Mais um dia...*







Este ano, o mês de Fevereiro é maior. Vai até ao dia 29. Em 2016, a minha querida tia Maria pode comemorar o seu aniversário. Parabéns, tia Maria! Estou certa que o leitor/a leitora também estará satisfeito ou satisfeita por parabenizar a senhora de Nogueira do Cravo, cuja idade cronológica é difícil de desvendar.
Sendo bissexto, 2016 concede-nos então mais um dia. Em vez de 365, temos 366 dias. Mais um dia. Mais vinte e quatro horas. Mais 1140 minutos. Mais 36 mil e 400 segundos. E fico-me por aqui na contabilização que o homem configurou para o tempo. Essa coordenada antropológica que, de tão relativa, por vezes me provoca algumas questões, indagações, dúvidas... quanto à sua efectiva ‘realidade’. Relevante, para mim, é a oportunidade que cada pessoa tem para tornar a sua vida mais rica: mais um dia, mais vinte e quatro horas, mais 1140 minutos - um quase nada que pode fazer uma grande diferença.
Um dia mais para ser quem se deseja ser, por ventura um pouco melhor que no dia anterior. Um dia mais para se estar com quem se gostaria de estar, quem sabe uma ocasião mais para demonstrar a quem importa como esse alguém é importante. Vinte e quatro horas mais para, por exemplo, contemplar o céu azul, o lusco-fusco e, pela noite, as estrelas - com sorte uma daquelas que caiem, deixando atrás de si um lastro que, sendo visível, nos transporta para outra dimensão.
Mais um dia que se pode partilhar com alguém com quem há muito se pretende estar, mas que a cada dia se adia ad eternum. Muitas vezes nem se sabe porquê. Algo que nos terá distraído sem que nos apercebêssemos. Algo tão rotineiro, tão sem pensar que nem marca na memória terá deixado. Que nem uma memória se tem para recordar como se gastaram os minutos, horas e até dias de vida.
A vida... A vida que, sendo uma dádiva, nem sempre se celebra. Se o leitor/a leitora me permite, partilho uma reflexão pessoal. Tem precisamente a ver com o tempo: o modo como ele passa por mim ou como eu o experiencio.  Que tipo de marca ou memória guardo em cada dia, em cada vinte e quatro horas mais que vivo?
Escuto muitas vezes que é necessário criar rotinas para isto, para aquilo e aqueloutro. Também tenho as minhas rotinas. As rotinas são, aliás, hábitos que se instalam para que não se perca tempo a pensar como começar o dia, por exemplo, para sair de casa para o trabalho. Uma tarefa diária atrás da outra, um roteiro em modo automático, para que tudo seja realizado sem falhas até se chegar ao local de trabalho. E, já no emprego, outras rotinas, outros hábitos que se terão cristalizado ao longo do tempo para que, mais uma vez, em modo quase automático, se comecem as tarefas ditas relevantes de mais uma jornada. Rotinas, hábitos que nos oferecem a segurança suficiente para nos focarmos então no que é eventualmente importante.
Todavia - e existem quase sempre mas -, que memórias se tem desse tempo vivido em rotinas? E quando as rotinas ultrapassam o tempo ‘útil’ do dia? E quando o dia é ele próprio uma rotina? Não gravando, por isso, qualquer marca digna de se tornar memória?
Se as memórias das pessoas, experiências, lugares e leituras que vivo são aquilo que me auxiliam a ser mais pessoa, questiono-me sobre a possibilidade de desconstruir e destruir rotinas para, então, reflectir sobre o ‘quê’ e o ‘quem’ e o ‘como’ integrar no meu dia. Dessa maneira, tenho a possibilidade de me organizar de forma consciente. Tenho, pois, reflectido no que me parece primordial viver em cada dia sem, com isso, criar propriamente uma rotina, sem, por isso, ‘rolar’ em modo automático. Não sou um autómato!
Decidi então acordar em cada dia à hora que o corpo desejasse. No dia em que escrevo esta crónica, o corpo despertou às 7.17h. Uma hora que me permite, tranquila e conscientemente, desfrutar da primeira refeição da manhã e preparar-me, sem pressa, para me dedicar ao trabalho. Poderá o leitor/a leitora ripostar de forma irascível: sim, sim, como se fosse possível despertar à hora que se quer e fazer o que se quer...
Será que não?
Dando segurança, as rotinas podem ser, com efeito, difíceis de colocar de parte. Até porque se eu não tiver rotinas sou ‘obrigada’ a pensar em cada momento no quê e como tenho a realizar, a ser. Mas é possível. E é possível escolher entre ir pelo mesmo caminho todos os dias, ou variar, nem que seja uma rua ou viela e, assim, observar e cumprimentar um vizinho ou vizinha. E assim observar que afinal nunca reparara que esta ou aquela casa está diferente, muito mais luminosa: o seu jardim está mais florido. E reparar numa criança a brincar ou atentar em alguém que precisa de ajuda para transportar os sacos. Ou reparar nas próprias pernas mais ágeis nesse dia. Sentir a respiração e perceber... que se está vivo! E lembrar do caminho efectuado do ponto A para o ponto B. Tão-somente porque, nesse trajecto, o sorriso de alguém em quem se reparou foi o suficiente para gravar um instante na memória. Um dia com uma marca, uma lembrança. E não um dia em vão... E a vida é uma graça que não está seguramente garantida... Por mais rotinas que se tenham e nos dêem a sensação de segurança.

*Este texto foi publicado no Jornal 'O Chapinheiro'

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