Noite em Iguaque *


Fecho a porta. Apago as luzes. Tranco a porta por dentro. Calo as vozes das crianças. Vai amor, que a noite é velha. E quem amou já não sente. Não assim. Choro. Maltratas-me. Bebeste demasiado. Hoje, como na semana passada.
Fecho a porta. Apago-te da minha vida. Lá fora, as estrelas e os pirilampos iluminam a noite. A casa está na obscuridade. Assim partiste o meu coração. Triste. Desiludida. O desamor habita-me. Os nossos filhos merecem mais que um pai que gasta tudo em álcool. Pior que esse desperdício são as tuas palavras. Pior que as tuas palavras são as tuas mãos brutas. Basta!
Fecho a porta. Apago as luzes. Apago-te da minha vida.
Vamos acordar. Amanhã de manhã. Vamos acordar. Tu, na rua como um cão. Eu com os filhos, em casa que deixou de ser a nossa. Vais pedir como um cão depois da ressaca. Pediste como um cão - acusaste-me tantas vezes. Desisti de contar. Os cães são fiéis. Tratam bem os donos.
Amanhã de manhã. Vamos acordar. Quando abrires a porta não estarei. Os teus filhos não precisam de ti. Assim! Não sabem o que é um pai.
Amanhã de manhã, acorda. Desperta. Ainda vais a tempo. Não de nós! Pelo menos de ti. Liberta-te da ressaca. Quem sabe, um dia, os teus filhos conhecerão o verdadeiro pai.
Fecho a porta. Esta noite. Amanhã de manhã. Vamos acordar.


*  Este texto foi escrito depois de ter acordado com a vizinha a bater-me à porta... Com medo. 


19 de Junho, 2015

Iguaque, Colômbia

Pega na bicicleta e vai!



