do sorriso inverteu-se. Abriu-se ainda mais quando a senhora que me atendeu me mostrou o lugar, com uma piscina rodeada de decoração e mobiliário retro. Fiquei num dormitório do piso superior. Tinha dez camas. A única que se fez ocupada, durante a semana inteira em que aí parei, foi a minha! Muito grata pela tranquilidade do sítio, ao contrário do primeiro onde dormi, o qual estava ao rubro, cheio de gente, cheio de actividades. Na maioria das vezes, sou mais do género sossegado, por isso, posteriormente apreciei o facto de não ter tido cama no Nomads.

A dinâmica existente no Art Apart foi suficiente para travar conhecimento com gente nova, visitar novos lugares bem acompanhada e mesmo rever um casal que havia conhecido em Bacalar – a cidade de onde viajei até Mérida –, a Patrícia e o Arturo. Reencontro que me permitiria, semanas depois, uma estadia na Cidade do México.
Os dias em Mérida foram realmente muito bem passados, tendo para isso concorrido Alberto, o jovem responsável pelo hostal Art Apart. Alberto dava-se muito bem com Jacob, que já não era a primeira vez que ali ficava alojado. Foram várias as refeições que partilhámos os três. Jacob gostava de cozinhar, particularmente ovos, que os preparava de todas as maneiras e mais algumas. Da minha parte, contribuía com os legumes para a salada. Os abacates eram sempre um petisco obrigatório com um fio de azeite e sal a acompanhar os maravilhosos soft eggs do Jacob, de que fiquei fã.
Levaram-me a conhecer a la movida de Mérida. Fiz o gosto ao pé no bar ‘Fábrica de Mezcal’, onde também provei o famoso Mezcal e relembrei os shots de outros tempos com a Tequilla Bum Bum na Cantina ‘La Negrita’.
 Com Alberto, fiz o reconhecimento da cidade através das corridas matinais antes de ele começar o seu dia de trabalho. Foi também Alberto que me sugeriu a visita aos Cenotes de Cuzamá, onde fui com Jacob.
Às 9.30h da manhã de uma sexta-feira de Agosto, eu e Jacob estávamos prontos para ver ao vivo as cavidades naturais designadas de cenotes. São resultado do impacto de grandes meteoros, dando acesso a águas subterrâneas. Nestas grandes cavernas ter-se-ão realizado muitos rituais de sacrifício dos Maias.
Existem muitos cenotes no México, mas os de Cuzamá têm uma particularidade: o acesso aos mesmos é efectuado através de carruagens que são puxadas por cavalos ao longo de antigos caminhos de ferro. A nossa carruagem era uma das mais poderosas do lugar. O que eu e o Jacob nos rimos. Existia apenas uma linha. A nossa dúvida foi desvanecida quando nos confrontámos com a primeira carruagem que surgia no sentido oposto. As pessoas que nela eram transportadas foram convidadas a deixar a carruagem e a ajudarem o condutor a retirá-la da linha, para assim dar passagem, neste caso, à nossa. Isso aconteceu várias vezes em ambos os trajectos e nós ficámos sempre sentados à espera que as demais carruagens desamparassem o caminho para que, sempre nós, prosseguíssemos. Sentimo-nos reis e senhores dos carris de Cuzamá. 
 

Foi no último de três cenotes que mais tempo nos detivemos e onde saltámos vezes sem conta para a água, brincando, rindo e desfrutando da profundidade das águas límpidas e cristalinas. Jacob levara a sua máscara e foi aí que tive o primeiro laivo do esplendor do que é o mergulho...
 

Os dois dias seguintes em Mérida foram a relembrar vividamente cada salto, cada mergulho... os ouvidos não me deram descanso. A juntar à festa, a chuva tropical trouxe uma enxurrada de mosquitos. Pela primeira vez em três anos, tive necessidade de recorrer aos químicos de um repelente, a fim de apaziguar a superfície corporal. Tenho a sensação que o álcool do mezcal e da tequila, que ainda circularia nas minhas veias e artérias, terá tido a sua quota parte na atracção de tanto insecto....

Fevereiro de 2016
Matosinhos, Portugal

Na tua casinha... Querida avó!

Fotografia de Pedro Pereira

Querida Avó Altina!

