Este ano a
Páscoa acontece em Abril, o que torna este mês ainda mais cheio. Mais cheio de
comemorações relevantes também para as gentes de Nogueira. Para além da
celebração da ressurreição de Cristo, que exalta um novo nascer na aldeia
serrana, as comemorações não menos relevantes da Revolução, às quais acrescem
os dias dedicados à Imprensa (a 13), ao Livro (a 23) e à Dança (a 29).
Vivi
muitas Páscoas em Nogueira. E prontamente uma torrente de memórias. Desde logo,
as janelas coloridas de colchas ao passar da procissão. Os banhos eram no dia
anterior, para Domingo de manhã não haver perdas de tempo, e assim nos
juntarmos ao cortejo dos homens de opa. O meu avô Alfredo – que nasceu a 10
deste mês – estava sempre na frente. Outros transportavam os círios e outros
elementos religiosos alusivos à data. Vestidos de branco com o azul nos ombros,
o porte dos homens era ainda mais altivo. Os semblantes sérios, mas em regozijo
pela honra de integrarem um momento de celebração. Os cantares começavam com o
senhor prior à saída da Igreja. No meu tempo era o senhor padre Borges.
Quando chegavam
ao largo da capela de Santo António, era a nossa vez de nos juntarmos à
procissão. Seguíamos entoando os mesmos cantares: com ou sem boa voz. Mas isso
não interessava nada. Depois da missa, era tempo de correr para casa e aguardar
o compasso.
De porta
em porta, o Zé Amaro desde cedo fez parte do grupo com ou sem a campainha que
nos fazia bradar: “estão a chegar; já entraram em casa da Tia São, vamos lá”.
Vamos lá, como íamos a todas as casas quantas podíamos. Afinal, em Nogueira
existe um grau de parentesco entre quase todos, por mais ténue que seja:
acabamos por encontrar um ramo que liga os coelhos aos pereira, os nunes aos
nina...
Em cada
casa cerimoniosamente preparada para receber a cruz, podíamos comer mais uma
amêndoa. Assim pensávamos as crianças. Uma amêndoa ou um naco do bolo folar. O
ovo no meio não retirava um dos sabores que o meu palato melhor recorda. Quando
chegava a casa do meu padrinho, era tempo de receber o meu próprio folar.
Durante muitos anos era uma nota de cinco contos: obrigada padrinho!
Em
Abril... águas mil: mas desde que nasci, que este mês tem uma importância vital
para os que sofreram com a guerra colonial e com os quarenta e oito anos
precedentes. Tenho a mesma idade da revolução. Parte da sua razão de ser,
transformou a vida dos meus pais e consequentemente a minha.
À pergunta
em forma de piada, onde estavas no 25 de Abril, responderia com os meus pais:
ainda em Luanda. Um ano depois e com um ano estava em Portugal. Não tenho, pois,
qualquer memória vivida das ruas cheias de gente, acalentadas pelos militares
cansados de ver os cadáveres dos seus companheiros a aportarem como tordos em
Lisboa. Seguramente um dos maiores leitmotif
para a revolução ela própria. Também não tenho qualquer memória dos cravos: as
fotografias são os elementos que se juntam às histórias de um tempo anterior –
o da ditadura, o da guerra colonial...
Qualquer
tentativa para descrever esses dias revolucionários seria, com toda a certeza,
assaz redutora. A única coisa que me ocorre registar é o facto de com o fim da
ditadura ter advindo a esperança de liberdade. E esse é um ideal que prezo de
tal modo, que a minha concepção de felicidade cabe toda na busca de assim
viver. Sou filha, pois, não apenas dos meus pais, mas igualmente da
descolonização e da liberdade que passa muito pelas escolhas que podemos agora
fazer.
Calculo que
os mais jovens desconheçam, como eu, o temor que se vivia antes de 1974.
Bastava que se juntassem mais de duas pessoas na rua, e já a PIDE defraudava
qualquer ensaio de conspiração: a sua leitura de pessoas em grupo. Em Nogueira
isso não acontecia. Mas os que vinham de Coimbra, após meses de estudo, saberão
o que quero dizer.
Hoje ainda
valorizo mais este mês: comemora-se o dia do livro. O livro. Um bilhete para
outros lugares, para muitas outras pessoas, para tantas histórias mais ou menos
reais. A viagem vai acontecendo no desfolhar de cada página. Não tenho dúvida
que o mundo se ampliou e vai crescendo por cada livro que me trespassa, que me
adentra. Estou certa que muitos me são permitidos ler pela liberdade
conquistada.
Liberdade,
livros... tanto em Abril. E tanto mais. Também é tempo de celebrar a imprensa:
é esta que permite que este texto chegue a si, que lê o Chapinheiro. Não é um
jornal qualquer. É o jornal das gentes de Nogueira: as que se permanecem física
ou emocionalmente. A forma de nos ligar ao que importa: os afectos. E os da
terra são muito, muito fortes. É por isso que Nogueira renasce em muitos
momentos festivos, como na Páscoa.
Abril é
também o mês para lembrar a dança; um mês primaveril – que melhor estação para
celebrar dançando? Quem dança é mais feliz, diz o meu irmão, digo eu, dizem
todos aqueles cujo corpo se mexe ao mais leve ritmo escutado – só porque sim. A
Primavera: a minha estação preferida. Um mês que já consente muitas cores nos
jardins, com as árvores muitos verdes, com folhas cada vez mais largas. Um mês
da Primavera em crescendo nas cores, cheiros e sons: a estação dos amores,
dizem. A temperatura começa a ser bem mais aprazível e o céu cada vez mais
azul. Mesmo que o ditado nos diga que em Abril águas mil.
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro
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