À espera




            Guardo segredos na mochila. Memórias de odores de assentos de autocarro, barco e comboio. Cheiros de chão de muitos lugares onde parei para esperar. Saber esperar – uma das três aprendizagens de Siddhartha. Aprender a jejuar e a pensar, as outras duas que a personagem de Hermann Hesse tinha como objectivos de vida.
É com muita frequência que me observo em situações, nas quais escuto uma voz interior sussurrar-me com veemência: Tens de aprender a esperar; confia. Sem que nada faças, nada ficará por fazer – conforme um dos versos do Tao. E, com efeito, há cerca de três anos que pressinto que essa é uma das grandes aprendizagens da minha vida. Saber esperar. Confiar que tudo acontece no tempo e espaço certos.
Não significa isto que não tenha de realizar, de trabalhar, colocar em prática o que é necessário para continuar a caminhar. Quer antes dizer que, após efectuar e empenhar-me o melhor que sei e posso em determinada tarefa para alcançar o que me propus, nada mais há a fazer. Sem precipitar os acontecimentos, sem forçar as situações, sem insistir com as pessoas de quem aguardo resposta, sem provocar encontros, sem desejar que os meus objectivos se concretizem do modo que eventualmente gostaria que acontecessem. Nada disso.
Como num jardim ideal e idílico, preparo a terra, arando-a. Aguardo que seja o tempo mais propício para plantar as sementes. Depois, com cuidado, verifico a necessidade de regar. Depois, vou observando atentamente, sem pressa o que é visível, compreendendo que a semente soterrada, sem luz, vai germinando. E, no tempo certo, surge o primeiro laivo de vida apreensível aos meus olhos. Sem que nada fizesse, mas sem que nada ficasse por fazer. A chuva terá feito o resto. Afinal, nem sequer era necessário regar. Bastou observar e confiar.
E, no tempo certo, aquele primeiro centímetro visível vai crescendo, crescendo. Até que finalmente o botão ganha forma. Até que finalmente com um raio de luz a iluminar aquela vida sem pressa, as pétalas abrem, qual palete divina. E a flor resplandece e o sorriso da testemunha transmuda-se em riso.
As mãos não resistem. Tocam sem agarrar no tecido colorido das tulipas de fogo em flor. Sentem a textura e chamam as narinas. O rosto desce e o nariz inala mais um odor e outro odor. A terra ainda húmida da noite de chuva, o aroma adocicado do gineceu e androceu.

Contemplando, sob o céu azul saturado, a testemunha recebe, enfim, o esperado telefonema. No início de mais uma tarde no jardim, escrevendo... nem sempre... os olhos como que se desviam para as laranjeiras, para as camélias cor-de-rosa e para as tulipas, desta vez muito vermelhas. Num desses devaneios as mãos interromperam-se, desta feita para atender uma voz a falar português, é certo, mas do Brasil! Diga-se de passagem que ao visualizar um número tão extenso, reconheci a aceleração do ritmo cardíaco. Seria? Era! “Oi, Ana! É para saber se está disponível para trabalhar connosco na coordenação dos Jogos Olímpicos. Gostámos da sua prestação como voluntária no evento-teste em Outubro passado, analisámos seu currículo e queremos saber se está interessada em se juntar ao nosso time... para trabalhar!”
A mochila estremeceu de contentamento. A testemunha prepara-se, agora, para voar novamente para o outro lado do mundo... A mochila regozija-se; está pronta para guardar mais segredos, para arquivar mais lugares de comboio, autocarros e, em quem sabe, barcos e lanchas...

