A amiga louca sempre nas nuvens...



... um corte no pé XI 
Sou louca, dizem. Navego nas nuvens. Não é metafórico. Viajo de avião com frequência. Todavia, calculo que não seja essa a razão da alcunha preferida dos amigos. As nuvens são, com efeito, um lugar – chamo-lhe assim – deveras interessante. A sua textura húmida é-me familiar. O ano passado, por exemplo, estive sobre um mar branco esponjoso. Subi ao Toubkal. Pernoitei com a minha amiga Margarida em Imlil, a vila marroquina na base da montanha mais alta do Norte de África. Começáramos o nosso périplo por terras marroquinas em Casablanca duas semanas antes.
Uma das noites foi no deserto, em Merzouga. O camelo foi o nosso meio de transporte nas dunas até ao campo de expedição. As oscilações, quase até ao vómito no percurso, não nos impediram de gozar essoutro mar arenoso sob o céu estrelado. Descalças nas areias douradas pouco dormimos. Até porque a minha amiga estava receosa: não fosse um qualquer escorpião acordar-nos à força. Mitos ou não do deserto, a verdade é que depois do jogo de cartas nocturno com as holandesas que nos acompanhavam nessa aventura, pouco dormimos. Também, quem no seu perfeito juízo perderia uma noite no deserto do Sahara?
Improvisámos, então, uma cama ao relento para melhor desfrutar dessa experiência, talvez, única. Contámos estrelas cadentes – foram suficientes para enumerar os nossos desejos: alguns já se cumpriram. Duas horas depois das pestanas se terem unido, despregavam-se e sentimo-nos impelidas a subir a duna mais alta antes dos primeiros raios de sol – o palco perfeito para contemplar o amanhecer.
Marrocos é um daqueles países que se ama ou se detesta. Um jargão que escuto amiúde. Abstenho-me de tecer juízos de valores. Para mim, cada lugar tem os seus encantos. Na minha perspectiva, o fundamental é desfrutar e captar amorosamente cada momento que me é concedido. Por isso, ir a Marrocos e não passar por Imlil, seria quase como ir a Roma e não ver o Papa (outro jargão – já se sabe: nunca vi o Papa!). Nessa vila, ficámos muito bem instaladas e calcorreámos as ruas e vielas até ao anoitecer.
Deitámo-nos com as galinhas (como o namorado da minha amiga Margarida gosta) para nos levantarmos antes do seu cacarejar. A nossa intenção era contemplar o nascer do sol durante o percurso ascendente. Foi maravilhoso! O caminho rugoso e verdejante contrastava com a paisagem desértica que dominara a viagem nos dias anteriores.
Nessa ainda noite, as horas sobre passos lentos e conscientes iam cedendo lugar ao dia, à medida que progredíamos nas curvas de nível. O céu ia transmudando. O azul índigo rasgava-se por uma linha vermelha que, mais veloz que o desejável, passava a laranja tornando-se então dourada: o sol ia despontando. Aos primeiros instantes da aparição da esfera de fogo sentámo-nos. Valia a pena uma pausa para assistir ao espectáculo – mesmo que diário, não deixa de ser um espectáculo arrebatador. No ‘Canto dos Seres’, de Pedro Sinde, encontrei uma descrição maravilhosa que me sinto compelida a partilhar:
“Estamos a meio da noite, no momento mais profundo da escuridão; subitamente começamos a ver surgir no horizonte uma luz que se vai intensificando; aparece gradualmente um fogo mil vezes mais intenso do que o de qualquer uma das estrelas que vogam no céu. A luz dessa fogueira é tal que ilumina a terra inteira num resplendor doirado. Não seria um milagre espantoso? Não tremeríamos de emoção e admiração perante tal mistério: uma fogueira surgindo subitamente, inesperadamente, do mais profundo da noite? É, porém, isso que a cada dia se repete: o nascer do sol - uma fogueira que do mais profundo da noite nos vem iluminar a terra imensa. Assim saibamos nós ter olhos para ver e alma para contemplar”.
Eu e a minha amiga Margarida estávamos em sintonia. Nada é garantido, nem tão-pouco o nascer do sol, muito menos no Toubkal. A nossa já altitude permitia-nos igualmente estar acima das nuvens, acima dos homens: é consolador a gente sentir-se de quando em quando... acima dos homens – como diria Manuel Laranjeira.