Imagina que a vida que vives é apenas resultado da tua imaginação.
            Pega na bicicleta e vai! Se esta realidade não doesse tanto estarias bem.
            Esfrega os olhos. O monstro morrerá e tu serás quem és. Melhor que tu. Melhor que a realidade aparente.
            No teleférico, Huyen esfrega os olhos. A cobra arranca-a do pesadelo. O canyon de Chicamocha que a separa da Mesa de Los Santos devolve-a ao banco que partilha com outra viajante. Huyen. Predadora, como a cobra a descascar que a visitou. Não é a televisão que está à sua frente. É um vale assombroso e belo que a janela do teleférico lhe mostra. Cores vívidas, o verde mais verde que a chuva refrescou. Arriscaram, as duas mulheres. Huyen e a outra viajante anónima, que a convidou para passar o dia no Parque Nacional de Chicamocha. Atravessaram o canyon na cápsula presa por cabos. "Sê forte e vem comigo", seduziu a viajante que Huyen ainda desconhecia. Sem reagir, pensou de si para si não necessitar que a desafiem com palavras como "sê forte".
            Aterrou na Costa Rica três meses antes. Inicialmente, a sua intenção era permanecer um mês nesse pequeno país que se encontra no topo dos países com a população mais feliz. Mais feliz. Não necessariamente com melhor qualidade de vida. Essa, dizem as estatísticas vive-se nos países do norte da Europa. É pena que também seja nesses países que a taxa de suicídio seja das mais elevadas.
            Caminhou pela Costa Rica e foi muito feliz, desfrutando das praias, das pessoas aparentemente sempre felizes, sobretudo para os turistas. Dormiu em 'hamacas' à beira-mar. Contemplou Centauro por entre as constelações que o céu estrelado lhe oferecia.
            Vislumbrou a cobra. Foi mordida! O sonho tornou-se realidade no país onde o verde contrasta contínua e fortemente com o azul. Ficou prostrada. O veneno era enfim potente. Insuficiente para a arrancar desta existência terrena. O suficiente para lhe picar o inconsciente. A viagem que empreendera era afinal uma farsa.
            Recomeçou. Comprou uma bicicleta em segunda mão, juntamente com alforges. Verificou a mala com que saíra de Boston. Trocou a mala e as roupas que então se denunciavam excessivas por calções robustos, um capacete e uma tenda. Partiu de San Jose e fez-se à estrada. Pedalou. Pedalou. Sempre só. Olhos na estrada. Pernas pedalando num movimento cíclico. As subidas não a demoveram. A chuva tropical tão-pouco. Acampou no Panamá. O alfaiate é um mito. Uma história para americanos, como ela, se entreterem.
            Huyen é americana de nacionalidade. A sua origem, Ho Chi Min. Ainda em Saigão, a pobreza predadora e o desejo dos pais por uma vida melhor, transportaram-na para o país onde todos os sonhos, dizem, se tornam realidade. E com efeito, Huyen vivia um sonho.
            Pedala. Limpa o pó. A realidade vai-se tornando um pouco mais real. Os gémeos vão engrossando, as coxas tornando-se mais fortes. Mais fortes, menos largas. Largas são as três irmãs mais velhas e sedentárias. Com o açúcar, o sal e a gordura do McDonald's a sufocar as veias e as artérias.
            Huyen acordou. A mordedura da cobra arrancou-a do sono. Pairava no fascínio resplandecente dos muito felizes costa-riquenhos.
            Numa praia cálida do Panamá conheceu um holandês - Jonathan, um homem de trinta e cinco anos. Mais novo cinco que Huyen, Jonathan espraiado lia "Os quatro acordos" de Miguel Ruiz. Ficou curiosa. A voz serena de Jonathan era encantatória. Os olhos muito azuis, um enigma. Assim lhe soavam as palavras que a angustiavam. Afinal não era assim tão estranho o que sentia. A sua dificuldade em viver no emprego. A estabilidade que de vez em quando era posta em causa pela competição a que estava sujeita. Era menos habilitada que os colegas. Apenas detém o grau de mestre. Mestre, mas pouco, no cumprimento das regras para subir na carreira de engenheira dos materiais.
            O holandês ofereceu-lhe os quatro acordos. Huyen agradeceu, dando-lhe o único livro com que saíra de Boston - essa terra então longínqua. "A vida nos bosques", de Henry Thoreau. A sua bíblia na empresa de auto-conhecimento.
            Para além da partilha literária, Huyen e Jonathan transformaram a solidão das noites anteriores num abraço nocturno, tão longo como as sete noites que Huyen ficou ainda no Panamá. As lágrimas escorriam, lavando-lhe a alma, quando compreendeu que o caminho a percorrer só ela o poderia pedalar.
            Está em Bucaramanga, Huyen. Atravessa o teleférico de Chicamocha. A viajante anónima escutou deslumbrada, a história da mulher corajosa. Amanhã Huyen voltará à Mesa de Los Santos. Pedalará desde Bucaramanga. Acampando sob o céu estrelado, continuará a desformatar os acordos sociais. A cada dia sobre a bicicleta, a cada subida, a cada descida, uma convicção que se desvanecerá. A cada manhã, uma nova Huyen. Em cada subida um passo no conhecimento dos seus limites, de si. A cada paragem, um nova pessoa que se encantará com a sua força. Como esta viajante solitária que se observa, inspirada, compreendendo que há tanto, mas tanto a aprender... Quem sabe, também pedalando.

21 de Junho, 2105


Iguaque, Colômbia 

Parque Tayrona com Carol





            Um lugar fundamental e imperdível. Tayrona. As fotografias de um amigo viajante. Uma inspiração que me guia. Tayrona. O Parque Nacional Natural, próximo da cidade Santa Marta na costa do Caribe. Carol - Niña para o seu amado sobrinho; outra tia babada - vive numa quinta de permacultura nas imediações de Santa Marta.

            À saída de Bogotá, uma mensagem através do FB - digam o que disserem, tem sido um excelente modo para contactar amigos, familiares e conhecidos. A reacção de Carol foi surpreendente - desejava acompanhar-me para uma caminhada no parque!

            Conheci a Carol o ano passado num mosteiro de Choachí, a uma hora de Bogotá. Servimos juntas durante onze dias num retiro de meditação Vipassana. Antes dela, encontrei-me com outras amigas em Bogotá que também se instalaram confortavelmente no meu coração, nesses dias de pouco silêncio para os servidores da Vipassana.

            Dois dias depois de ter aterrado em Santa Marta apanhei o autocarro para o parque. E não é que a meio do caminho a Carol entrou?! Que agradável coincidência. Ofereci a entrada no parque. Para as pessoas da Colômbia o valor é um terço do preço para os estrangeiros. Pareceu-me ser o mínimo a fazer, dada a sua pronta disponibilidade. Relutante, aceitou. Sorrindo, agradecia. As restantes despesas foram naturalmente partilhadas, sendo certo que foi ela quem mais ofereceu. A generosidade das pessoas que se têm cruzado comigo tem sido transbordante. Também eu transbordo de alegria e felicidade com o que vou experienciando.