Foste embora. Não sem antes nos despedirmos. Quando me viste na véspera de ires: “Oh, minha querida neta do meu coração... Vieste despedir-te de mim...” Olhei para ti e compreendi. Os teus olhos ainda mais pequeninos e muito vermelhos isso me sugeriram. Um fio, apenas, te prendia a este mundo. A tristeza envolveu-me, ao mesmo tempo que uma bênção me abraçava: escutara a tua voz nos dias anteriores e fui despedir-me.
Estavas presa a uma cadeira. Tiraram-te a autonomia, sentias. Protegiam-te das quedas, diziam. Estavas presa. Estavas protegida.
Deixaras de ser aquela pessoa alegre, livre e independente que todos admirávamos. Uma das irmãs coragem. A tua coragem mantinha-se, sem dúvida. Por isso compreendia a tua angústia, o teu desalento, a tua inércia... Estavas onde te haviam largado. Estavas onde te haviam protegido de ti própria. Mesmo que essa não fosse a tua vontade.
Os teus noventa e cinco anos tão cheios... Mas as tuas pernas, os teus pés... Já não tinham força para se elevarem o suficiente nas tuas parcas deslocações. Por isso, as quedas eram cada vez mais frequentes. Aquelas que assustavam cada vez mais aqueles que te amavam. E se caísses enquanto estivesses sozinha? E se te acontecesse alguma coisa e ninguém te pudesse acudir?
E ninguém estava disponível... Nem recebendo um pagamento para cuidar de ti... Na tua casinha. Não se encontrou ninguém para ficar contigo a tempo inteiro.
Foste para uma casa comunitária, onde estavam outras pessoas velhinhas como tu e a necessitaram de cuidados continuados. Não querias. A tua voz implorou tantas vezes e com tanta urgência: “Quero ir para a minha casinha”. Ninguém conseguiu dar ouvidos ao teu pedido, que afinal não era assim tão simples.
E começaste a recusar-te a participar nas actividades organizadas, naquelas que entretêm e ajudam a passar o tempo. E começaste a recusar a alimentares-te o suficiente. Ninguém reparou?
Só eu é que terei reparado que estavas a gritar com o teu silêncio, com as tuas recusas?
E decidiste. Já que não podias estar na tua casinha, livre e descansada, então mais valia partir. E a comida diminuiu ainda mais e nada mais havia a fazer a não ser esperar que a vida ela própria te escutasse, terminando-se... E assim foi. E foste. E partiste. Corajosamente, no teu tempo, porque assim quiseste.
Querida avó, dizem que as desculpas se evitam. Mesmo assim, eu peço-te desculpa! Desculpa por não ter tido o discernimento suficiente para ficar contigo, na tua casinha, nos últimos meses da tua vida, evitando, assim, que morresses no hospital, por falência total dos órgãos. Morreste do coração, disseram. E com efeito, foi uma dor no teu coração... Morreste de tristeza...
Desculpa não ter tido o discernimento suficiente para ficar contigo na tua casinha, mesmo que tal chocasse quem por ventura poderia tê-lo feito.
Bem sei que escrever isto é admitir que estou triste por esse por ventura.
Todavia, estou sobretudo triste por te ter visto, a ti e a outras pessoas, numa sala de entretenimento. Passivas. As pessoas ali estavam, sedadas, à espera que as horas de cada manhã passassem. Passivas, à espera que as horas de cada tarde passassem. Cada dia a passar lenta e demoradamente, sem se sentirem. Mas tu sentias. Eu senti a tua tristeza. Desculpa, minha querida avó, por não ter ficado contigo... Na tua casinha.
É isto que somos capazes de proporcionar aos nossos velhos? Àqueles que nos deram vida, que cuidaram de nós? Àqueles que nos ajudaram a crescer... A ser?
Enquanto escrevo, as lágrimas turvam os olhos e mal consigo perceber as palavras gatafunhadas. Mas o que escrevo é o que está cá dentro: uma tristeza imensa por não saber se saberei tratar dos meus futuros velhos... Não é ‘apenas’ por isso. Que pessoas somos hoje, que não temos tempo para tratar daqueles que trataram de nós?
É mesmo assim? Sedar os velhos, deixá-los numa sala à espera que as horas passem por eles? À espera que a morte os receba... Finalmente.
Oh, vó...querida avó.

