Tempo fugaz e
fragmentado. Assim voam numa velocidade estonteante as horas, os dias... os
anos – quando os sonhos estão presos, não nos atrapa sueños, mas em paredes de betão. Pedras, quantas vezes cinzentas,
que não sabem que o sonho* é uma constante da vida bem concreta e que, só por
medo, pouco definida.
As sombras
silenciosas que as nuvens desenhavam nos cumes pintados de branco ressoavam no
meu ser como um novelo infinito de horas lentas e espessas.
Os doze
quilómetros de caminhada pela cordilheira andina conduziram-nos ao acampamento
já montado. Dois grupos, dois guias. Nico e Edgar
organizavam o jantar. Para o nosso grupo, metade das refeições era em modo
vegetariano. Até ao momento em que abri este caderno, para traçar as memórias
de final de Outubro de 2014, foi a mesa mais vegetariana em que me sentei
(aparte dos retiros de meditação e restaurantes do género). Há que dizer que,
durante esses dias pelos Andes, comi realmente muito bem – quem diria... numa
cozinha improvisada. Os cozinheiros mereciam todos os dias palavras muito
elogiosas, concretizadas numa ‘propina’ final à altura.
O ribeiro manso
em serenos sobressaltos, sem pinheiros altos, mas com vegetação verde e oiro,
agitando-se numa penumbra cada vez mais azulada, anunciava o descanso do
guerreiro. Eram sete e meia da noite quando me instalei na tenda com Lúcia. Uma
das vegetarianas, mãe de uma jovem brasileira – Melissa – que se fazia
acompanhar do namorado australiano.
Oh, que dia!
Eles não sabem nem sonham que o sonho comanda a vida. Que sempre que um homem
sonha, nem sempre o mundo pula, nem sempre avança. Pelo menos nas altas
montanhas andinas. Muito pouco sonhei nessas noites que partilhei a tenda com a
senhora brasileira. A mais velha do grupo e sem ninguém com quem conversar a
não ser a filha e eu própria – e mesmo assim mal.
Alguns dias
antes, quando em São Paulo, em casa de H. e A., fui
informada que, para além dos idiomas que procuro ir melhorando a cada dia,
falava mais um. Dizia a empregada do casal que me recebeu: “Oi, Ana, você fala
muito bem português!” – Claro, sou portuguesa! – respondi... Nessa época já me
rendera ao inevitável; no país irmão, o meu falar era lento e com o máximo de
sotaque e recorrendo ao uso dos pronomes pessoais e reflexos no modo
‘brasileiro’. Por isso, Lúcia tinha em mim alguém com quem conversar e alguém
que a escutava... oh, como a escutava, em particular durante a noite, quando o
seu respirar nada tinha de musical; pelo contrário, ultrapassava o razoável...
A música foi
magistral ao segundo dia. A tela, a cor e o pincel da paisagem mágica do dia
seguinte – uma bebedeira sob o azul celeste, em contraponto com a sinfonia
verde e a água a cantar.
‘Kokoro’ – o coração
da natureza estava na música que uma das caminhantes do grupo, Hanuku, soprava
pela sua flauta pan. ‘En’ – a energia que eu sentia na melodia que roçava em
cada poro da minha pele, no vale que a japonesa nos presenteou, como uma
passarola pára-raio, locomotiva, desembarque em foguetão na superfície lunar.
A hora ainda
não era de luar, mas de contemplação das regiões que desejava desérticas no meu
coração. Talvez assim criasse espaço para as notas douradas que, num compasso
de dança colombina e arlequim, me encantavam como uma bola colorida.
Ah... eles não
sabem, nem sonham que, nas pedras em que me sentava, todos os meus sentidos
convergiam para a brisa de uma flauta pan que tocava no centro do universo – a
cordilheira dos Andes. Naquele momento nada mais existia. Só muito mais tarde
me lembrava que caminhava lenta e serenamente em direcção a Machu Picchu.
Janeiro, 2016
Matosinhos, Portugal
* Intertexto com ‘Pedra
Filosofal’, de António Gedeão
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