Margarida... Corte no pé VII


Sou eu novamente, a Margarida. A namorada daqueloutro que no primeiro capítulo – vamos designá-lo assim – se cortou no pé. Por isso ainda o título. A autora já não sabe o que fazer em relação ao título; mas tendo começado com esse famigerado golpe, sente que é esse o seu desígnio momentâneo.
Se é o primeiro texto com que te deparas, leitor ou leitora, não te preocupes: os textos anteriores para além de curtos, são igualmente passíveis de se lerem avulso; digo eu – a autora.
O corte no pé do meu namorado – e sim, sou eu novamente a Margarida. Um pé pequeno; se se tiverem em conta os padrões masculinos; se é que tal se possa aplicar no que à anatomia concerne. Calça 39, ele. Tanto como eu. Os dois com 39 de comprimento nos dois pés. Os nossos ombros não se tocam e eu tenho de inclinar a cabeça em sentido ascendente para naufragar nos seus lagos verdes. Quer dizer, agora não tenho como afundar-me, dado que neste momento ele se encontra em parte incerta.
A última vez que nos comunicámos – há quase uma semana – estava ele a recuperar de outro corte no pé... viajava à boleia de Santiago para a Terra do Fogo: pronto para embarcar para a Antártida!
O corte no seu delicado pé. A sua curva é tal, que fico na dúvida se pousará totalmente as suas extremidades inferiores no solo. Por oposição, os meus pés padecem do que algum iluminado denominou de pé chato. Prefiro o termo pé raso. Assim sendo, os meus pés sentem o chão em toda a sua superfície plantar: deve ser por solidariedade ao arco hiperbólico dos pés do meu namorado.
O golpe. O sangue. A dor lancinante que o trespassou e o motivou a telefonar-me. Uma voz agonizante: pensei que estaria a morrer. No entanto, acredito que não tenha vertido uma lágrima sequer. Aprendeu desde tenra idade que o choro é para meninas: sua expressão. “Estás a chorar porquê? Magoaste-te? És um menino ou és um homem?” – palavras agrestes do seu pai, cada vez que os seus lábios tremelicavam. Não tinha tempo para alcançar o beicinho – pobre rapaz! Já eu, sempre que pressinto o saco lacrimal a activar-se, revelo-me em minutos – se tanto. Para quê estancar esse líquido interior, orgânico, quente e até salgado. A que sabem as lágrimas?
Prefiro então as palavras irónicas que a minha mãe atirava sempre que eu batia o pé – eu era desse estilo: “Chora, chora para aí. Quanto mais choras, menos mijas!” Leitora ou leitor, bem sei que este vocábulo não chega a ter tal estatuto e poderás até sentir que é pouco consentâneo com o que esperavas de mim e da autora. Porém, concordarás que as expressões popularuchas roçam frequentemente a má educação. Não chega a ser má educação: é apenas o modo peculiar do dizer popular. Na verdade, podes fazer uma experiência. Lê em voz alta: quanto mais choras, menos urinas; ou então: quanto mais choras, menos xixi fazes; ou ainda: quanto mais choras menos águas vertes. Confirmas. Não teria a mesma sonorização, nem tão-pouco o mesmo alcance.
Voltando ao que aqui me trouxe. O corte no pé do meu namorado. Essoutro que viajou, qual jovem sem rumo. Não vou gastar linhas na descrição do acontecido propriamente dito antes de ele me telefonar naquela noite. Não estava lá. Não sei o que sucedeu. Sei tanto como tu, leitora ou leitor. Aquele seu hábito de se pavonear pela casa tal qual veio ao mundo não é de comentar: tão-somente por fazer parte da mesma liga: a de me sentir livre quando na minha casa. A diferença entre nós, é que eu vivo no nono andar. Os meus vizinhos da frente, os mesmos – ou mesmas – não me abarcam nos seus desvarios de coscuvilhice.
Leste bem. Os vizinhos ou vizinhas, melhor dizendo, são coincidentes. Vivemos no mesmo prédio. Neste momento, é quase certo, leitor ou leitora, que se estivesses ao meu lado me perguntarias a razão de ser de tal opção e porque é que não juntamos os trapinhos – afinal é mesmo disso que se trata – e não pagamos apenas uma renda. Por inúmeros motivos. Entre os quais a possibilidade de podermos dormir sozinhos nas nossas camas gigantes e de nos deitarmos à hora que ambos bem entendermos.
Eu, por exemplo, gosto de ver televisão até tarde. Gosto dos programas sobre a vida selvagem. Não obstante estarem cada vez menos interessantes. A selvajaria é cada vez mais a dos exploradores que passam a vida em frente à câmara. Dá ideia de que se terão esquecido dos animais. Ou então, tentam ser mais um elemento da selva.
O meu namorado às vezes é muito aborrecido. Para não dizer chato como os meus pés. Prefere deitar-se com as galinhas. Também gosta de se deitar com as mesmas aves. Só não percebo porque é não arrenda um galinheiro! Não só diminuiria substancialmente a renda, como não necessitaria de despertador. Além disso, teria companhia todas as noites!
Para terminar a senda do corte no pé. Quando desci os seis andares que nos separam sempre que não nos apetece partilhar tudo, deparei-me com ele agarrado ao pé. Doía-lhe. Não duvido. Mas nem sei como dizer isto sem ser irónica, sarcástica, maldizente e até mesmo mordaz. O pé tinha uma pequena laceração no calcanhar. No calcanhar! Aquela parte que nem sempre a pedra-pomes resolve. As mulheres saberão bem ao que me reporto. Enfim. Lavei com soro fisiológico e passados dois dias não havia vestígios.
Lá o ajudei a apanhar os cacos do jarrão. O rapaz estava inoperante e era necessário respeitar a sua dor. Fiquei com ele nessa noite. Antes de adormecer contou-me que conhecera um chileno na véspera: o Martin. Fiquei curiosa...

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