Desde o Chile


... Um corte no pé X



            A viagem ao Chile. Calculo que tu, leitor ou leitora queiras saber um pouco mais. Afinal, pouca informação te terá dado a minha querida namorada Margarida, de quem com efeito sinto tremendas saudades. É natural. Sou português e o sentimento da saudade deve estar impregnado nos meus genes, assim como nos meus conterrâneos. E tu leitora ou leitor, costumas viver esse sentimento amiúde? Confesso que tento desviar-me da saudade: mostra-me o quão importante são os afectos, ao ponto de se tornarem mais do que isso e de se transformarem em autênticas algemas. Felizmente, no que à minha namorada concerne, a saudade mútua não nos impede de sermos e estarmos como ambos queremos.
O mesmo não posso dizer da minha figura maternal. Sim, já terás uma mínima ideia da minha idade; mas os meus vinte e nove anos não impedem que a minha mãe me continue a ver como o seu lindo e muito querido menino: “Ai, o meu Jorginho... será que se alimenta em condições? Será que tem onde dormir? Onde andará ele?” – guardaste, leitor ou leitora? Ainda não te tinha revelado o meu nome: Jorge. Dou-te mais alguma informação. Tenho 1,85 m – só para ficares com uma pequena imagem da minha longa e esguia (sim, esguia, mas não menos atlética) estatura.
            Aquelas e outras questões são muito vívidas e poderás perguntar, leitor ou leitora como se gerem. Não se gerem. Aceitam-se! Assim como aceito as minhas próprias questões, também essas no âmbito existencial. Terás até percebido, leitor ou leitora, que terão sido essas dúvidas que me terão conduzido até Santiago do Chile. O frio que sentia em Janeiro foi apenas um pretexto. Sentia-me um tanto esgotado do ram ram do meu emprego. Todos os dias entrava às nove da manhã no banco e todos os dias chegava a casa a hora incerta, depois de ter atendido uma série de rostos tão impessoais que não sou capaz de te traçar uma fisionomia com acerto.  
Bom, na realidade, é provável que tal também se deva ao facto de enquanto no balcão tentar uma outra realidade. Viste o filme ‘A Vida secreta de Walter Mitty’, leitor ou leitora? O meu caso era efectivamente muito semelhante, com a diferença de me observar, qual espectador confortavelmente instalado numa nuvem. Não é raro que esta atitude onírica me coloque em situações embaraçosas e chego mesmo a duvidar-me no estado em que me encontro. Tal como Lao Tsé questionou depois de sonhar ser uma borboleta: ao acordar viu que afinal era um homem. Nesse momento, não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser um homem. Às vezes eu não agarro o sonho; outras vezes não desperto... da realidade. Prefiro-me no sonho – e nas nuvens! Por isso, voei até ao Chile e daí para outros lugares – dar-te-ei pormenores a seu tempo.
Pergunto-me, então, quando observo em complacência a brancura macia sob os meus pés: estarei nas nuvens ou as nuvens estarão em mim? De que substância é feita a felicidade? De que substância é feita a liberdade? Calma, leitor ou leitora! Nem sempre divago sobre essas questões, pese embora tal me ocupe com certa frequência. De qualquer modo, é a planar nas nuvens que me sinto realmente bem. Diria mesmo que esse é um dos meus lugares preferidos: a paisagem é quase sempre singularmente extraordinária. Não é por isso estranho que aí me deseje o mais tempo possível.
Se pudesse manter-me-ia sempre nesse plano – a vista tende a ser muito mais abrangente. Consigo ter uma perspectiva global da realidade e não me retenho no que é normalmente acessório. Senti isso o ano passado na Madeira – onde fiz o baptismo de vôo de parapente. Como era a primeira vez, saltei acompanhado de um monitor. O vento nesse dia era brando, mas o suficiente para subir, subir bem alto. E do alto das nuvens, com o mar azul sob os meus pés, deslumbrei-me com a ilha das flores.
No parapente, qual sofá aéreo e sem chão, contemplei os socalcos de cultivo, as veredas e escarpas, as praias de cascalho e ao fundo o Vale do Curral das Freiras. “És doido, Jorge”, escutei quase de imediato. Ora, quem como eu já saltou de para-quedas, sabe perfeitamente que o vôo de parapente em tandem é para meninos. Foi o meu pai, outrora orgulhosamente para-quedista na tropa, que ofereceu o curso! Ficou todo satisfeito quando o seu Jorginho mostrou gosto em seguir as suas pisadas aéreas. Como dizia, saltar de para-quedas – sozinho! –dispara todas as endorfinas e mais algumas e nas várias fases.
A primeira aquando da passagem para a asa. No alto dos mil metros, sentado na borda da avioneta, a transferência para o vazio da asa é uma sensação indizível. Erguer-me para me transpor para a asa. E se o pé falhasse? Não falhou! Com as mãos apoiadas na barra da asa, o momento seguinte é elevar um dos joelhos até ao peito, contar até três e lançar-me para trás. O que é o mesmo que dizer, atirar-me para o espaço sideral. Cinco segundos contados e o para-quedas abre-se. E depois... depois é planar, planar... As mãos nos comandos guiando a velocidade da descida e a trajectória; mais para a direita, mais para a esquerda. O que não é propriamente o mais relevante. O fundamental é mesmo tentar desfrutar pelo maior período de tempo.
O último momento de tensão: a aterragem. A técnica de aproximação ao solo, a fim de evitar impactos bruscos nos joelhos e tentar uma abordagem suave do corpo ao relvado. Foi no último de quatro saltos: uma branca; falhou qualquer coisa. Esqueci-me totalmente dos procedimentos para a aterragem e embati de rabo no chão! A minha namorada Margarida observava-me estarrecida. Ficou em pânico: terei caído de cinco ou seis metros de altura. A fissura no cóccix diagnosticada pela radiografia ainda hoje me impede de estar mais de hora e meia sentado.
Deve ser uma das razões por que prefiro voar e planar ao invés de me sentar... no balcão do banco! Já não aguento mais os clientes. Muitos, como eu, sem dinheiro e sem saberem  como esticá-lo. Não saberão eles que o dinheiro não é como como as chicletes. Antes fosse, mascar e deitar fora. Mas não é bem assim. Na verdade, compreendo-os muito bem. Tivera eu uma árvore pejada de notas de cem euros e é quase certo que não mais me veriam sentado por mais de quinze minutos. A não ser que fosse com os pés debaixo de uma mesa rodeado de amigos com bom vinho maduro – tinto de preferência!






Dar sangue...