15 de Fevereiro, 2016
Matosinhos, Portugal

Mochilando - Parte II




O ano passado a mochila estava forte e resistente, não tendo sido necessário usar o kit de urgência. Contrariamente a este ano. Ao fim de dois meses teve de ser. Em Lanquin, na Guatemala, foi necessário coser o bolso superior. Aí guardava aveia para o pequeno-almoço ou uma lata de azeite. É de salientar que o azeite é ouro na maior dos países onde estive na Améria Latina. Não gosto de cozinhar com óleo. É um gasto que parecendo de luxo, é elementar para a minha alimentação. Não sou a única a pensar desse modo. Nos hostels onde pernoitei era habitual esse tesouro estar protegido das mãos alheias. Como era o caso do italiano – o Mássimo – que conheci em Granada, na Nicarágua. A sopa que partilhou comigo tinha esse condimento tão mediterrâneo.
Mássimo chamou-me a atenção para um pormenor; só nesse momento identifiquei o que há muito me causava quase náuseas. O cheiro das mochilas. Insuportável. Um fedor que sobressaía em particular nos dormitórios cheios. Seis ou sete pessoas a dormir no mesmo quarto com as respectivas mochilas. Mochilas essas que passavam por todas as desventuras e mais algumas, entre porões de avião, de autocarro, barcos e chão. Muito chão, absorvendo todos os odores de cidades mais ou menos poluídas. A partir desse momento tornou-se quase intolerável trazer a mochila pequena na frente do tronco, afastando-a o mais possível das narinas. Havia ainda outro malfadado pormenor, cuja consequência se daria na Cidade do México, em casa de um casal que conheci em Bacalar. A mochila grande trazia uma recordação odorífera de Bogotá. Também nessa capital fiquei hospedada em casa de amigos que conheci o ano passado. Em ambas as casas havia um habitante felino. Ora, o gato colombiano fez questão de deixar a sua marca urinária. Ao pousar a mochila no quarto que me foi destinado na cidade mexicana, o gato que aí vivia sentiu – ao fim de mais de dois meses! – e não gostou. De tal modo, que quando tentei amenizar a aversão que sentira, saltou e mordeu-me!! A minha mão esteve inchada vários dias.
Quanto ao volume, a mochila ganhou algum em Mérida, no México (no final do terceiro mês), quando as sapatilhas adoeceram e deixaram de ser viáveis para a corrida. Só consegui despedir-me delas no Rio de Janeiro, cidade de onde regressei a Portugal. O seu conforto para caminhar mantinha-se e a cor roxa agradava-me sobremaneira. As roupas iam ficando em alguns dormitórios. Além do inevitável se ter repetido: quando mandava lavar a roupa o saco vinha quase sempre mais leve. Quando em Setembro comprei a viagem de regresso ao Porto, libertei-me de peças que roçavam o andrajoso. Na Costa Rica (início do quinto mês) disse adeus aos calções de guerra; os calções de montanha que tinham seguramente quinze anos de existência. Gostava muito deles, mas estavam tão esfarrapados... pelo menos ‘morreram’ num dos lugares mais bonitos, para mim, da América Central: o Parque Corcovado.
Também abandonei os segundos calções de corrida; não aguentaram as lavagens medíocres.
Daí viajei de autocarro para a cidade do Panamá, onde tinha voo marcado para o Rio de Janeiro. Já cheirava a maresia do Porto. Era então necessário criar espaço para os ‘regalos’. Foi no Panamá, a pouco mais de duas semanas do regresso, que finalmente dediquei o passeio às compras. Apesar dos esforços, o espaço era limitado. Adicionalmente, no Rio de Janeiro obtive a indumentária para o voluntariado num Evento-Teste dos Jogos Olímpicos – razão pela qual me desloquei ao Brasil –, o que aumentou novamente o volume.
A viagem desde o Rio para o Porto permitia mais bagagem de porão; conforme me sugeriu uma vendedora, podia ter comprado uma maleta. Mas isso já não é uma prioridade. Pela reacção do meu sobrinho depreendi que ele não esperava nada; o que muito me apraz. As cartas que lhe escrevi foram os melhores presentes – o que li no seu olhar profundo de longas e negras pestanas.
Quanto à família e amigos, as pessoas a quem fiz o carinho de trazer uma lembrança também a receberam num sorriso que revelava surpresa, tendo percebido que ninguém o esperava. O que me satisfaz imensamente. Ainda não sou capaz de chegar de mãos vazias. Na realidade, em cada encontro com alguém que não vejo há muito tempo levo um ‘miminho’. É fantástico o sorriso que recebo, nem que seja por uma simples flor. Além disso, como ainda tenho muitas coisas que não preciso, essa é uma forma de libertar espaço na casa dos meus pais.
Viajar de mochila tem sido uma aprendizagem ainda muito iniciática. Não é raro escutar: “Ui, tu viajas com isso tudo, com uma mochila desse tamanho?” Quase tudo é relativo. Estou certa que esta viagem de cinco meses se impregnou no meu ser e que na próxima serei capaz de diminuir o peso de forma substancial... estou a aprender a precisar de cada vez menos. Já nem perfume me lembro de usar, apesar de ter um ou outro frasco na cómoda.

