Fotografia de Pedro Pereira |
Querida
Avó Altina!
Foste
embora. Não sem antes nos despedirmos. Quando me viste na véspera de ires: “Oh,
minha querida neta do meu coração... Vieste despedir-te de mim...” Olhei para
ti e compreendi. Os teus olhos ainda mais pequeninos e muito vermelhos isso me
sugeriram. Um fio, apenas, te prendia a este mundo. A tristeza envolveu-me, ao
mesmo tempo que uma bênção me abraçava: escutara a tua voz nos dias anteriores
e fui despedir-me.
Estavas
presa a uma cadeira. Tiraram-te a autonomia, sentias. Protegiam-te das quedas,
diziam. Estavas presa. Estavas protegida.
Deixaras
de ser aquela pessoa alegre, livre e independente que todos admirávamos. Uma
das irmãs coragem. A tua coragem mantinha-se, sem dúvida. Por isso compreendia
a tua angústia, o teu desalento, a tua inércia... Estavas onde te haviam
largado. Estavas onde te haviam protegido de ti própria. Mesmo que essa não
fosse a tua vontade.
Os teus
noventa e cinco anos tão cheios... Mas as tuas pernas, os teus pés... Já não
tinham força para se elevarem o suficiente nas tuas parcas deslocações. Por
isso, as quedas eram cada vez mais frequentes. Aquelas que assustavam cada vez
mais aqueles que te amavam. E se caísses enquanto estivesses sozinha? E se te
acontecesse alguma coisa e ninguém te pudesse acudir?
E ninguém
estava disponível... Nem recebendo um pagamento para cuidar de ti... Na tua
casinha. Não se encontrou ninguém para ficar contigo a tempo inteiro.
Foste para
uma casa comunitária, onde estavam outras pessoas velhinhas como tu e a
necessitaram de cuidados continuados. Não querias. A tua voz implorou tantas
vezes e com tanta urgência: “Quero ir para a minha casinha”. Ninguém conseguiu
dar ouvidos ao teu pedido, que afinal não era assim tão simples.
E
começaste a recusar-te a participar nas actividades organizadas, naquelas que
entretêm e ajudam a passar o tempo. E começaste a recusar a alimentares-te o
suficiente. Ninguém reparou?
Só eu é
que terei reparado que estavas a gritar com o teu silêncio, com as tuas
recusas?
E
decidiste. Já que não podias estar na tua casinha, livre e descansada, então
mais valia partir. E a comida diminuiu ainda mais e nada mais havia a fazer a
não ser esperar que a vida ela própria te escutasse, terminando-se... E assim
foi. E foste. E partiste. Corajosamente, no teu tempo, porque assim quiseste.
Querida
avó, dizem que as desculpas se evitam. Mesmo assim, eu peço-te desculpa!
Desculpa por não ter tido o discernimento suficiente para ficar contigo, na tua
casinha, nos últimos meses da tua vida, evitando, assim, que morresses no
hospital, por falência total dos órgãos. Morreste do coração, disseram. E com
efeito, foi uma dor no teu coração... Morreste de tristeza...
Desculpa
não ter tido o discernimento suficiente para ficar contigo na tua casinha,
mesmo que tal chocasse quem por ventura poderia tê-lo feito.
Bem sei
que escrever isto é admitir que estou triste por esse por ventura.
Todavia,
estou sobretudo triste por te ter visto, a ti e a outras pessoas, numa sala de
entretenimento. Passivas. As pessoas ali estavam, sedadas, à espera que as
horas de cada manhã passassem. Passivas, à espera que as horas de cada tarde
passassem. Cada dia a passar lenta e demoradamente, sem se sentirem. Mas tu
sentias. Eu senti a tua tristeza. Desculpa, minha querida avó, por não ter
ficado contigo... Na tua casinha.
É isto que
somos capazes de proporcionar aos nossos velhos? Àqueles que nos deram vida,
que cuidaram de nós? Àqueles que nos ajudaram a crescer... A ser?
Enquanto
escrevo, as lágrimas turvam os olhos e mal consigo perceber as palavras
gatafunhadas. Mas o que escrevo é o que está cá dentro: uma tristeza imensa por
não saber se saberei tratar dos meus futuros velhos... Não é ‘apenas’ por isso.
Que pessoas somos hoje, que não temos tempo para tratar daqueles que trataram
de nós?
É mesmo
assim? Sedar os velhos, deixá-los numa sala à espera que as horas passem por
eles? À espera que a morte os receba... Finalmente.
Oh,
vó...querida avó.
15 de Fevereiro, 2016
Matosinhos, Portugal
Muito bonito!
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