A lagoa azul... Corte no pé VIII





Caro leitor, cara leitora, não sabes o que aconteceu. Tão depressa eu expressava a curiosidade para saber quem é o tal Martin e eis que já somos amigos. Calma. Amigos na acepção virtual que hoje em dia paira nas nossas vidas. Essas, também, cada vez mais ligadas ou desligadas – conforme a perspectiva, já se sabe – do mundo maravilhoso não de Alice, mas do livro das faces, dos rostos, das caras. Não sou tradutora. Mas também não me parece que esse mundo seja traduzível – talvez nem valha a pena.
Os idiomas são eles próprios elementos de um mundo global, (des)ligado, fragmentado, em rede. Não te acontece utilizar expressões que não sendo em português não deixas de sentir como tuas? Por exemplo: ‘vou googlar’; ‘faz delete’... Só é pena que não possamos ‘fazer undo’ de quando em vez. Algumas palavras que soltei sem prever o seu efeito teriam sido apagadas: tal o desarranjo que terei provocado no receptor. Momentos em que mais valia ter mantido os lábios bem colados. Teria evitado também a entrada de insectos.
O Martin, dizia. Quando o meu namorado aterrou em Santiago foi quase imediatamente para casa do chileno. Conversa para aqui, fotografias para ali e entraram na espiral dos amigos virtuais. O Martin viu então quem sou eu a musa do meu namorado – confio que ainda seja.
Recebi hoje o seu pedido de amizade. De maneira que a minha rede social se vai ampliando, sem que com isso, confesso, o meu mundo se alargue nas devidas proporções. Um dia de cada vez. É o melhor. Mas também já percebi que assim é. Os meus planos são frequentemente ‘desplaneados’; por conseguinte, a sua elaboração tende a reduzir-se. Também te acontece a ti, leitor ou leitora, planear todas as horas do dia de acordo com a agenda e ao final do dia verificares que nada foi conforme previamente estipulado, planeado, programado? É quase sempre em sorriso que observo a viagem pelas horas precedentes. Por esse motivo, prefiro a designação de ‘proto-plano’ ou ‘proto-agenda’. Assim, se alguém ou um lugar mais interessante do que o agendado surgir, prolongo-me nesse instante. Na natureza nada se perde, tudo se transforma – diria que os minutos não se perdem, transformam-nos: assim estejamos receptivos.
Entretanto, o Martin. Logo algumas mensagens privadas. Relaxa, leitora ou leitor. Não tem nada a ver com uma qualquer traição do género virtual. Foi somente uma ‘pseudo-conversa’ de dois (ainda) estranhos. O nosso tema em comum é só um (ainda): o meu namorado. Não obstante, o Martin não se coibiu de tecer largos elogios às minhas fotografias. Deambulou virtualmente pelas viagens ‘postadas’ na minha página. “Estoy impresionado, tienes fotografías maravillosas” – assim se reportava às fotografias que partilho da Islândia.
Finalmente alguém que me compreende. É em desabafo que o escrevo a ti, que me lês neste momento. Uma ilha de sonho – a designação que lhe demos antes de embarcarmos: era o que ambos mais desejávamos partilhar desde que nos apaixonámos – eu e o meu namorado, claro. Alugámos um carro e percorremos toda a costa. Foi nesse ano que eu e o meu namorado chegámos a colocar-nos em causa, tal qual a letra da ‘Paixão’ de Rui Veloso, quando canta em tom de lamento: “Contigo aprendi uma grande lição / Não se ama alguém que não ouve a mesma canção”.
Não era da canção que se tratava, apesar de os nossos gostos nem sempre coincidirem. O que estava em causa era a perspectiva dissemelhante face à fotografia. Na realidade, ainda não ultrapassámos totalmente essa eventual diferença: sinto-me uma artista incompreendida. Artista – penso que esse atributo se pode aplicar a mim. Ganhei alguns prémios com as baleias, focas, géiseres e icebergs que fotografei em movimento: disparos contínuos que me permitiram diversas montagens fotográficas.
O meu namorado, porém, não me dava muito espaço. Estava constantemente a bufar nas minhas costas. Repara, leitora ou leitor, que a sua postura era de facto incomodativa; quase irritante. Eu, fotógrafa em progresso, estava deleitada, inebriada, arrebatada pelas paisagens vulcânicas e glaciares que nos entravam pelos olhos. Os meus queriam captar e guardar essas imagens não apenas na memória e no coração, mas também numa futura tela: para mais tarde recordar! Pedia-lhe, então, carinhosamente que parasse o carro. Por vezes ficávamos horas a fio no mesmo local. Eu era fotografia, respirava fotografia. Trocava lentes, mudava filtros, montava o tripé e observava. Observava, experimentava dar um passo à direita, depois outro à esquerda; piscava o olho direito, depois o esquerdo; arrebitava as nalgas; ajoelhava-me; agachava-me; deitava-me: e captava o instante perfeito. Delongas necessárias, senão fundamentais para quem, como eu, tinha a oportunidade de pela primeira vez estar na terra da Björk, uma das minhas cantoras predilectas, bem como de desfrutar do tempo, do lugar e até dos ombros e dos braços do meu namorado – ajudavam a carregar a parafernália imprescindível a uma fotógrafa em evolução.
Ora, vá-se lá saber porquê, o meu mais que tudo não tinha o mesmo prazer que eu. Não só é imensamente friorento – um dos motivos por que abalou para o Chile –, como tem formigueiros nos pés e noutras partes do corpo. Disse-me que agora até nas costas. A consequência, poder-se-á facilmente prever: fartou-se de estar ao meu lado a acompanhar-me nas minhas riquíssimas experiências. Felizmente ele é um rapaz que sabe colocar-se no meu lugar e adaptou-se, entretanto, ao meu anseio de fotografar.
O frio, esse, é que efectivamente se tornou desagradável, apesar de termos ido em Agosto. Uma sugestão a ti, se tens a pretensão de ir à Islândia: a segunda quinzena de Julho é a mais aconselhável – aquando do Verão pleno na ilha quase polar. Contudo, não cries muitas expectativas: o máximo que sentimos foram uns míseros 15ºC. Coincidiu com a nossa ida à Lagoa Azul. Mas nesse dia até que valeria a pena uma temperatura substancialmente inferior, para assim nos regalarmos com a amplitude térmica entre a água termal – chega aos 40ºC – e o ar eventualmente frio.
Regressámos a casa ao nível dos zero graus. Ao aterrarmos no Porto, o rosto do meu namorado aquecia – confio que fosse resultado da temperatura amena que Setembro nos oferecia.
O Martin. Mais um amigo na minha já vasta lista virtual. Naturalmente que o vasto é sempre relativo. Tenho 500 amigos na rede social mais conhecida. Nada que se compare ao meu namorado que já vai nos 3200 – são sobretudo do sexo feminino. Não quero sequer especular sobre o que isso possa significar.

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