            Como a primeira praia onde começámos a nossa caminhada. Cañaveral. Extasiada. Assim comecei, assim permaneci até ao fim dos três dias. O calor abrasador convidava ao primeiro banho de mar. A minha estreia na Colômbia. Nessa praia apenas os pés e as pernas. As ondas revoltas inspiravam muita precaução. Sentei-me a contemplar os pelicanos. Outra estreia. A praia deserta de água tépida aqueceu ainda mais o meu coração.

            Seguimos para outra praia, desta vez a trote. A mochila pesada com os alguns haveres e o garrafão de cinco litros de água impeliram-me a aceitar a sugestão da Carol. Apesar do caminho lindo, muito verde e musical não me senti particularmente bem. O calor que naturalmente também afectava os cavalos, que transportando-nos a troco de dinheiro para os seus 'proprietários', provocou-me um certo mal-estar.

            É pouco provável que repita este tipo de experiência. Deixámos os cavalos à entrada de um parque de alojamento com acesso à Praia Arrecifes. Aí nos deleitámos em contemplação meditativa. O coração de Carol espalha sabedoria. Transmitia uma paz imensa, como imenso era o mar com horizonte longínquo. Tão pequena e tão enorme me sentia. O meu ser recebia a totalidade em cada instante.

            Foi somente na terceira praia - La Piscina - que nos despimos para o banho. Merendámos e desfrutámos da água tépida. O meu corpo multicolor. Peito e braços bronzeados, tronco e coxas a roçar a roupa branca em lixívia e pernas menos mal... Uma caricatura hilariante registada em fotografia.

            Serena e grata - o estado em que essa água salgada, límpida e morna me concedia. Éramos. Assim... tão simples ser feliz. Ser, no mar em companhia de uma pessoa tão bonita como a Carol. As marias-mulatas - pássaros negros semelhantes aos melros - eram a companhia sonora. Ofereciam uma melodia harmoniosa juntamente com o leve ondear da água na areia branca e macia.

            O sentimento de gratidão cresce em cada dia desde que aterrei na Colômbia.

            A partir das cinco da tarde não é permitido caminhar pelos 'senderos' do parque Tayrona. Atracámos então no Cabo San Juan del Guia. As hamacas - espécie de redes mas mais robustas - estavam todas ocupadas. A Carol ofereceu a noite numa tenda. Amarela, a única sem número e de cor distinta das restantes - num verde desbotado pelo sol. A nossa tenda, plantada na primeira linha: o mar tranquilo à nossa frente.

            Chegámos pois a tempo de assistir ao pôr-do-sol. Perfeito. Sentadas à beira-mar, partilhando experiências. Eu bebia a sua sabedoria, confirmando novamente como privilegiada sou. Seguiu-se um jantar simples no restaurante do parque. Peixe fresco para a Carol, vegetariano para mim. Tenho encontrado sempre uma alternativa. Escandaloso, o céu exibia as Ursas,  Cassandra e outras  constelações. Que mais desejar?

            Às cinco da manhã seguinte estávamos as duas, cada uma em seu espaço, aproveitando o silêncio matinal para a meditação do mar. O pequeno-almoço foi preparado por mim e servido num banco rústico em frente ao mar - o peso do dia anterior ia diminuindo. Valeu a pena o esforço pelo bem que soube a partilha no lugar perfeito.

            A suite ficou trancada com as mochilas e partimos pelo trilho até ao Pueblito Chairama. Em teoria, seria uma hora e meio de caminho subindo até à povoação indígena protegida. Não sei se era pela minha companhia; o inevitável aconteceu. Perdemo-nos! Escapou-nos uma das placas informativas. Subimos fora do trilho e ficámos estancadas no meio da vegetação cerrada. Descansámos para decidir como prosseguir. A prática mística de Carol sugeria que voltássemos atrás, antes que nos embrenhássemos ainda mais na floresta semi-tropical. Uma ideia sensata que nos conduziu finalmente ao Pueblito Chairama.