15 de Abril de 2014
Hoje fui dar sangue. Apesar dos níveis da hemoglobina estarem um pouco abaixo do ideal para a dádiva, a médica foi compassiva e autorizou. Lembrou-se de mim. No mês passado desloquei-me ao IPO para esse efeito, mas o sangue apresentava-se ainda mais débil. Dessa vez fiquei um tanto desapontada – não estava a contar com a rejeição. Não que seja de todo estranho; pelo contrário. Era até frequente. Mas em 2012, quando regressei da Índia, alterei definitivamente os meus hábitos alimentares. Retirei o animal da roda de alimentos e o sangue como se revigorou. Na época fiquei agradavelmente surpreendida. Seis meses depois de ter passado a alimentar-me de forma distinta, estava com os níveis da hemoglobina nunca vistos!
Quando regressei da Austrália em 2013, fiz uma tatuagem. Era necessário esperar pelo menos seis meses até nova dádiva. Não aguentei tal espera e duas semanas antes de findar o prazo, como estava no IPO para ver uma amiga, pensei ser o momento certo. E foi. Saí feliz do IPO. Dera um pouco de mim e sentia-me muito bem fisicamente.
Uma meia verdade à médica quando perguntou se fizera alguma tatuagem, piercing ou endoscopia (e afins) nos meses anteriores. Afinal, duas semanas não fariam diferença, pensei: era uma questão de protocolo.
Há uns tempos, em conversa num grupo de pessoas que se haviam reunido para uma meditação colectiva, mencionei que era dadora. A facilitadora do grupo disse algo que me fez pensar. Contesta totalmente as dádivas de sangue: na sua perspectiva, dar sangue tem implicações sob o ponto de vista energético. Isto é, ao dar o meu sangue este será distribuído sabe-se lá por quem, com a agravante de isso me provocar um qualquer desequilíbrio. A mesma pessoa era apologista da atitude dos crentes em Jeová: recusam liminarmente a transfusão de sangue. Mesmo quando a vida está em perigo. Desconheço a razão. O que sei é o do senso-comum – não aceitarão por entenderem que o sangue é proibido da alimentação e que a dádiva da vida é concedida apenas por deus. Ainda cheguei a pensar se seria por um motivo semelhante à da facilitadora: a de rejeitarem os fluídos de estranhos.
Nunca reflectira sobre o assunto até então. A tal pessoa reiterava veementemente a necessidade de nos resguardarmos e protegermos nessa dimensão; para si, muito mais que biológica. Como se depreende, as minhas cogitações não me conduziram à negação de me partilhar no pouco que sou. Na realidade, creio que todo a pessoa dadora de sangue se sentirá grata ao escutar: “sim senhora, está apta a dar sangue!” É com efeito um sentimento de gratidão que se difunde pelo meu ser.
A partilha também é isso. Pelo menos para mim. Dar sem esperar absolutamente nada em troca. A dádiva de sangue é provavelmente um dos exemplos mais ilustrativos do que me para mim significa a partilha. Não faço a mínima ideia de quem será a pessoa receptora de parte do sangue que me corria nas veias e artérias. E contudo... que paz sinto por terem aceite o que eu queria dar. Muito obrigada!

Abril em Nogueira*




Este ano a Páscoa acontece em Abril, o que torna este mês ainda mais cheio. Mais cheio de comemorações relevantes também para as gentes de Nogueira. Para além da celebração da ressurreição de Cristo, que exalta um novo nascer na aldeia serrana, as comemorações não menos relevantes da Revolução, às quais acrescem os dias dedicados à Imprensa (a 13), ao Livro (a 23) e à Dança (a 29).
Vivi muitas Páscoas em Nogueira. E prontamente uma torrente de memórias. Desde logo, as janelas coloridas de colchas ao passar da procissão. Os banhos eram no dia anterior, para Domingo de manhã não haver perdas de tempo, e assim nos juntarmos ao cortejo dos homens de opa. O meu avô Alfredo – que nasceu a 10 deste mês – estava sempre na frente. Outros transportavam os círios e outros elementos religiosos alusivos à data. Vestidos de branco com o azul nos ombros, o porte dos homens era ainda mais altivo. Os semblantes sérios, mas em regozijo pela honra de integrarem um momento de celebração. Os cantares começavam com o senhor prior à saída da Igreja. No meu tempo era o senhor padre Borges.
Quando chegavam ao largo da capela de Santo António, era a nossa vez de nos juntarmos à procissão. Seguíamos entoando os mesmos cantares: com ou sem boa voz. Mas isso não interessava nada. Depois da missa, era tempo de correr para casa e aguardar o compasso.
De porta em porta, o Zé Amaro desde cedo fez parte do grupo com ou sem a campainha que nos fazia bradar: “estão a chegar; já entraram em casa da Tia São, vamos lá”. Vamos lá, como íamos a todas as casas quantas podíamos. Afinal, em Nogueira existe um grau de parentesco entre quase todos, por mais ténue que seja: acabamos por encontrar um ramo que liga os coelhos aos pereira, os nunes aos nina...
Em cada casa cerimoniosamente preparada para receber a cruz, podíamos comer mais uma amêndoa. Assim pensávamos as crianças. Uma amêndoa ou um naco do bolo folar. O ovo no meio não retirava um dos sabores que o meu palato melhor recorda. Quando chegava a casa do meu padrinho, era tempo de receber o meu próprio folar. Durante muitos anos era uma nota de cinco contos: obrigada padrinho!
Em Abril... águas mil: mas desde que nasci, que este mês tem uma importância vital para os que sofreram com a guerra colonial e com os quarenta e oito anos precedentes. Tenho a mesma idade da revolução. Parte da sua razão de ser, transformou a vida dos meus pais e consequentemente a minha.
À pergunta em forma de piada, onde estavas no 25 de Abril, responderia com os meus pais: ainda em Luanda. Um ano depois e com um ano estava em Portugal. Não tenho, pois, qualquer memória vivida das ruas cheias de gente, acalentadas pelos militares cansados de ver os cadáveres dos seus companheiros a aportarem como tordos em Lisboa. Seguramente um dos maiores leitmotif para a revolução ela própria. Também não tenho qualquer memória dos cravos: as fotografias são os elementos que se juntam às histórias de um tempo anterior – o da ditadura, o da guerra colonial...
Qualquer tentativa para descrever esses dias revolucionários seria, com toda a certeza, assaz redutora. A única coisa que me ocorre registar é o facto de com o fim da ditadura ter advindo a esperança de liberdade. E esse é um ideal que prezo de tal modo, que a minha concepção de felicidade cabe toda na busca de assim viver. Sou filha, pois, não apenas dos meus pais, mas igualmente da descolonização e da liberdade que passa muito pelas escolhas que podemos agora fazer.
Calculo que os mais jovens desconheçam, como eu, o temor que se vivia antes de 1974. Bastava que se juntassem mais de duas pessoas na rua, e já a PIDE defraudava qualquer ensaio de conspiração: a sua leitura de pessoas em grupo. Em Nogueira isso não acontecia. Mas os que vinham de Coimbra, após meses de estudo, saberão o que quero dizer.
Hoje ainda valorizo mais este mês: comemora-se o dia do livro. O livro. Um bilhete para outros lugares, para muitas outras pessoas, para tantas histórias mais ou menos reais. A viagem vai acontecendo no desfolhar de cada página. Não tenho dúvida que o mundo se ampliou e vai crescendo por cada livro que me trespassa, que me adentra. Estou certa que muitos me são permitidos ler pela liberdade conquistada. 
Liberdade, livros... tanto em Abril. E tanto mais. Também é tempo de celebrar a imprensa: é esta que permite que este texto chegue a si, que lê o Chapinheiro. Não é um jornal qualquer. É o jornal das gentes de Nogueira: as que se permanecem física ou emocionalmente. A forma de nos ligar ao que importa: os afectos. E os da terra são muito, muito fortes. É por isso que Nogueira renasce em muitos momentos festivos, como na Páscoa.
Abril é também o mês para lembrar a dança; um mês primaveril – que melhor estação para celebrar dançando? Quem dança é mais feliz, diz o meu irmão, digo eu, dizem todos aqueles cujo corpo se mexe ao mais leve ritmo escutado – só porque sim. A Primavera: a minha estação preferida. Um mês que já consente muitas cores nos jardins, com as árvores muitos verdes, com folhas cada vez mais largas. Um mês da Primavera em crescendo nas cores, cheiros e sons: a estação dos amores, dizem. A temperatura começa a ser bem mais aprazível e o céu cada vez mais azul. Mesmo que o ditado nos diga que em Abril águas mil. 

