A amiga louca sempre nas nuvens...



... um corte no pé XI 
Sou louca, dizem. Navego nas nuvens. Não é metafórico. Viajo de avião com frequência. Todavia, calculo que não seja essa a razão da alcunha preferida dos amigos. As nuvens são, com efeito, um lugar – chamo-lhe assim – deveras interessante. A sua textura húmida é-me familiar. O ano passado, por exemplo, estive sobre um mar branco esponjoso. Subi ao Toubkal. Pernoitei com a minha amiga Margarida em Imlil, a vila marroquina na base da montanha mais alta do Norte de África. Começáramos o nosso périplo por terras marroquinas em Casablanca duas semanas antes.
Uma das noites foi no deserto, em Merzouga. O camelo foi o nosso meio de transporte nas dunas até ao campo de expedição. As oscilações, quase até ao vómito no percurso, não nos impediram de gozar essoutro mar arenoso sob o céu estrelado. Descalças nas areias douradas pouco dormimos. Até porque a minha amiga estava receosa: não fosse um qualquer escorpião acordar-nos à força. Mitos ou não do deserto, a verdade é que depois do jogo de cartas nocturno com as holandesas que nos acompanhavam nessa aventura, pouco dormimos. Também, quem no seu perfeito juízo perderia uma noite no deserto do Sahara?
Improvisámos, então, uma cama ao relento para melhor desfrutar dessa experiência, talvez, única. Contámos estrelas cadentes – foram suficientes para enumerar os nossos desejos: alguns já se cumpriram. Duas horas depois das pestanas se terem unido, despregavam-se e sentimo-nos impelidas a subir a duna mais alta antes dos primeiros raios de sol – o palco perfeito para contemplar o amanhecer.
Marrocos é um daqueles países que se ama ou se detesta. Um jargão que escuto amiúde. Abstenho-me de tecer juízos de valores. Para mim, cada lugar tem os seus encantos. Na minha perspectiva, o fundamental é desfrutar e captar amorosamente cada momento que me é concedido. Por isso, ir a Marrocos e não passar por Imlil, seria quase como ir a Roma e não ver o Papa (outro jargão – já se sabe: nunca vi o Papa!). Nessa vila, ficámos muito bem instaladas e calcorreámos as ruas e vielas até ao anoitecer.
Deitámo-nos com as galinhas (como o namorado da minha amiga Margarida gosta) para nos levantarmos antes do seu cacarejar. A nossa intenção era contemplar o nascer do sol durante o percurso ascendente. Foi maravilhoso! O caminho rugoso e verdejante contrastava com a paisagem desértica que dominara a viagem nos dias anteriores.
Nessa ainda noite, as horas sobre passos lentos e conscientes iam cedendo lugar ao dia, à medida que progredíamos nas curvas de nível. O céu ia transmudando. O azul índigo rasgava-se por uma linha vermelha que, mais veloz que o desejável, passava a laranja tornando-se então dourada: o sol ia despontando. Aos primeiros instantes da aparição da esfera de fogo sentámo-nos. Valia a pena uma pausa para assistir ao espectáculo – mesmo que diário, não deixa de ser um espectáculo arrebatador. No ‘Canto dos Seres’, de Pedro Sinde, encontrei uma descrição maravilhosa que me sinto compelida a partilhar:
“Estamos a meio da noite, no momento mais profundo da escuridão; subitamente começamos a ver surgir no horizonte uma luz que se vai intensificando; aparece gradualmente um fogo mil vezes mais intenso do que o de qualquer uma das estrelas que vogam no céu. A luz dessa fogueira é tal que ilumina a terra inteira num resplendor doirado. Não seria um milagre espantoso? Não tremeríamos de emoção e admiração perante tal mistério: uma fogueira surgindo subitamente, inesperadamente, do mais profundo da noite? É, porém, isso que a cada dia se repete: o nascer do sol - uma fogueira que do mais profundo da noite nos vem iluminar a terra imensa. Assim saibamos nós ter olhos para ver e alma para contemplar”.
Eu e a minha amiga Margarida estávamos em sintonia. Nada é garantido, nem tão-pouco o nascer do sol, muito menos no Toubkal. A nossa já altitude permitia-nos igualmente estar acima das nuvens, acima dos homens: é consolador a gente sentir-se de quando em quando... acima dos homens – como diria Manuel Laranjeira.



2 comentários:

  1. Cuidado com o tamanho da queda..... Principalmente quando se anda em terreno alheio...

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    1. Cara Bárbara, desde já obrigada pelo comentário. É sinal que leu e isso é uma agradável surpresa: a de saber que o blogue chega a pessoas (ainda) desconhecidas. Todavia não alcanço o significado das suas palavras... Mais uma vez obrigada

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