Caro leitor, cara leitora, não sabes o que aconteceu.
Tão depressa eu expressava a curiosidade para saber quem é o tal Martin e eis
que já somos amigos. Calma. Amigos na acepção virtual que hoje em dia paira nas
nossas vidas. Essas, também, cada vez mais ligadas ou desligadas – conforme a
perspectiva, já se sabe – do mundo maravilhoso não de Alice, mas do livro das
faces, dos rostos, das caras. Não sou tradutora. Mas também não me parece que
esse mundo seja traduzível – talvez nem valha a pena.
Os idiomas são eles próprios elementos de um mundo
global, (des)ligado, fragmentado, em rede. Não te acontece utilizar expressões
que não sendo em português não deixas de sentir como tuas? Por exemplo: ‘vou
googlar’; ‘faz delete’... Só é pena que não possamos ‘fazer undo’ de quando em
vez. Algumas palavras que soltei sem prever o seu efeito teriam sido apagadas:
tal o desarranjo que terei provocado no receptor. Momentos em que mais valia
ter mantido os lábios bem colados. Teria evitado também a entrada de insectos.
O Martin, dizia. Quando o meu namorado aterrou em
Santiago foi quase imediatamente para casa do chileno. Conversa para aqui,
fotografias para ali e entraram na espiral dos amigos virtuais. O Martin viu
então quem sou eu a musa do meu namorado – confio que ainda seja.
Recebi hoje o seu pedido de amizade. De maneira que a
minha rede social se vai ampliando, sem que com isso, confesso, o meu mundo se
alargue nas devidas proporções. Um dia de cada vez. É o melhor. Mas também já
percebi que assim é. Os meus planos são frequentemente ‘desplaneados’; por
conseguinte, a sua elaboração tende a reduzir-se. Também te acontece a ti,
leitor ou leitora, planear todas as horas do dia de acordo com a agenda e ao
final do dia verificares que nada foi conforme previamente estipulado, planeado,
programado? É quase sempre em sorriso que observo a viagem pelas horas
precedentes. Por esse motivo, prefiro a designação de ‘proto-plano’ ou
‘proto-agenda’. Assim, se alguém ou um lugar mais interessante do que o agendado
surgir, prolongo-me nesse instante. Na natureza nada se perde, tudo se
transforma – diria que os minutos não se perdem, transformam-nos: assim
estejamos receptivos.
Entretanto, o Martin. Logo algumas mensagens privadas.
Relaxa, leitora ou leitor. Não tem nada a ver com uma qualquer traição do
género virtual. Foi somente uma ‘pseudo-conversa’ de dois (ainda) estranhos. O
nosso tema em comum é só um (ainda): o meu namorado. Não obstante, o Martin não
se coibiu de tecer largos elogios às minhas fotografias. Deambulou virtualmente
pelas viagens ‘postadas’ na minha página. “Estoy
impresionado, tienes fotografías
maravillosas” – assim se reportava às fotografias que
partilho da Islândia.
Finalmente alguém que me compreende. É em
desabafo que o escrevo a ti, que me lês neste momento. Uma ilha de sonho – a
designação que lhe demos antes de embarcarmos: era o que ambos mais desejávamos
partilhar desde que nos apaixonámos – eu e o meu namorado, claro. Alugámos um
carro e percorremos toda a costa. Foi nesse ano que eu e o meu namorado
chegámos a colocar-nos em causa, tal qual a letra da ‘Paixão’ de Rui Veloso, quando
canta em tom de lamento: “Contigo aprendi uma grande lição / Não se
ama alguém que não ouve a mesma canção”.
Não era da canção que se tratava, apesar de os nossos
gostos nem sempre coincidirem. O que estava em causa era a perspectiva
dissemelhante face à fotografia. Na realidade, ainda não ultrapassámos totalmente
essa eventual diferença: sinto-me uma artista incompreendida. Artista – penso
que esse atributo se pode aplicar a mim. Ganhei alguns prémios com as baleias,
focas, géiseres e icebergs que fotografei em movimento: disparos contínuos que
me permitiram diversas montagens fotográficas.
O meu namorado, porém, não me dava muito espaço. Estava
constantemente a bufar nas minhas costas. Repara, leitora ou leitor, que a sua
postura era de facto incomodativa; quase irritante. Eu, fotógrafa em progresso,
estava deleitada, inebriada, arrebatada pelas paisagens vulcânicas e glaciares
que nos entravam pelos olhos. Os meus queriam captar e guardar essas imagens
não apenas na memória e no coração, mas também numa futura tela: para mais
tarde recordar! Pedia-lhe, então, carinhosamente que parasse o carro. Por vezes
ficávamos horas a fio no mesmo local. Eu era fotografia, respirava fotografia.
Trocava lentes, mudava filtros, montava o tripé e observava. Observava,
experimentava dar um passo à direita, depois outro à esquerda; piscava o olho
direito, depois o esquerdo; arrebitava as nalgas; ajoelhava-me; agachava-me;
deitava-me: e captava o instante perfeito. Delongas necessárias, senão
fundamentais para quem, como eu, tinha a oportunidade de pela primeira vez
estar na terra da Björk, uma das minhas cantoras predilectas, bem como de
desfrutar do tempo, do lugar e até dos ombros e dos braços do meu namorado –
ajudavam a carregar a parafernália imprescindível a uma fotógrafa em evolução.
Ora, vá-se lá saber porquê, o meu mais que tudo não tinha o
mesmo prazer que eu. Não só é imensamente friorento – um dos motivos por que
abalou para o Chile –, como tem formigueiros nos pés e noutras partes do corpo.
Disse-me que agora até nas costas. A consequência, poder-se-á facilmente
prever: fartou-se de estar ao meu lado a acompanhar-me nas minhas riquíssimas
experiências. Felizmente ele é um rapaz que sabe colocar-se no meu lugar e
adaptou-se, entretanto, ao meu anseio de fotografar.
O frio, esse, é que efectivamente se tornou desagradável,
apesar de termos ido em Agosto. Uma sugestão a ti, se tens a pretensão de ir à Islândia:
a segunda quinzena de Julho é a mais aconselhável – aquando do Verão pleno na
ilha quase polar. Contudo, não cries muitas expectativas: o máximo que sentimos
foram uns míseros 15ºC. Coincidiu com a nossa ida à Lagoa Azul. Mas nesse dia
até que valeria a pena uma temperatura substancialmente inferior, para assim
nos regalarmos com a amplitude térmica entre a água termal – chega aos 40ºC – e
o ar eventualmente frio.
Regressámos a casa ao nível dos zero graus. Ao aterrarmos
no Porto, o rosto do meu namorado aquecia – confio que fosse resultado da
temperatura amena que Setembro nos oferecia.
O Martin. Mais um amigo na minha já vasta lista virtual.
Naturalmente que o vasto é sempre relativo. Tenho 500 amigos na rede social mais
conhecida. Nada que se compare ao meu namorado que já vai nos 3200 – são
sobretudo do sexo feminino. Não quero sequer especular sobre o que isso possa
significar.
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