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro


A ‘amiga louca’ em Saigão... Corte no pé IX





Quando invocam a minha pessoa logo lhes vem à boca: “aquela, a nossa amiga louca”. O nome por que me baptizaram. Como se deve calcular, isso é apenas um epíteto. Maria dos Anjos; assim escreveu a minha querida avó à minha mãe: “Querida nora, não sei porquê, mas tenho comigo que a minha primeira neta se podia chamar Maria dos Anjos”. Menos mal... ou não – Célia: o nome que os meus pais haviam seleccionado.
Maria dos Anjos – talvez um nome adequado. Eventual explicação para a alcunha entre determinados amigos – ‘a amiga louca’. O atributo apenas e só por não me enquadrar nos ditos padrões de normalidade; esses da ditadura da maioria! Classificações vãs; assim as entendo. Não sou normal, dizem: por isso sou louca; ou melhor muito louca. Mas que diabo!
Maria dos Anjos. Angélica nem por isso. A mania dos anjos, até que sim. Não é propriamente uma mania: ouço vozes. Como não as reconheço entre os vivos que fazem parte dos meus círculos afectivo e social e tão-pouco profissional, avento uma hipótese: são vozes dos anjos, angelicais, sobreterrenas, sobrenaturais, sobre qualquer realidade que não a material em que me movo. Apesar de me deslocar amiúde por realidades incandescentes e imperceptíveis, aos olhos de muitos dos que me rodeiam. Daí que conceba tais vozes para lá desta minha existência corpórea.
Desse discurso já me desisti. Cada vez que os meus lábios se enformam para proferir palavras da família dos anjos, os meus amigos gesticulam como quem diz: “Oh Maria, por favor. Só porque és dos Anjos não quer dizer que eles te visitem; se é que existem”. E assim pensam que abafam as sonoridades que só eu escuto.
Outro motivo para me sentenciarem como a tal ‘amiga louca’ deve-se ao facto de ter repentes. De quando em vez sou dada a amochilar os meus parcos haveres e deixo-me conduzir por um impulso que dizem ser ora de viajante, ora de fugitivo. A qualificação para o segundo impulso encontrei n’ “Um homem de partes”, de David Lodge.
A última vez que me senti impulsionada aterrei em Saigão. Ho Chi Minh: a sua denominação actual. É provável que os vietnamitas desejem apagar os tempos idos da ocupação norte-americana. O sangue derramado não deve, todavia, ter-se esbatido da memória. A bandeira que os representa marca bem essa cor de morte.
Saigão. Ho Chi Minh. Se os meus amigos aí se tivessem  deslocado de moto-táxi como eu, perceberiam que o epíteto com que me evocam é totalmente descabido, ou mesmo hiperbólico. Eles não sabem o que é a loucura: a loucura do trânsito. Motas, motoretas, lambretas, motociclos, motocicletas, bicicletas e todos os veículos sobre duas rodas que se possam avançar.
Centenas e centenas sempre em movimento, com ou sem sinal vermelho. Mais um vermelho que neste caso é com efeito desconsiderado. Se tal não me incomodou quando era uma das que usava capacete de equitação – os mais usuais entre os motoqueiros de Saigão –, o mesmo não posso afirmar quando a pé e carregada com uma mochila de quinze quilos.
Uma vez, a primeira de muitas similares, tentava atravessar uma rua. Motas de um lado, lambretas do outro, mais motociclos pela frente e até motoretas pelo passeio. Por onde continuar o caminho até à Rua Bui Vien? – a do Graceful Saigon Hotel, onde me instalaria. Eu e muitos outros turistas ao estilo backpack. Quase caí, tal o desequilíbrio provocado pelo susto. Pensei que me estrearia nos atropelamentos: tive de aprender rapidamente a atravessar as ruas em Saigão. Basicamente correr por entre os momentâneos e exíguos espaços livres.
Na tarde seguinte à da chegada vi um rosto que me era familiar. Ali, em Saigão? “I Know you...” Escutei-me dizer ainda: “You’re much prettier live”. E era, uma actriz de Hollywood Frances Louise McDormand (o nome depois de googlar ). Um sorriso fácil agradeceu. Não costuma ouvir isso, ao contrário. Pedi um autógrafo! Estava de férias, não o faria. Acabámos a troca de palavras desejando mutuamente boas férias.
Ainda nesse dia ao fim da tarde fui agraciada com um convite para jantar. Fui abordada por duas jovens vietnamitas enquanto passeava por um jardim. Se eu tinha tempo para conversar com elas. O seu objectivo era só um: melhorar o seu inglês. Porque não? Tempo era coisa que não me faltava. O tempo que era só meu e podia desfrutá-lo do modo que bem entendesse, que bem me apetecesse, partilhá-lo com quem quisesse. Anuí.
Eu e as estudantes de Saigão num banco do jardim. Ambas universitárias a estudarem numa grande cidade; as suas famílias longe e campesinas, pelo que percebi. Tentei uma fala pausada. É visível a dificuldade das gentes da Ásia na locução do idioma estrangeiro. A linguagem é totalmente díspar, solicitando outras formas de soletrar e de dicção, o que dificulta a aprendizagem correcta do inglês e, imagino, de todas as línguas germânicas e outros grupos linguísticos.
Antes de nos despedirmos outra admiração. Queriam estar comigo outra vez! Combinámos jantar na noite seguinte e trocámos números de telefone. Um jantar tipicamente vietnamita... às vezes é bom ser louca, como me chamam os amigos. Talvez valha a pena ter repentes e não ser normal. 




