Uma garota. Quase mulher. Cabelos negros, vaporosos. Uma sala de leitura
num sótão embaciado pelas janelas há muito esquecidas de um pano limpo. Uma
garota sonhadora. Sonha a realidade possível pelo encontro de olhares amorosos.
Nas estantes bafientas encontra cartas perdidas, reveladoras de paixões
memoradas em corações agora gelados.
Desdobra papéis amarelados e amarfanhados pelo tempo. “Tenho muitas
saudades tuas, dos teus beijos macios...” – declarações esquecidas pelas horas
que se tornaram dias; dias que se alongaram em meses, anos. Amélia. Assim a
chamam quando querem dizer-lhe alguma coisa ou abraçar o seu corpo menino quase
pronto para ser mulher.
Amélia encontra também gritos abafados por narrações montanhosas. Grumos
verbais materializados em palavras escritas há muito desvanecidas. Escuta as
vozes interiores num frémito espesso: “Tens que entregar estes sentimentos por
revelar”. A ideia que se vai enformando em cada outra carta velha descoberta no
interior de livros, cujo sonho é serem lidos. As bibliotecas – para que servem?
Noutros tempos para as elites; neste tempo, das massas, quase para nada.
Preferem-se ecrãs tácteis descomprometidos do esforço de pensar e viajar na
leitura.
Amélia lê. Amélia quer escrever. Lembra a máquina da avó de pele
encarquilhada pelo tempo. As teclas resguardadas por um pano também ressequido
pelos Invernos. Pelas Primaveras também. No banco do jardim perfumado, ao sabor
de brisas suaves de muitos Verões, essa máquina revelou declarações
intencionalmente amorosas, tal qual estas cartas vasculhadas, sedentas de serem
respondidas. O propósito da adolescente quase adulta que já compreende a
importância de um beijo perdido.
Num envelope envelhecido pelo pó seco do sótão encontrado sem acaso, a
morada endereçada. O ponto de partida. O nome em letra arquitecturada
cuidadosamente, amorosamente. Lê. Decide-se. Será o remetente sonhado e
desejado. Senta-se à mesa escurecida pelo verniz que ainda confere brilho,
outro que não o do sótão apagado. A máquina do tempo em teclas ávidas de serem
premidas. Resolve-se em palavras. Quais, ainda em esboço mental. Rapidamente
deixam de ser ideias vãs para se concretizarem numa declaração esperada... eternamente
– tua.
No entardecer que se faz longo, Amélia sorri para as letras que se
impregnam numa folha branca que deixa de ser vazia. “Meu amor só hoje encontrei
a tua carta numa gaveta trancada. Soubera eu que me amavas do mesmo modo que eu
e teria ido ao fim do mundo para te encher de beijos. Quero-te muito, ainda. As
minhas pernas já carregam muitos Outonos, mas as flores do meu sentimento ainda
são coloridas como rosas de um jardim principesco. Anda, vem ter comigo. Vou
ter contigo. Tenho um abraço para te dar, levo-te ou vens buscar? Assinado: o
teu eterno admirador que se deseja reconhecido”.
A imagem da carta escrita em frémito convulsivo de Amélia. Próximo
passo. Um envelope endereçado à amante, que talvez ainda possa ser amada. Os
dias que se tornaram anos não apagaram aquele sentimento profundo. A crença de
Amélia na sua inocência bucólica.
No lento circuito do tempo, o olhar vasto em sorriso intenso de Amélia
esquadrinha um plano. As nuvens informes rasgam as saudades sepultadas dos que
se escreveram sem resposta. Será a réplica, Amélia. Desdobra-se em várias e
encontra o lugar da primeira remetente. Termina em tom declarativo o plano:
“Vou deixar esta carta no correio!”
Esconde-se. Na casa caída do lado existe um portão sempre aberto que lhe
dá um lugar de primeira plateia. Invisível – pensa estar. Olha em redor. A
carta há minutos numa caixa pouco usada. A hora do carteiro é certa. Aguarda o
tempo da leitora, urdindo a estrutura de um beijo de um futuro adiado pelo
silêncio inadvertidamente fechado numa gaveta desossada. Amélia desenha
contrastes de lágrimas que hão-de sulcar dois rostos anosos. Nem por isso
desapaixonados. A expectativa de uma jovem gentil que sonha os sonhos
sepultados pelos remetentes nunca lidos, engavetados que foram por mãos ardilosas
e controladoras de um amor materno, quase sempre inspeccionador.
A porta abre-se. A casa que perscruta tem vida. Uma mulher. Incalculável
o número de anos gravados em rugas que a memória carrega. Atenta – Amélia – a
cada movimento lento soado e pouco escutado deste lado da casa recentemente
caiada de portão receptivo a estranhos. A caixa de correio. Uma carta
inesperada por quem nada espera há tantos anos que não se lembra.
O rosto idoso muda a sua forma para deleite do rosto ainda juvenil. Um
sorriso que hesita nas lágrimas que se empurram umas às outras num olhar que
repentinamente se quer refrescar na emoção ainda vaga. Os pensamentos vão
ganhando volume na lentidão de uma mão que agarra o envelope e o conduz ao
lugar do corpo que guarda as saudades de um amor nunca esquecido. Amélia
observa uma pessoa abundante no tempo. Retira-se. Discretamente rasa pela porta
em transformação. Fechou-se para que a leitora se encontrasse num passado...
ainda presente.
Na claridade parda da tarde que se esvai, Amélia repara no céu
polvilhado. Quantas cartas para responder? A sua missão: entregar amores
perdidos, guardados em memórias alheias insondáveis, talvez. Ou não...
Saltitando em pés elegantes e infantis ainda, escorre-se pelas ruas do bairro
em direcção à máquina de escrever onde a aguardam palavras amoráveis...
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