Outubro, 2015
Matosinhos, Portugal

A flauta pan de Hanuko - Machu Picchu III



Tempo fugaz e fragmentado. Assim voam numa velocidade estonteante as horas, os dias... os anos – quando os sonhos estão presos, não nos atrapa sueños, mas em paredes de betão. Pedras, quantas vezes cinzentas, que não sabem que o sonho* é uma constante da vida bem concreta e que, só por medo, pouco definida.
As sombras silenciosas que as nuvens desenhavam nos cumes pintados de branco ressoavam no meu ser como um novelo infinito de horas lentas e espessas.
Os doze quilómetros de caminhada pela cordilheira andina conduziram-nos ao acampamento já montado. Dois grupos, dois guias. Nico e Edgar organizavam o jantar. Para o nosso grupo, metade das refeições era em modo vegetariano. Até ao momento em que abri este caderno, para traçar as memórias de final de Outubro de 2014, foi a mesa mais vegetariana em que me sentei (aparte dos retiros de meditação e restaurantes do género). Há que dizer que, durante esses dias pelos Andes, comi realmente muito bem – quem diria... numa cozinha improvisada. Os cozinheiros mereciam todos os dias palavras muito elogiosas, concretizadas numa ‘propina’ final à altura.
O ribeiro manso em serenos sobressaltos, sem pinheiros altos, mas com vegetação verde e oiro, agitando-se numa penumbra cada vez mais azulada, anunciava o descanso do guerreiro. Eram sete e meia da noite quando me instalei na tenda com Lúcia. Uma das vegetarianas, mãe de uma jovem brasileira – Melissa – que se fazia acompanhar do namorado australiano.
Oh, que dia! Eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem sonha, nem sempre o mundo pula, nem sempre avança. Pelo menos nas altas montanhas andinas. Muito pouco sonhei nessas noites que partilhei a tenda com a senhora brasileira. A mais velha do grupo e sem ninguém com quem conversar a não ser a filha e eu própria – e mesmo assim mal.
Alguns dias antes, quando em São Paulo, em casa de H. e A., fui informada que, para além dos idiomas que procuro ir melhorando a cada dia, falava mais um. Dizia a empregada do casal que me recebeu: “Oi, Ana, você fala muito bem português!” – Claro, sou portuguesa! – respondi... Nessa época já me rendera ao inevitável; no país irmão, o meu falar era lento e com o máximo de sotaque e recorrendo ao uso dos pronomes pessoais e reflexos no modo ‘brasileiro’. Por isso, Lúcia tinha em mim alguém com quem conversar e alguém que a escutava... oh, como a escutava, em particular durante a noite, quando o seu respirar nada tinha de musical; pelo contrário, ultrapassava o razoável...
A música foi magistral ao segundo dia. A tela, a cor e o pincel da paisagem mágica do dia seguinte – uma bebedeira sob o azul celeste, em contraponto com a sinfonia verde e a água a cantar.
‘Kokoro’ – o coração da natureza estava na música que uma das caminhantes do grupo, Hanuku, soprava pela sua flauta pan. ‘En’ – a energia que eu sentia na melodia que roçava em cada poro da minha pele, no vale que a japonesa nos presenteou, como uma passarola pára-raio, locomotiva, desembarque em foguetão na superfície lunar.
A hora ainda não era de luar, mas de contemplação das regiões que desejava desérticas no meu coração. Talvez assim criasse espaço para as notas douradas que, num compasso de dança colombina e arlequim, me encantavam como uma bola colorida.

Ah... eles não sabem, nem sonham que, nas pedras em que me sentava, todos os meus sentidos convergiam para a brisa de uma flauta pan que tocava no centro do universo – a cordilheira dos Andes. Naquele momento nada mais existia. Só muito mais tarde me lembrava que caminhava lenta e serenamente em direcção a Machu Picchu.



Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

* Intertexto com ‘Pedra Filosofal’, de António Gedeão

Longe do mundo... - Machu Picchu II


“Aqui está-se sossegado, longe do mundo e da vida”*. Ali estava sossegada, no centro da Natureza e da existência. Cheia de não ter passado, sem futuro – nada existia para além do meu peito, onde o coração se agitava em arritmia. Subia e subia, progredindo em altitude em cada passo cada vez mais lento. Não era apenas por reacção fisiológica à altitude. Ali, estava cheia e o coração batia tumultuosamente – estava viva. Caminhando... devagar. Ascendia pelo Salkantay trekking. O primeiro de cinco dias para, no último, chegar ao destino: a montanha de Machu Picchu; aquela onde, em 1911, Hiram Bingham encontrou as ruínas da civilização Inca.
Foi por sugestão de H. – que me recebeu juntamente com A., alguns dias em sua casa em São Paulo, depois do congresso – que optei pelo Salkantay trekking em vez do Inca Trail – o trekking mais famoso, mais turístico, mais oneroso (o triplo do valor do Salkantay trekking, apesar de também mais curto: três dias). Além disso, é usual ser necessário reservar com alguns meses de antecedência.
No dia em que fiz o check-in no hostal em Cusco – a minha estreia num albergue – reservei e paguei o meu lugar num grupo que sairia para o Salkantay trekking daí a dois dias. O tempo que me pareceu suficiente para me aclimatar minimamente. Afinal, acabara de aterrar em Cusco – a mais de três mil metros de altitude – e sentia-me exausta fisicamente. Com o pacote que comprara atingiria mais de quatro mil e seiscentos metros. Era a primeira vez que o meu corpo experimentaria os efeitos de caminhar tão alto.
Na véspera do trekking participei num torneio de ping-pong no Pariwana hostal. Achava eu que teria hipótese de ganhar pelo menos um jogo. Só porque no nono ano da escola secundária e no primeiro ano da faculdade ganhava aos rapazes. Fui eliminada no primeiro e único jogo! É necessário dizer, e com toda a verdade que me é possível, que tenho a certeza de ter sido roubada pelo meu adversário.
A derrota mal digerida foi de imediato esquecida quando, ao chegar ao dormitório, Sori, um rapaz de Chicago e de origem indiana, me ofereceu dois bastões de caminhada. Sori recebera-os de duas raparigas que os quiseram despachar – já não precisavam dessas próteses externas. Rob, o inglês que se despedia de Cusco na manhã em que eu me instalei, também deixara material no dormitório. Quando nos cumprimentámos, Rob ainda estava extasiado pelo mesmo trekking que eu desejava fazer. Porém, como a época das chuvas estava a começar – razão pela qual decidi ir directa de São Paulo – o inglês teve ‘azar’: choveu durante os cinco dias...
Meia hora depois, a derrota estava enterrada, para me sentar com Nico – o guia com quem tinha um briefing acerca dos cinco dias e quatro noites seguintes. Só depois fui comprar o que me faltava: água, papel higiénico, alguns snacks – poucos; o pacote incluía as refeições – e um saco, no qual ensaquei a minha parca existência material. Guardei na sala de bagagens do hostal, onde reservei mais duas noites para quando regressasse de Machu Picchu.
Às 3.40h da madrugada seguinte, saía com Nico e mais três raparigas – duas belgas e uma chilena. O espanhol chileno dominava – quase cumpria o meu sonho – já que todas viviam em Santiago do Chile.
“E no desdobre da memória, o viajante indefinido ouve contar-se só a história”, não do cais e do barco d’ ‘o contra-símbolo’ pessoano, mas a história que escutava na minha língua materna. A minha tentativa de dormitar um pouco, durante a viagem de autocarro até Challancha, foi interrompida pela conversa de três jovens a falarem português. Três estudantes do Porto a fazerem um ano de licenciatura em Lima.
Às seis e meia da manhã sentávamo-nos num café de Challancha para o pequeno-almoço; local onde deixaríamos a mochila com o máximo de cinco quilos – o peso que nos era permitido ser transportado pelas mesmas mulas que carregariam as tendas e provisões para o grupo de doze pessoas. O guia Nico fez as apresentações antes de partirmos às 7.40h, hora que começávamos o primeiro de cinco dias com destino a Machu Picchu. O ponto de partida fazia-se a 3300 metros de altitude; durante a caminhada desse dia alcançaríamos os 4600 metros... O campo onde pernoitaríamos seria um pouco mais abaixo, a doze quilómetros de distância.



Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

* ‘Aqui está-se sossegado, longe do mundo e da vida’ – poema de Fernando Pessoa. Este e outros excertos do mesmo poeta ao longo do texto.

Tulipas de Amesterdão




            Nos jardins de Monserrate: tulipas! Nos vasos: tulipas. Num deles, duas em flor: cor-de-laranja com raios de fogo. Sob o céu azul, com farrapos de nuvens brancas e cinzentas, aguardando o arco-íris, as tulipas de Monserrate transportam-me para Amesterdão.
Em Julho de 2009 ganhei um fim-de-semana nessa cidade holandesa. Estava em pulgas. Escutara tanto sobre as bicicletas amarelas da cidade dos canais. Finalmente, também eu tinha o privilégio de pedalar pelas ruas e ruelas que ladeiam o rio Amstel.
Comprámos uma capa de chuva vermelha. O capuchinho-vermelho vagueava feliz, pedalando, pedalando pelo bairro da luz vermelha, pelas praças cheias de gente e gente de muitas origens, com muitos e diferentes estilos de estar. O odor das coffeeshops quase me inebriava. Sem que experimentasse, sentia o efeito dos aromas que me faziam sorrir, quase rir.
Cor-de-laranja forte, a casaca que trouxe de lembrança da cidade mais cosmopolita dos Países Baixos.
A casa de Anne Frank concorria com o Museu van Gogh. Optámos pelo segundo. Apesar do diário da judia me ter marcado durante a adolescência, a fila para aí entrar desmotivou-nos. Dois dias e meio passavam a voar, mesmo que caminhássemos sem medo de errar e desfrutando do sol que entremeava com aguaceiros.
O museu dedicado ao pintor neerlandês era obrigatório, concordámos. Não sabíamos se teríamos nova oportunidade para admirar o auto-retrato com orelha cortada original do pós-impressionista. Era tudo ali. Sábado à tarde, não estava só. Fiz-me acompanhar de sementes de tulipas.
Quando cheguei ao Porto, esperei... Esperei o tempo necessário para plantar as futuras flores. E esperei... até que nas floreiras, o amarelo despontou. Contei até três e a Primavera chegou. E, com ela, as tulipas amarelas de Amesterdão, brotando numa varanda do Porto.
A Primavera... Ainda estamos em Janeiro, mas no jardim de Monserrate: tulipas. Desenham sorrisos naqueles que têm o privilégio de desfrutar deste pequeno e enorme paraíso no meio da cidade.