Amélia... escutando Yann Tiersen






Uma garota. Quase mulher. Cabelos negros, vaporosos. Uma sala de leitura num sótão embaciado pelas janelas há muito esquecidas de um pano limpo. Uma garota sonhadora. Sonha a realidade possível pelo encontro de olhares amorosos. Nas estantes bafientas encontra cartas perdidas, reveladoras de paixões memoradas em corações agora gelados.
Desdobra papéis amarelados e amarfanhados pelo tempo. “Tenho muitas saudades tuas, dos teus beijos macios...” – declarações esquecidas pelas horas que se tornaram dias; dias que se alongaram em meses, anos. Amélia. Assim a chamam quando querem dizer-lhe alguma coisa ou abraçar o seu corpo menino quase pronto para ser mulher.
Amélia encontra também gritos abafados por narrações montanhosas. Grumos verbais materializados em palavras escritas há muito desvanecidas. Escuta as vozes interiores num frémito espesso: “Tens que entregar estes sentimentos por revelar”. A ideia que se vai enformando em cada outra carta velha descoberta no interior de livros, cujo sonho é serem lidos. As bibliotecas – para que servem? Noutros tempos para as elites; neste tempo, das massas, quase para nada. Preferem-se ecrãs tácteis descomprometidos do esforço de pensar e viajar na leitura.
Amélia lê. Amélia quer escrever. Lembra a máquina da avó de pele encarquilhada pelo tempo. As teclas resguardadas por um pano também ressequido pelos Invernos. Pelas Primaveras também. No banco do jardim perfumado, ao sabor de brisas suaves de muitos Verões, essa máquina revelou declarações intencionalmente amorosas, tal qual estas cartas vasculhadas, sedentas de serem respondidas. O propósito da adolescente quase adulta que já compreende a importância de um beijo perdido.
Num envelope envelhecido pelo pó seco do sótão encontrado sem acaso, a morada endereçada. O ponto de partida. O nome em letra arquitecturada cuidadosamente, amorosamente. Lê. Decide-se. Será o remetente sonhado e desejado. Senta-se à mesa escurecida pelo verniz que ainda confere brilho, outro que não o do sótão apagado. A máquina do tempo em teclas ávidas de serem premidas. Resolve-se em palavras. Quais, ainda em esboço mental. Rapidamente deixam de ser ideias vãs para se concretizarem numa declaração esperada... eternamente – tua.
No entardecer que se faz longo, Amélia sorri para as letras que se impregnam numa folha branca que deixa de ser vazia. “Meu amor só hoje encontrei a tua carta numa gaveta trancada. Soubera eu que me amavas do mesmo modo que eu e teria ido ao fim do mundo para te encher de beijos. Quero-te muito, ainda. As minhas pernas já carregam muitos Outonos, mas as flores do meu sentimento ainda são coloridas como rosas de um jardim principesco. Anda, vem ter comigo. Vou ter contigo. Tenho um abraço para te dar, levo-te ou vens buscar? Assinado: o teu eterno admirador que se deseja reconhecido”.
A imagem da carta escrita em frémito convulsivo de Amélia. Próximo passo. Um envelope endereçado à amante, que talvez ainda possa ser amada. Os dias que se tornaram anos não apagaram aquele sentimento profundo. A crença de Amélia na sua inocência bucólica.
No lento circuito do tempo, o olhar vasto em sorriso intenso de Amélia esquadrinha um plano. As nuvens informes rasgam as saudades sepultadas dos que se escreveram sem resposta. Será a réplica, Amélia. Desdobra-se em várias e encontra o lugar da primeira remetente. Termina em tom declarativo o plano: “Vou deixar esta carta no correio!”
Esconde-se. Na casa caída do lado existe um portão sempre aberto que lhe dá um lugar de primeira plateia. Invisível – pensa estar. Olha em redor. A carta há minutos numa caixa pouco usada. A hora do carteiro é certa. Aguarda o tempo da leitora, urdindo a estrutura de um beijo de um futuro adiado pelo silêncio inadvertidamente fechado numa gaveta desossada. Amélia desenha contrastes de lágrimas que hão-de sulcar dois rostos anosos. Nem por isso desapaixonados. A expectativa de uma jovem gentil que sonha os sonhos sepultados pelos remetentes nunca lidos, engavetados que foram por mãos ardilosas e controladoras de um amor materno, quase sempre inspeccionador.
A porta abre-se. A casa que perscruta tem vida. Uma mulher. Incalculável o número de anos gravados em rugas que a memória carrega. Atenta – Amélia – a cada movimento lento soado e pouco escutado deste lado da casa recentemente caiada de portão receptivo a estranhos. A caixa de correio. Uma carta inesperada por quem nada espera há tantos anos que não se lembra.
O rosto idoso muda a sua forma para deleite do rosto ainda juvenil. Um sorriso que hesita nas lágrimas que se empurram umas às outras num olhar que repentinamente se quer refrescar na emoção ainda vaga. Os pensamentos vão ganhando volume na lentidão de uma mão que agarra o envelope e o conduz ao lugar do corpo que guarda as saudades de um amor nunca esquecido. Amélia observa uma pessoa abundante no tempo. Retira-se. Discretamente rasa pela porta em transformação. Fechou-se para que a leitora se encontrasse num passado... ainda presente.
Na claridade parda da tarde que se esvai, Amélia repara no céu polvilhado. Quantas cartas para responder? A sua missão: entregar amores perdidos, guardados em memórias alheias insondáveis, talvez. Ou não... Saltitando em pés elegantes e infantis ainda, escorre-se pelas ruas do bairro em direcção à máquina de escrever onde a aguardam palavras amoráveis...