Março, 2016
Matosinhos, Portugal
 

Para onde voam os papagaios de papel? - Isla del Sol




            É muito raro consultar guias de viagens antes de embarcar. Se pesquiso no mundo virtual informação sobres os locais em que já me encontro, é sobretudo para ter noção do que será mais ou menos interessante conhecer. Parece óbvio. Não é estranho, porém, que essas buscas decorram de forma caótica e sem grande curiosidade.
            Poder-se-ia perguntar então como escolhi este ou aquele destino. Escutando de viva voz quem por lá andou. As histórias, aventuras e desventuras de outros viajantes e/ou turistas são os meus guias preferidos para prosseguir a cada dia.
            Segui para a Isla del Sol em Copacabana, Bolívia, por exemplo, por sugestão de Hanuku. Encontrámo-nos numa das ruas de Cusco, dois dias depois do Salkantay trekking. Vinha com Bastien muito sorridente – como sempre, aliás. “Vou para Puno, quero conhecer o Lago Titicaca”. O lago mais alto do mundo – a cerca de 3800 metros – está entre o Peru e a Bolívia. “Porque não vais antes para Copacabana? Estive lá e penso que é mais interessante que do lado do Peru, desde logo por ser muito menos turístico...” Porque não, pensei. Afinal, até prefiro lugares mais tranquilos. Das palavras de Hanuku (mais do que as expostas aqui) emanava algum mistério.
Na noite do dia seguinte, apanhei o autocarro nocturno rumo a Copacabana, não a do Rio de Janeiro, mas da Bolívia. Uma novidade para mim. A viagem nocturna proporcionou-me um encontro com Arnaud. Um rapaz pouco mais novo que eu, de origem francesa. Tal como em Bastien – o namorado de Hanuku –, denotei aversão ao seu país, parecendo também renegar a sua nacionalidade. Que terão os franceses contra a França? Perguntar-me-ia dois meses depois, ao conhecer Vivian em Bogotá.
Por outro lado, ao longo destas viagens tenho vindo a apreender aquilo que pode ser entendido pela célebre expressão ‘cidadã(o) do mundo’. A partir de certa altura, quando os meses fora do país de origem ultrapassam a mão cheia, torna-se irrelevante a resposta à questão: De onde és? Observo, antes, uma tendência entre os viajantes de longa duração perguntarem e/ou a reflectirem sobre uma possível resposta às perguntas: De onde vens? Para onde vais e porquê?
Durante a viagem para Copacabana, Arnaud contou-me, em castelhano, parte da sua vida pelas ruas, de várias cidades da América do Sul, a tocar trompete. Não me falava em francês, não me falava em inglês. Na sua perspectiva, se estávamos no Peru a caminho da Bolívia, fazia mais sentido que nos ligássemos através do idioma local. Nem sempre era fácil para mim. Aterrara em terras ‘calientes’ havia apenas três semanas. Esforcei-me. Compreendia o que me dizia. Pela minha parte, era sobretudo em inglês que me expressava.
A sua tatuagem no antebraço, desde o início que me suscitou curiosidade. Foi a primeira de muitas semelhantes que, entretanto, observei em muitos estrangeiros, a viverem mais ou menos temporariamente em terras além-mar. Copacabana – um local misterioso, afirmava Arnaud. Como que confirmando a suspeita que sentira em relação à sugestão de Hanaku. Copacabana convoca, acrescentava, mais um ou outro sentido para além dos cinco a que estamos habituados a estimular. Estou a ser optimista; o sentido da visão é o predominante nas sociedades ocidentais e nas cada vez mais ocidentalizadas.
No pulso de Arnaud estava gravado, segundo ele, o símbolo do infinito e da eternidade: duas linhas em torno do pulso separadas por dois ou três centímetros, sendo que uma das linhas apresentava o dobro da largura da outra. Arnaud desejava viver na eternidade do momento.
Enquanto vagueava pelas poucas ruas de Copacabana, percebi ao que Arnaud se referia ao chamar-me a atenção de que seria muito fácil encontrar o que eu quisesse em matéria de estupefacientes. Razão pela qual muitos aí se detinham por tempo indeterminado. Não obstante, ao ver um grande edifício da polícia especial de narcotráfico, não deixei de ficar surpreendida. Era o primeiro que via. Ademais, vinha assistindo a um controlo muito grande das bagagens.
De todo em todo, Copacabana foi o único local na América Latina em que vi mais do que uma pessoa a utilizar seringas para se apaziguar. A última vez que tivera essa infeliz visão (na minha perspectiva, claro) fora em Saigão – ou Ho Chi Minh – um ano e meio antes. Não será estranho que estivesse atenta a alguns pormenores; algumas semanas antes revisitara a vida de Christiane F.
Essas visões não alteraram, todavia, o meu estado de ser ao embarcar na pequena lancha, que saía da vila rumo à Isla del Sol. Eram oito da manhã quando um rapaz sentado ao meu lado entabulou conversa em inglês. Rapidamente passámos ao modo português. Paulo era de São Paulo e estava quase a terminar a sua viagem de seis meses. Um jovem de vinte e sete anos, cuja simpatia transformou as duas horas de ondulação no lago em pouco mais de cinco minutos.
É curioso como a coordenada temporal é experienciada de forma tão distinta, dependendo da pessoa com quem a vivenciamos. Apesar de não me recordar dos inúmeros temas que pintaram o nosso trajecto, o sorriso aberto é a imagem que guardo do jovem brasileiro.
Paulo só tinha duas horas na ilha. Despedimo-nos, pois, com um abraço até um dia destes, quem sabe... Segui pelo lado oposto, com o objectivo de calcorrear tranquila e serenamente a ilha que dizem ser o berço da civilização Inca.
Em cada passo sentido e escutado na ilha do Sol, agradecia a Hanuku a experiência de silêncio colorido que escutava. Os sons corriqueiros das actividades humanas estavam ausentes. O chilrear dos pássaros, o rumorejar das folhas pela brisa que as trespassava, o zurrar das mulas e o ruminar das alpacas e dos lamas: os elementos da minha paisagem sonora.
Merendei debaixo de uma oliveira numa clareira de um pequeno planalto. Os meus olhos abraçavam a vastidão do lago tíbio e azul de loio. Tentavam também agarrar as cores quentes e terrosas da ilha.
No caminho de regresso ao cais, parei uns largos minutos a fim de contemplar as brincadeiras de duas crianças. Corriam e saltavam rindo muito, muito. Espiava o deslumbramento que só as crianças – ou aquelas que permitem as crianças em si – vivenciam. Os seus papagaios amarelos, vermelhos e azuis voavam. E voavam por tão-somente correrem escutando a direcção do vento.
Para onde iriam os papagaios de papel? A lado nenhum. Deixavam-se ir... pelo vento morno e terno que envolvia a Ilha do Sol – no lago Titicaca...

