Longe do mundo... - Machu Picchu II


“Aqui está-se sossegado, longe do mundo e da vida”*. Ali estava sossegada, no centro da Natureza e da existência. Cheia de não ter passado, sem futuro – nada existia para além do meu peito, onde o coração se agitava em arritmia. Subia e subia, progredindo em altitude em cada passo cada vez mais lento. Não era apenas por reacção fisiológica à altitude. Ali, estava cheia e o coração batia tumultuosamente – estava viva. Caminhando... devagar. Ascendia pelo Salkantay trekking. O primeiro de cinco dias para, no último, chegar ao destino: a montanha de Machu Picchu; aquela onde, em 1911, Hiram Bingham encontrou as ruínas da civilização Inca.
Foi por sugestão de H. – que me recebeu juntamente com A., alguns dias em sua casa em São Paulo, depois do congresso – que optei pelo Salkantay trekking em vez do Inca Trail – o trekking mais famoso, mais turístico, mais oneroso (o triplo do valor do Salkantay trekking, apesar de também mais curto: três dias). Além disso, é usual ser necessário reservar com alguns meses de antecedência.
No dia em que fiz o check-in no hostal em Cusco – a minha estreia num albergue – reservei e paguei o meu lugar num grupo que sairia para o Salkantay trekking daí a dois dias. O tempo que me pareceu suficiente para me aclimatar minimamente. Afinal, acabara de aterrar em Cusco – a mais de três mil metros de altitude – e sentia-me exausta fisicamente. Com o pacote que comprara atingiria mais de quatro mil e seiscentos metros. Era a primeira vez que o meu corpo experimentaria os efeitos de caminhar tão alto.
Na véspera do trekking participei num torneio de ping-pong no Pariwana hostal. Achava eu que teria hipótese de ganhar pelo menos um jogo. Só porque no nono ano da escola secundária e no primeiro ano da faculdade ganhava aos rapazes. Fui eliminada no primeiro e único jogo! É necessário dizer, e com toda a verdade que me é possível, que tenho a certeza de ter sido roubada pelo meu adversário.
A derrota mal digerida foi de imediato esquecida quando, ao chegar ao dormitório, Sori, um rapaz de Chicago e de origem indiana, me ofereceu dois bastões de caminhada. Sori recebera-os de duas raparigas que os quiseram despachar – já não precisavam dessas próteses externas. Rob, o inglês que se despedia de Cusco na manhã em que eu me instalei, também deixara material no dormitório. Quando nos cumprimentámos, Rob ainda estava extasiado pelo mesmo trekking que eu desejava fazer. Porém, como a época das chuvas estava a começar – razão pela qual decidi ir directa de São Paulo – o inglês teve ‘azar’: choveu durante os cinco dias...
Meia hora depois, a derrota estava enterrada, para me sentar com Nico – o guia com quem tinha um briefing acerca dos cinco dias e quatro noites seguintes. Só depois fui comprar o que me faltava: água, papel higiénico, alguns snacks – poucos; o pacote incluía as refeições – e um saco, no qual ensaquei a minha parca existência material. Guardei na sala de bagagens do hostal, onde reservei mais duas noites para quando regressasse de Machu Picchu.
Às 3.40h da madrugada seguinte, saía com Nico e mais três raparigas – duas belgas e uma chilena. O espanhol chileno dominava – quase cumpria o meu sonho – já que todas viviam em Santiago do Chile.
“E no desdobre da memória, o viajante indefinido ouve contar-se só a história”, não do cais e do barco d’ ‘o contra-símbolo’ pessoano, mas a história que escutava na minha língua materna. A minha tentativa de dormitar um pouco, durante a viagem de autocarro até Challancha, foi interrompida pela conversa de três jovens a falarem português. Três estudantes do Porto a fazerem um ano de licenciatura em Lima.
Às seis e meia da manhã sentávamo-nos num café de Challancha para o pequeno-almoço; local onde deixaríamos a mochila com o máximo de cinco quilos – o peso que nos era permitido ser transportado pelas mesmas mulas que carregariam as tendas e provisões para o grupo de doze pessoas. O guia Nico fez as apresentações antes de partirmos às 7.40h, hora que começávamos o primeiro de cinco dias com destino a Machu Picchu. O ponto de partida fazia-se a 3300 metros de altitude; durante a caminhada desse dia alcançaríamos os 4600 metros... O campo onde pernoitaríamos seria um pouco mais abaixo, a doze quilómetros de distância.



Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal

* ‘Aqui está-se sossegado, longe do mundo e da vida’ – poema de Fernando Pessoa. Este e outros excertos do mesmo poeta ao longo do texto.

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