28 de Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

Um acaso... - Machu Picchu I







Foi (quase) um acaso ter tido o privilégio de contemplar in loco Machu Picchu.
Foi um acaso estar em casa na tarde em que o processo de venda da casa se iniciou: uma terça-feira chuvosa impediu um passeio com L. no Gerês – almoçámos e colocámos a conversa em dia.
Não foi por acaso que a K.R. me convidou para participar num congresso sobre os Jogos Olímpicos em São Paulo, em Outubro de 2014.
Talvez tenha sido um acaso que a marcação dessa viagem ocorresse um dia depois de assinar o contrato de promessa de compra e venda da casa.
Terá sido um acaso encontrar o R.: “Vais ao Chile? Porquê, se queres conhecer algo completamente diferente, o Peru é muito mais interessante”.
Olhei para ele com um sorriso em chama.
Acasos... a vida tem-me mostrado que tudo tem uma razão de ser e para acontecer – assim é, se estiver atenta e se confiar.
Se o clima o tivesse permitido, teria ido pedalar para a serra que mais me enche com L., naquele dia de 12 de Agosto de 2014. Se tal tivesse sucedido, não teria escutado a campainha, nem tão-pouco o vizinho da frente: “Oh vizinha, ainda tem a sua casa à venda? Está aqui um casal meu amigo que está interessado em ver o seu apartamento”. A A. e família entraram e gostaram. Saíram por dois minutos e voltaram a entrar. No fim-de-semana seguinte voltavam para nos comprometermos mutuamente.
Na segunda-feira subsequente havia que marcar a viagem para São Paulo. Uma vez que estava prestes a ficar sem poiso fixo, arrisquei: “É possível marcar a viagem de regresso apenas em Dezembro?” A resposta afirmativa não tardou. E porque não? Sem compromissos laborais, económicos... apenas (e tanto) os laços familiares e de amizade: aqueles que importam e que jamais se perdem quando são verdadeiros e se os soubermos preservar, apesar da distância física.
No início desse mesmo ano, ao efectuar a lista das experiências que gostaria de viver, colocara uma viagem ao Chile no ponto número um. Tal era o meu desejo, que desenvolvi uma curta história – Um corte no pé (ainda por terminar... quem sabe um dia destes) –, na qual a personagem principal aterra em Santiago do Chile. Projectava assim, como que visualizando, a concretização antecipada de um sonho.
Tenho aprendido, todavia, que os planos ‘devem’ ser um esboço flexível e amplamente aberto a novas possibilidades. “Um bom viajante não tem planos fixos nem tão-pouco a intenção de chegar”, crê-se que terá dito Lao Tze, mais ou menos deste modo. Não sei se sou boa viajante, de qualquer maneira, nos últimos anos, tenho voado apenas com duas ou três noites reservadas... de resto, confiando que tudo fluirá.
Assim sendo, quando numa volta de bicicleta parei para beber água no passeio que ladeia a margem do Rio Douro – os bancos de jardim, perto do Clube Fluvial, estrategicamente colocados para contemplar a foz são para mim, sem dúvida alguma, uma das plateias mais bonitas da cidade do Porto... quando a sede me impeliu a uma pausa, vi o R. Já não nos víamos há uma série de anos. Contei-lhe muito satisfeita que estava de viagem marcada para a sua terra natal. O R. abandonou o Brasil há cerca de quinze anos para tentar a sua sorte como instrutor de fitness – um dos profissionais que mais respeitava enquanto andava nessas lides.
Observo-me com  frequência a falar pelos cotovelos, em particular quando algo extraordinário está para acontecer. Era o caso. Ia viajar pela América do Sul por quase três meses, quase por acaso. E ia ao Chile, dizia eu muito satisfeita ao R. “Ao Chile? Porquê? Se o teu objectivo é conhecer lugares e culturas distintas, porque não antes o Peru? Nesse país ainda encontras cidades, lugares, pessoas com modos de vida realmente diferentes dos que estamos habituados”. Presume-se, e bem, que estas palavras são minhas, mas esta era a ideia da mensagem do R. E guardei. Só embarcaria para São Paulo daí a três semanas. Até lá poderia traçar um proto-itinerário de viagem.
Despedi-me do R. com um abraço. No instante seguinte já estava a viajar pelo Peru, com a música de regresso aos ouvidos e pedalando e cantando.
Quase todas as viagens começam muito antes de se embarcar. Preparar, visitar virtualmente ou através de livros os locais que se pretende conhecer são já formas de nos deslocarmos para o futuro. Quase antecipando o contentamento de tocar o solo de um porvir que se deseja próximo. A vida também me vem transmitindo que as expectativas são projecções a evitar. Como quase todas as suposições, especulações e outras formas de ‘futurização’. Não estou a ser contraditória. Nessa preparação, procuro desviar-me das expectativas ou de esperar isto ou aquilo em relação à beleza dos lugares ou ao que as pessoas possam vir a fazer ou a dizer. Os meus devaneios direccionavam-se, sobretudo, para o privilégio que já estava a experienciar.
Naquele momento eu estava na posição singular de optar pelo Chile ou escutar a sugestão do R. e ir ao Peru. E se a hipótese de ir ao Peru era confirmável, o primeiro destino que naturalmente me ocorreu foi Machu Picchu.
No dia seguinte comprei a passagem de avião desde São Paulo para Cusco, a cidade peruana mais próxima de uma das maravilhas mais maravilhosas do planeta.


Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

Mais um dia...*







Este ano, o mês de Fevereiro é maior. Vai até ao dia 29. Em 2016, a minha querida tia Maria pode comemorar o seu aniversário. Parabéns, tia Maria! Estou certa que o leitor/a leitora também estará satisfeito ou satisfeita por parabenizar a senhora de Nogueira do Cravo, cuja idade cronológica é difícil de desvendar.
Sendo bissexto, 2016 concede-nos então mais um dia. Em vez de 365, temos 366 dias. Mais um dia. Mais vinte e quatro horas. Mais 1140 minutos. Mais 36 mil e 400 segundos. E fico-me por aqui na contabilização que o homem configurou para o tempo. Essa coordenada antropológica que, de tão relativa, por vezes me provoca algumas questões, indagações, dúvidas... quanto à sua efectiva ‘realidade’. Relevante, para mim, é a oportunidade que cada pessoa tem para tornar a sua vida mais rica: mais um dia, mais vinte e quatro horas, mais 1140 minutos - um quase nada que pode fazer uma grande diferença.
Um dia mais para ser quem se deseja ser, por ventura um pouco melhor que no dia anterior. Um dia mais para se estar com quem se gostaria de estar, quem sabe uma ocasião mais para demonstrar a quem importa como esse alguém é importante. Vinte e quatro horas mais para, por exemplo, contemplar o céu azul, o lusco-fusco e, pela noite, as estrelas - com sorte uma daquelas que caiem, deixando atrás de si um lastro que, sendo visível, nos transporta para outra dimensão.
Mais um dia que se pode partilhar com alguém com quem há muito se pretende estar, mas que a cada dia se adia ad eternum. Muitas vezes nem se sabe porquê. Algo que nos terá distraído sem que nos apercebêssemos. Algo tão rotineiro, tão sem pensar que nem marca na memória terá deixado. Que nem uma memória se tem para recordar como se gastaram os minutos, horas e até dias de vida.
A vida... A vida que, sendo uma dádiva, nem sempre se celebra. Se o leitor/a leitora me permite, partilho uma reflexão pessoal. Tem precisamente a ver com o tempo: o modo como ele passa por mim ou como eu o experiencio.  Que tipo de marca ou memória guardo em cada dia, em cada vinte e quatro horas mais que vivo?
Escuto muitas vezes que é necessário criar rotinas para isto, para aquilo e aqueloutro. Também tenho as minhas rotinas. As rotinas são, aliás, hábitos que se instalam para que não se perca tempo a pensar como começar o dia, por exemplo, para sair de casa para o trabalho. Uma tarefa diária atrás da outra, um roteiro em modo automático, para que tudo seja realizado sem falhas até se chegar ao local de trabalho. E, já no emprego, outras rotinas, outros hábitos que se terão cristalizado ao longo do tempo para que, mais uma vez, em modo quase automático, se comecem as tarefas ditas relevantes de mais uma jornada. Rotinas, hábitos que nos oferecem a segurança suficiente para nos focarmos então no que é eventualmente importante.
Todavia - e existem quase sempre mas -, que memórias se tem desse tempo vivido em rotinas? E quando as rotinas ultrapassam o tempo ‘útil’ do dia? E quando o dia é ele próprio uma rotina? Não gravando, por isso, qualquer marca digna de se tornar memória?
Se as memórias das pessoas, experiências, lugares e leituras que vivo são aquilo que me auxiliam a ser mais pessoa, questiono-me sobre a possibilidade de desconstruir e destruir rotinas para, então, reflectir sobre o ‘quê’ e o ‘quem’ e o ‘como’ integrar no meu dia. Dessa maneira, tenho a possibilidade de me organizar de forma consciente. Tenho, pois, reflectido no que me parece primordial viver em cada dia sem, com isso, criar propriamente uma rotina, sem, por isso, ‘rolar’ em modo automático. Não sou um autómato!
Decidi então acordar em cada dia à hora que o corpo desejasse. No dia em que escrevo esta crónica, o corpo despertou às 7.17h. Uma hora que me permite, tranquila e conscientemente, desfrutar da primeira refeição da manhã e preparar-me, sem pressa, para me dedicar ao trabalho. Poderá o leitor/a leitora ripostar de forma irascível: sim, sim, como se fosse possível despertar à hora que se quer e fazer o que se quer...
Será que não?
Dando segurança, as rotinas podem ser, com efeito, difíceis de colocar de parte. Até porque se eu não tiver rotinas sou ‘obrigada’ a pensar em cada momento no quê e como tenho a realizar, a ser. Mas é possível. E é possível escolher entre ir pelo mesmo caminho todos os dias, ou variar, nem que seja uma rua ou viela e, assim, observar e cumprimentar um vizinho ou vizinha. E assim observar que afinal nunca reparara que esta ou aquela casa está diferente, muito mais luminosa: o seu jardim está mais florido. E reparar numa criança a brincar ou atentar em alguém que precisa de ajuda para transportar os sacos. Ou reparar nas próprias pernas mais ágeis nesse dia. Sentir a respiração e perceber... que se está vivo! E lembrar do caminho efectuado do ponto A para o ponto B. Tão-somente porque, nesse trajecto, o sorriso de alguém em quem se reparou foi o suficiente para gravar um instante na memória. Um dia com uma marca, uma lembrança. E não um dia em vão... E a vida é uma graça que não está seguramente garantida... Por mais rotinas que se tenham e nos dêem a sensação de segurança.