            Em vez de hora e meia, demorámos quase quatro. Na bolsa, as duas barritas de cereais foram a merenda possível. A comunidade indígena, constituída por vinte pessoas oferecia apenas, e tanto!, bebidas frescas. O preço era o previsível pelo difícil acesso. Passeámos e desfrutámos do silêncio entremeado pelos passos tranquilos dos habitantes remotos que ainda sobrevivem e vivem ao ritmo da Natureza.

            Os cabelos longos e negros, as vestes da cor de pérola decoradas com colares por si elaborados, o regozijo para os nossos olhos bem abertos. E para as fotografias, também. Estas foram pagas. Manoel, um dos indígenas com quem conversei manifestou insatisfação para com o governo e para com muitos turistas. As minhas palavras - segundo Manoel - eram diferentes. Aceitara com naturalidade a sua recusa em deixar-se fotografar. Ofereci-lhe uma gratificação. Gostava de guardar uma recordação bonita do lugar, ao mesmo tempo que ajudava um pouco a população esquecida. Acedeu. Eu sorri e guardei, também para partilhar com quem quiser.

            Eram três da tarde quando chegámos ao Cabo. A intenção inicial era fazer o check-out até ao meio-dia. Ah, ah! Almoçámos em companhia de uma mulher de Bogotá. A Esperança. Havíamos conversado com a senhora e os seus filhos no caminho para o Pueblito. Na realidade, essa foi a distração que promoveu a demora - uma forma ligeira de dizer que nos perdemos.

            A senhora Esperança e os dois filhos - jovens adultos - não alçaram o lugar mágico. A sua segunda tentativa frustrada. As pedras não lhes abriram o caminho, justificou resignada. A tarde continuou em languidez à beira-mar.

            Na tenda, às sete da noite, com as cabeças viradas para a 'porta', apreciámos mais uma vez o céu semeado de estrelas. Adormecemos até às seis da manhã seguinte. O corpo pedia. Escutámos a sua sapiência natural.

            A última manhã foi percorrendo o caminho de volta pelo interior do parque seguindo o ritmo musical das aves, das árvores, do vento nas folhagens altas.

            Despedi-me com até logo, num longo e forte abraço no autocarro de volta para Santa Marta. A Carol vive numa quinta que aceita voluntários. Cinco horas diárias de trabalho no campo em troca de alojamento e alimentação - muito atractivo. Quem sabe em Junho...

            Querida Carol, muito obrigada pela partilha e por estes dias tão lindos no Parque Nacional Natural de Tayrona. Estão em mim, com certeza para sempre. Estou cheia, transbordando!

 

 
 
25 de Maio, 2015

Bucaramanga, Colômbia 


 

Todd - una vida encantada

Foto de Todd Breese

Intertexto com 'Prospecção' de Miguel Torga

Mãos de mulher afagam com languidez os caracóis cada vez mais brancos da cabeça de Todd. Os olhos verdes são de criança ávida. Ávida por viajar. O tesouro sagrado. A fortuna de tocar a vida na totalidade. Una vida encantada - as palavras gravadas num dos braços. No outro: just breath. 


No verde flamejante que a chuva tropical regou, renasce o azul real de um colibri.
Todd caminha de mochila às costas. Just breath. Mãos livres para receber o calor do café torrado. O aroma quente desfaz-se no sabor doce e macio, líquido, dos grãos transformados em café


Salento. Universal riqueza. Peneira os grãos de primeira qualidade. O vermelho fogo das orquídeas guiam o caminho - um poema colorido. Sem nenhuma certeza voa a borboleta negra de listas amarelas. Só deseja a fortuna de se encontrar. 

Todd. Viaja com a sede antes da fonte. Não são pepitas de oiro o que procura. A casca doce de uma tangerina, o sabor que revolve a solidão. Puro como o deserto, Todd abre os olhos. Arregala os olhos; fica inteiramente nu e descoberto. A alma triste e desperta sorri numa brancura que ofusca. 

Cava, lava e peneira. Só deseja a fortuna de tocar o infinito.

Em Salento, o vale Cocora é a ponte para Cuba. Carrega mil certezas de aluvião. Mãos de mineiro. Soterradas foram, com o oiro dentro de si. Cava, lava, peneira. Caminha de terra em terra. Buscando aqui e acolá

Um poeta antes dos versos; procura apenas a riqueza universal: o tesoiro sagrado de um café doce e suave. As pepitas de oiro para uma alma triste... de vez em quando. Puro como o deserto, Todd numa terra singela: Salento verdejante.

     
30 de Maio de 2015
Salento, Colômbia