A lagoa azul... Corte no pé VIII





Caro leitor, cara leitora, não sabes o que aconteceu. Tão depressa eu expressava a curiosidade para saber quem é o tal Martin e eis que já somos amigos. Calma. Amigos na acepção virtual que hoje em dia paira nas nossas vidas. Essas, também, cada vez mais ligadas ou desligadas – conforme a perspectiva, já se sabe – do mundo maravilhoso não de Alice, mas do livro das faces, dos rostos, das caras. Não sou tradutora. Mas também não me parece que esse mundo seja traduzível – talvez nem valha a pena.
Os idiomas são eles próprios elementos de um mundo global, (des)ligado, fragmentado, em rede. Não te acontece utilizar expressões que não sendo em português não deixas de sentir como tuas? Por exemplo: ‘vou googlar’; ‘faz delete’... Só é pena que não possamos ‘fazer undo’ de quando em vez. Algumas palavras que soltei sem prever o seu efeito teriam sido apagadas: tal o desarranjo que terei provocado no receptor. Momentos em que mais valia ter mantido os lábios bem colados. Teria evitado também a entrada de insectos.
O Martin, dizia. Quando o meu namorado aterrou em Santiago foi quase imediatamente para casa do chileno. Conversa para aqui, fotografias para ali e entraram na espiral dos amigos virtuais. O Martin viu então quem sou eu a musa do meu namorado – confio que ainda seja.
Recebi hoje o seu pedido de amizade. De maneira que a minha rede social se vai ampliando, sem que com isso, confesso, o meu mundo se alargue nas devidas proporções. Um dia de cada vez. É o melhor. Mas também já percebi que assim é. Os meus planos são frequentemente ‘desplaneados’; por conseguinte, a sua elaboração tende a reduzir-se. Também te acontece a ti, leitor ou leitora, planear todas as horas do dia de acordo com a agenda e ao final do dia verificares que nada foi conforme previamente estipulado, planeado, programado? É quase sempre em sorriso que observo a viagem pelas horas precedentes. Por esse motivo, prefiro a designação de ‘proto-plano’ ou ‘proto-agenda’. Assim, se alguém ou um lugar mais interessante do que o agendado surgir, prolongo-me nesse instante. Na natureza nada se perde, tudo se transforma – diria que os minutos não se perdem, transformam-nos: assim estejamos receptivos.
Entretanto, o Martin. Logo algumas mensagens privadas. Relaxa, leitora ou leitor. Não tem nada a ver com uma qualquer traição do género virtual. Foi somente uma ‘pseudo-conversa’ de dois (ainda) estranhos. O nosso tema em comum é só um (ainda): o meu namorado. Não obstante, o Martin não se coibiu de tecer largos elogios às minhas fotografias. Deambulou virtualmente pelas viagens ‘postadas’ na minha página. “Estoy impresionado, tienes fotografías maravillosas” – assim se reportava às fotografias que partilho da Islândia.
Finalmente alguém que me compreende. É em desabafo que o escrevo a ti, que me lês neste momento. Uma ilha de sonho – a designação que lhe demos antes de embarcarmos: era o que ambos mais desejávamos partilhar desde que nos apaixonámos – eu e o meu namorado, claro. Alugámos um carro e percorremos toda a costa. Foi nesse ano que eu e o meu namorado chegámos a colocar-nos em causa, tal qual a letra da ‘Paixão’ de Rui Veloso, quando canta em tom de lamento: “Contigo aprendi uma grande lição / Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”.
Não era da canção que se tratava, apesar de os nossos gostos nem sempre coincidirem. O que estava em causa era a perspectiva dissemelhante face à fotografia. Na realidade, ainda não ultrapassámos totalmente essa eventual diferença: sinto-me uma artista incompreendida. Artista – penso que esse atributo se pode aplicar a mim. Ganhei alguns prémios com as baleias, focas, géiseres e icebergs que fotografei em movimento: disparos contínuos que me permitiram diversas montagens fotográficas.
O meu namorado, porém, não me dava muito espaço. Estava constantemente a bufar nas minhas costas. Repara, leitora ou leitor, que a sua postura era de facto incomodativa; quase irritante. Eu, fotógrafa em progresso, estava deleitada, inebriada, arrebatada pelas paisagens vulcânicas e glaciares que nos entravam pelos olhos. Os meus queriam captar e guardar essas imagens não apenas na memória e no coração, mas também numa futura tela: para mais tarde recordar! Pedia-lhe, então, carinhosamente que parasse o carro. Por vezes ficávamos horas a fio no mesmo local. Eu era fotografia, respirava fotografia. Trocava lentes, mudava filtros, montava o tripé e observava. Observava, experimentava dar um passo à direita, depois outro à esquerda; piscava o olho direito, depois o esquerdo; arrebitava as nalgas; ajoelhava-me; agachava-me; deitava-me: e captava o instante perfeito. Delongas necessárias, senão fundamentais para quem, como eu, tinha a oportunidade de pela primeira vez estar na terra da Björk, uma das minhas cantoras predilectas, bem como de desfrutar do tempo, do lugar e até dos ombros e dos braços do meu namorado – ajudavam a carregar a parafernália imprescindível a uma fotógrafa em evolução.
Ora, vá-se lá saber porquê, o meu mais que tudo não tinha o mesmo prazer que eu. Não só é imensamente friorento – um dos motivos por que abalou para o Chile –, como tem formigueiros nos pés e noutras partes do corpo. Disse-me que agora até nas costas. A consequência, poder-se-á facilmente prever: fartou-se de estar ao meu lado a acompanhar-me nas minhas riquíssimas experiências. Felizmente ele é um rapaz que sabe colocar-se no meu lugar e adaptou-se, entretanto, ao meu anseio de fotografar.
O frio, esse, é que efectivamente se tornou desagradável, apesar de termos ido em Agosto. Uma sugestão a ti, se tens a pretensão de ir à Islândia: a segunda quinzena de Julho é a mais aconselhável – aquando do Verão pleno na ilha quase polar. Contudo, não cries muitas expectativas: o máximo que sentimos foram uns míseros 15ºC. Coincidiu com a nossa ida à Lagoa Azul. Mas nesse dia até que valeria a pena uma temperatura substancialmente inferior, para assim nos regalarmos com a amplitude térmica entre a água termal – chega aos 40ºC – e o ar eventualmente frio.
Regressámos a casa ao nível dos zero graus. Ao aterrarmos no Porto, o rosto do meu namorado aquecia – confio que fosse resultado da temperatura amena que Setembro nos oferecia.
O Martin. Mais um amigo na minha já vasta lista virtual. Naturalmente que o vasto é sempre relativo. Tenho 500 amigos na rede social mais conhecida. Nada que se compare ao meu namorado que já vai nos 3200 – são sobretudo do sexo feminino. Não quero sequer especular sobre o que isso possa significar.