*Este texto foi publicado no Jornal 'O Chapinheiro'

Atrapa sueños - Bogotá III



Despedi-me de Bogotá com um “até muito breve!”. Em Dezembro de 2104, procurava alguns regalos pelas ruas da La Candelaria. Parei numa feira de artesanato. Produtos e artefactos dos Andes. Pulseiras, colares e brincos de todas as cores a preços convidativos. Lembranças leves e pouco espaçosas que podia e desejava adquirir para, à chegada a Portugal, oferecer às pessoas de quem gosto, demonstrando-lhes assim que me lembrara delas e que sim senhora, gosto muito de vocês.
De entre a panóplia multicolor exposta, os brincos com borboletas e as pulseiras ‘atrapa sueños’ foram os acessórios que mais me cativaram. Os primeiros eram peças sui generis – brincos elaborados com as bagas que os eucaliptos suavemente soltam para o solo. Ali estavam sobre o balcão de venda, trabalhadas por mãos inspiradas, que as haviam transformado em objectos de decoração corporal. Brincos com borboletas incrustadas – um do símbolos da Colômbia. Comprei vários pares com borboletas azul índigo – aquelas que me provocam anseios e desejos de também eu me metamorfosear. Como comprei três pares, a jovem vendedora ofereceu outro para mim própria – agradeci com um sorriso ainda mais largo.
Ainda mais, uma vez que a mesma ‘señorita’ me concedera anteriormente uma pulseira ‘atrapa sueños’. Encantada com esse objecto fino de protecção, escolhi uma dezena para as amigas, não resistindo em obter uma para mim. Presenteou-me, colocando ela mesma a pulseira, apertando com três nós ao pulso, enquanto murmurava palavras que me soavam encantatórias, como uma lenga-lenga a enviar protecção e boa-sorte. Uma pulseira com uma teia a imitar a de aranha, onde os sonhos são guardados; uma pulseira que protege dos pesadelos, agarrados que ficam na teia, firmemente entrelaçada.
A minha permaneceu no pulso até Junho seguinte, quando regressei a Bogotá após mais um retiro de Vipassana. Durante esses dez dias de silêncio resolvi retirar todas as pulseiras – tinha uma série delas, cada uma com a memória de um lugar e de uma pessoa ‘atrapada’ no meu coração. Várias da viagem do ano anterior, cujas recordações sorridas me instigaram a regressar ao país da América do Sul que até ao momento mais me encheu. E a cidade de Bogotá, com as suas gentes é, sem dúvida, malgrado a fama de perigosa, um dos lugares que me faz sentir em casa.
Em Dezembro de 2014, além do teatro e das aulas de salsa e das corridas sofridas pela altitude, calcorreei a Séptima. A ‘Carrera Séptima’ é uma das principais artérias que percorre a capital colombiana de norte a sul, sendo na mesma que se encontram algumas das principais atracções turísticas, nomeadamente o Museo del Oro, o Museo Nacional, o Planetário, o Parque Nacional – onde corri e corri e fraquejei e fraquejei... – entre outros edifícios, como seja a La Catedral de la Inmaculada Concepción.

Sabia de antemão que o Museo del Oro era imperdível. Informação obtida no Peru, através de outros viajantes que por aí haviam passado. E, com efeito, as peças de ouro, expostas nas salas organizadas por épocas, não deixam ninguém indiferente. É possível compreender a história das tradições andinas, assim como a evolução da arte de trabalhar esse mineral tão precioso, quanto cobiçado. De facto, as vidas que se perderam aquando da chegada – uma forma suave de dizer invasão pouco pacífica... – dos espanhóis, reflectem parte dessa avidez. Foi a sala de cosmologia e simbolismo que mais me atraiu. O xamanismo encanta-me e o modo como este tema é explorado no museu transportou-me para épocas ancestrais.

Para além deste museu, aproveitei a entrada gratuita no Museo Botero, no qual se encontra a obra e colecção do artista plástico Fernando Botero. Um Maestro de Medellin, muito apreciado e admirado em todo o país. A forma como explorou as proporções e dimensões das figuras é uma das suas marcas artísticas quer na pintura, quer na escultura, sendo a sua obra facilmente reconhecida.

Mas foi no Planetário que a criança que em mim habita mais se regozijou. As histórias e mitos por detrás das constelações enfeitiçaram-me de tal maneira, que projectei no meu querido sobrinho mais velho, o G., o desejo de estudar e saber mais acerca do céu nocturno. Comecei nesse mesmo Natal de 2014, oferecendo-lhe um livro sobre o assunto. Posteriormente, levei-o para uma visita aos Planetários de Espinho e do Porto. Quando as noites se tornarem mais longas e agradáveis vamos observar o céu do Porto com o seu telescópio. Quem sabe as duas ursas nos mostrem a posição da estrela polar... para melhor apreender o sentido do sul...


Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal