A ‘amiga louca’ em Saigão... Corte no pé IX





Quando invocam a minha pessoa logo lhes vem à boca: “aquela, a nossa amiga louca”. O nome por que me baptizaram. Como se deve calcular, isso é apenas um epíteto. Maria dos Anjos; assim escreveu a minha querida avó à minha mãe: “Querida nora, não sei porquê, mas tenho comigo que a minha primeira neta se podia chamar Maria dos Anjos”. Menos mal... ou não – Célia: o nome que os meus pais haviam seleccionado.
Maria dos Anjos – talvez um nome adequado. Eventual explicação para a alcunha entre determinados amigos – ‘a amiga louca’. O atributo apenas e só por não me enquadrar nos ditos padrões de normalidade; esses da ditadura da maioria! Classificações vãs; assim as entendo. Não sou normal, dizem: por isso sou louca; ou melhor muito louca. Mas que diabo!
Maria dos Anjos. Angélica nem por isso. A mania dos anjos, até que sim. Não é propriamente uma mania: ouço vozes. Como não as reconheço entre os vivos que fazem parte dos meus círculos afectivo e social e tão-pouco profissional, avento uma hipótese: são vozes dos anjos, angelicais, sobreterrenas, sobrenaturais, sobre qualquer realidade que não a material em que me movo. Apesar de me deslocar amiúde por realidades incandescentes e imperceptíveis, aos olhos de muitos dos que me rodeiam. Daí que conceba tais vozes para lá desta minha existência corpórea.
Desse discurso já me desisti. Cada vez que os meus lábios se enformam para proferir palavras da família dos anjos, os meus amigos gesticulam como quem diz: “Oh Maria, por favor. Só porque és dos Anjos não quer dizer que eles te visitem; se é que existem”. E assim pensam que abafam as sonoridades que só eu escuto.
Outro motivo para me sentenciarem como a tal ‘amiga louca’ deve-se ao facto de ter repentes. De quando em vez sou dada a amochilar os meus parcos haveres e deixo-me conduzir por um impulso que dizem ser ora de viajante, ora de fugitivo. A qualificação para o segundo impulso encontrei n’ “Um homem de partes”, de David Lodge.
A última vez que me senti impulsionada aterrei em Saigão. Ho Chi Minh: a sua denominação actual. É provável que os vietnamitas desejem apagar os tempos idos da ocupação norte-americana. O sangue derramado não deve, todavia, ter-se esbatido da memória. A bandeira que os representa marca bem essa cor de morte.
Saigão. Ho Chi Minh. Se os meus amigos aí se tivessem  deslocado de moto-táxi como eu, perceberiam que o epíteto com que me evocam é totalmente descabido, ou mesmo hiperbólico. Eles não sabem o que é a loucura: a loucura do trânsito. Motas, motoretas, lambretas, motociclos, motocicletas, bicicletas e todos os veículos sobre duas rodas que se possam avançar.
Centenas e centenas sempre em movimento, com ou sem sinal vermelho. Mais um vermelho que neste caso é com efeito desconsiderado. Se tal não me incomodou quando era uma das que usava capacete de equitação – os mais usuais entre os motoqueiros de Saigão –, o mesmo não posso afirmar quando a pé e carregada com uma mochila de quinze quilos.
Uma vez, a primeira de muitas similares, tentava atravessar uma rua. Motas de um lado, lambretas do outro, mais motociclos pela frente e até motoretas pelo passeio. Por onde continuar o caminho até à Rua Bui Vien? – a do Graceful Saigon Hotel, onde me instalaria. Eu e muitos outros turistas ao estilo backpack. Quase caí, tal o desequilíbrio provocado pelo susto. Pensei que me estrearia nos atropelamentos: tive de aprender rapidamente a atravessar as ruas em Saigão. Basicamente correr por entre os momentâneos e exíguos espaços livres.
Na tarde seguinte à da chegada vi um rosto que me era familiar. Ali, em Saigão? “I Know you...” Escutei-me dizer ainda: “You’re much prettier live”. E era, uma actriz de Hollywood Frances Louise McDormand (o nome depois de googlar ). Um sorriso fácil agradeceu. Não costuma ouvir isso, ao contrário. Pedi um autógrafo! Estava de férias, não o faria. Acabámos a troca de palavras desejando mutuamente boas férias.
Ainda nesse dia ao fim da tarde fui agraciada com um convite para jantar. Fui abordada por duas jovens vietnamitas enquanto passeava por um jardim. Se eu tinha tempo para conversar com elas. O seu objectivo era só um: melhorar o seu inglês. Porque não? Tempo era coisa que não me faltava. O tempo que era só meu e podia desfrutá-lo do modo que bem entendesse, que bem me apetecesse, partilhá-lo com quem quisesse. Anuí.
Eu e as estudantes de Saigão num banco do jardim. Ambas universitárias a estudarem numa grande cidade; as suas famílias longe e campesinas, pelo que percebi. Tentei uma fala pausada. É visível a dificuldade das gentes da Ásia na locução do idioma estrangeiro. A linguagem é totalmente díspar, solicitando outras formas de soletrar e de dicção, o que dificulta a aprendizagem correcta do inglês e, imagino, de todas as línguas germânicas e outros grupos linguísticos.
Antes de nos despedirmos outra admiração. Queriam estar comigo outra vez! Combinámos jantar na noite seguinte e trocámos números de telefone. Um jantar tipicamente vietnamita... às vezes é bom ser louca, como me chamam os amigos. Talvez valha a pena ter repentes e não ser normal. 




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