Margarida... Corte no pé VII


Sou eu novamente, a Margarida. A namorada daqueloutro que no primeiro capítulo – vamos designá-lo assim – se cortou no pé. Por isso ainda o título. A autora já não sabe o que fazer em relação ao título; mas tendo começado com esse famigerado golpe, sente que é esse o seu desígnio momentâneo.
Se é o primeiro texto com que te deparas, leitor ou leitora, não te preocupes: os textos anteriores para além de curtos, são igualmente passíveis de se lerem avulso; digo eu – a autora.
O corte no pé do meu namorado – e sim, sou eu novamente a Margarida. Um pé pequeno; se se tiverem em conta os padrões masculinos; se é que tal se possa aplicar no que à anatomia concerne. Calça 39, ele. Tanto como eu. Os dois com 39 de comprimento nos dois pés. Os nossos ombros não se tocam e eu tenho de inclinar a cabeça em sentido ascendente para naufragar nos seus lagos verdes. Quer dizer, agora não tenho como afundar-me, dado que neste momento ele se encontra em parte incerta.
A última vez que nos comunicámos – há quase uma semana – estava ele a recuperar de outro corte no pé... viajava à boleia de Santiago para a Terra do Fogo: pronto para embarcar para a Antártida!
O corte no seu delicado pé. A sua curva é tal, que fico na dúvida se pousará totalmente as suas extremidades inferiores no solo. Por oposição, os meus pés padecem do que algum iluminado denominou de pé chato. Prefiro o termo pé raso. Assim sendo, os meus pés sentem o chão em toda a sua superfície plantar: deve ser por solidariedade ao arco hiperbólico dos pés do meu namorado.
O golpe. O sangue. A dor lancinante que o trespassou e o motivou a telefonar-me. Uma voz agonizante: pensei que estaria a morrer. No entanto, acredito que não tenha vertido uma lágrima sequer. Aprendeu desde tenra idade que o choro é para meninas: sua expressão. “Estás a chorar porquê? Magoaste-te? És um menino ou és um homem?” – palavras agrestes do seu pai, cada vez que os seus lábios tremelicavam. Não tinha tempo para alcançar o beicinho – pobre rapaz! Já eu, sempre que pressinto o saco lacrimal a activar-se, revelo-me em minutos – se tanto. Para quê estancar esse líquido interior, orgânico, quente e até salgado. A que sabem as lágrimas?
Prefiro então as palavras irónicas que a minha mãe atirava sempre que eu batia o pé – eu era desse estilo: “Chora, chora para aí. Quanto mais choras, menos mijas!” Leitora ou leitor, bem sei que este vocábulo não chega a ter tal estatuto e poderás até sentir que é pouco consentâneo com o que esperavas de mim e da autora. Porém, concordarás que as expressões popularuchas roçam frequentemente a má educação. Não chega a ser má educação: é apenas o modo peculiar do dizer popular. Na verdade, podes fazer uma experiência. Lê em voz alta: quanto mais choras, menos urinas; ou então: quanto mais choras, menos xixi fazes; ou ainda: quanto mais choras menos águas vertes. Confirmas. Não teria a mesma sonorização, nem tão-pouco o mesmo alcance.
Voltando ao que aqui me trouxe. O corte no pé do meu namorado. Essoutro que viajou, qual jovem sem rumo. Não vou gastar linhas na descrição do acontecido propriamente dito antes de ele me telefonar naquela noite. Não estava lá. Não sei o que sucedeu. Sei tanto como tu, leitora ou leitor. Aquele seu hábito de se pavonear pela casa tal qual veio ao mundo não é de comentar: tão-somente por fazer parte da mesma liga: a de me sentir livre quando na minha casa. A diferença entre nós, é que eu vivo no nono andar. Os meus vizinhos da frente, os mesmos – ou mesmas – não me abarcam nos seus desvarios de coscuvilhice.
Leste bem. Os vizinhos ou vizinhas, melhor dizendo, são coincidentes. Vivemos no mesmo prédio. Neste momento, é quase certo, leitor ou leitora, que se estivesses ao meu lado me perguntarias a razão de ser de tal opção e porque é que não juntamos os trapinhos – afinal é mesmo disso que se trata – e não pagamos apenas uma renda. Por inúmeros motivos. Entre os quais a possibilidade de podermos dormir sozinhos nas nossas camas gigantes e de nos deitarmos à hora que ambos bem entendermos.
Eu, por exemplo, gosto de ver televisão até tarde. Gosto dos programas sobre a vida selvagem. Não obstante estarem cada vez menos interessantes. A selvajaria é cada vez mais a dos exploradores que passam a vida em frente à câmara. Dá ideia de que se terão esquecido dos animais. Ou então, tentam ser mais um elemento da selva.
O meu namorado às vezes é muito aborrecido. Para não dizer chato como os meus pés. Prefere deitar-se com as galinhas. Também gosta de se deitar com as mesmas aves. Só não percebo porque é não arrenda um galinheiro! Não só diminuiria substancialmente a renda, como não necessitaria de despertador. Além disso, teria companhia todas as noites!
Para terminar a senda do corte no pé. Quando desci os seis andares que nos separam sempre que não nos apetece partilhar tudo, deparei-me com ele agarrado ao pé. Doía-lhe. Não duvido. Mas nem sei como dizer isto sem ser irónica, sarcástica, maldizente e até mesmo mordaz. O pé tinha uma pequena laceração no calcanhar. No calcanhar! Aquela parte que nem sempre a pedra-pomes resolve. As mulheres saberão bem ao que me reporto. Enfim. Lavei com soro fisiológico e passados dois dias não havia vestígios.
Lá o ajudei a apanhar os cacos do jarrão. O rapaz estava inoperante e era necessário respeitar a sua dor. Fiquei com ele nessa noite. Antes de adormecer contou-me que conhecera um chileno na véspera: o Martin. Fiquei curiosa...

Um corte no pé VI




Antes de prosseguir é devido, imperioso, fundamental um esclarecimento. Neste momento, leitor@, quem lês é a Margarida: a namorada do homem, rapaz, pessoa do sexo masculino que esteve aqui nas cinco vezes anteriores. Acontece que eu também quero ser lida e já é tempo da minha ‘voz’ se fazer ‘ouvida’. Chama-lhe presunção, necessidade de ser ‘vista’, o que melhor entenderes, para assim nos entendermos melhor.
As ambulâncias não páram as suas sirenes incessantes. Estou habituada. A minha casa é próxima do hospital central da cidade. Cada vez que escuto uma, agradeço o facto de estar viva e de boa saúde. Podes imaginar, leitor@, o número de vezes que o faço ao longo do dia e da noite também. Particularmente quando os dias passam inteiros por mim sem que eu sinta o calor exterior; no caso dos meses anteriores a chuva fria, ela própria. Hoje, felizmente, é o sol no seu ocaso dourado que me encadeia o olhar. Encandeia mas não fere. Sou daquelas que aprecia olhá-lo de frente, mesmo que me digam que posso ficar cega! Será mesmo verdade?
Apareço-te, então, leitor@. Perguntas porquê; consigo vislumbrar um som distante da tua voz mais ou menos rouca, mais ou menos sensual, mais ou menos fanhosa. A minha é assim que está neste momento. Constipada, muito ranhosa, desde há pelo menos sete dias e sete noites. Deve ser pela ausência do meu namorado. Resolveu ir para o Chile. Sem mais nem porquê. E tu leitor@, também te parece que foi uma atitude descabida? É que tu, leitor@, não sabes um pormenor.
Dias antes de ele se decidir a ir para o outro lado do Atlântico, pediu-me em casamento! É verdade. É verdade também que tínhamos bebido um pouco. Vá, um pouco se calhar é redutor. Uma garrafa de vodka e algum sumo de limão à mistura. Não nos ficámos por aqui. Uma amiga nossa muito louca – é o melhor adjectivo, acredita, leitor@ – esteve na Tailândia e trouxe-nos, como recuerdo, balões para fazer rir. Apesar da longa distância percorrida até casa, os balões ainda vinham cheios de um hélio que era muito mais que hélio. Claro que neste momento estás a duvidar do que eu te digo. Dou-te mais um pormenor: a minha amiga muito louca – vou manter o atributo para que saibas a quem me reporto – decidiu fazer a viagem de volta por terra: comboios, autocarros, boleias... Às tantas terás razão na dúvida que te assalta como a mim também, e ela terá adquirido mais balões pelo caminho.
De qualquer modo, como te dizia, o meu namorado, ao fim de uma garrafa de vodka e dois balões que fazem rir – eu acompanhei – fez-me um pedido cerimonioso: “querida Margarida, és a mulher da minha vida! Quero passar o resto dos meus dias contigo: casas comigo?!” O meu rosto ébrio terá mudado de forma diversas vezes. Era o primeiro pedido de casamento que escutava. Tendo em conta que nenhum de nós estava sozinho em si, pensei que a resposta também não seria apenas minha: adiei delicadamente para o dia seguinte, quando a ressaca se curasse.
Ressacados, estremunhados, esquecidos das horas antecedentes: assim despertámos na tarde seguinte. As nossas caras estavam um pouco diferentes e os corações transmudados, pelo álcool ingerido e ainda em processo de destilação. As mãos tocavam-se amorosamente. Era o que a minha pele me sugeria. Arrepiada. Em pele de galinha. Não percebia aquela sensação: até que olhei em redor pelo quarto – também em recuperação pelo torpor noctívago – e era o frio que se instalara pela janela que ficara entreaberta!
O meu namorado também se ressentia e as suas mãos começaram a gelar inadvertidamente, ao ponto dos dedos ficarem todos brancos. Pensámos que poderiam cair, como acontece aos alpinistas que chegam ao Evereste: só podíamos estar sob o efeito das substâncias tomadas na véspera.
Fomos tomar banho. Não é necessário dar-te muitos pormenores do que se passou debaixo da água quente, leitor@. As cabeças ainda pesavam sobremaneira. Nada a relatar, portanto – em relação ao que esperavas ler. Ainda assim, talvez seja melhor dar mais um esclarecimento: sou uma pessoa muito reservada, a roçar o pudico. Como tal, mesmo que nos estivéssemos enrolado e afogado na banheira não estaria aqui a fazer esse tipo de revelações. Além disso, não sei a tua idade, nem tão-pouco os padrões de conduta por que te reges: não quero ofender os teus olhos com cenas mais ou menos lascivas – se as houvesse, reforço.
Isso seria mais tarde. Nessa mais tarde de um Domingo qualquer chuvoso – houve muitos em Janeiro –, não sucedeu o que eu esperava. O melhor é mesmo não esperar nada: evita-se o desapontamento e o que quer que aconteça é bem-vindo. O que não ocorreu – também tu, leitor@, quererás saber se o pedido foi renovado. É que o meu querido, amado, adorado namorado ficou momentaneamente amnésico. O que dá sempre jeito, refira-se. Dois dias depois estava a fazer uma mochila e abalava para Santiago do Chile. Não acho isto nada normal!