           
Março de 2016
Matosinhos, Portugal





Pedalando em Ometepe


            Dei por mim a embarcar no ferry com destino a Ometepe por sugestão de uma alemã linda que conheci em Xela – sem dúvida a maneira mais fácil de nos referirmos a Quetzaltenango, a segunda maior cidade da Guatemala. Christine, professora numa instituição que acolhe pessoas com síndrome de down, tal como o seu irmão. Prefere viver em Zurique, a distância necessária em relação a uma família um tudo-nada problemática. A empatia aconteceu desde o primeiro momento em que começámos a conversar, sobretudo em espanhol. A alemã passara duas semanas em Antígua, em casa de uma família para aprender espanhol. Por isso ligávamo-nos nesse idioma. Às vezes em inglês também, quando o nosso vocabulário e gramática não se mostravam suficientes para nos expressarmos.
            “Se estás na Nicarágua, não podes perder a ilha Ometepe” – aconselhou via messenger. Agradeci a sugestão desde o momento em que, na proa do ferry, observava a ilha a aproximar-se.
            Reservei duas noites num hostal e, logo à chegada, indaguei a possibilidade de alugar uma bicicleta. Muito fácil, isso supusera aquando do trajecto entre o cais e o albergue. Às oito horas da manhã seguinte já estava pronta para pedalar pelos caminhos da ilha.

Ah... a criança que em mim habita fica sempre extasiada cada vez que começa uma descida, cada vez que o vento roça no rosto e os cabelos – nessa altura tão compridos como nunca – esvoaçam ao ponto de ficarem todos erriçados, impossíveis de serem posteriormente traspassados pelos dedos. Do que me vou conhecendo, andar de bicicleta é a actividade que mais me rasga sorrisos. Claro que a paisagem arrebatadora era o ingrediente mais relevante.
No caminho até à Playa de Santo Domingo, o vulcão Concepción provocava-me arrepios.  Que imponente! As nuvens muito brancas que o envolviam formavam uma bruma mágica que tornava o meu passeio ainda mais encantatório.
Fiz uma pausa para um ‘café solo’ numa esplanada na praia. A companhia foi bem recebida – uma Calocitta formosa (ou gaio-rabudo, prefiro sua nomenclatura formal). Uma ave curiosa que se ‘sentou’ ao meu lado debicando o pedaço de pão com queijo que com ela partilhei.

Da praia segui para El Ojo de Agua. Estava preparada com o fato de banho, sabendo que as águas termais me deliciariam. E, com efeito... Aí me deleitei num descanso aprazível e merecido, desfrutando das águas cálidas e sorrindo com os mergulhos dos mais arrojados. Dessa vez coibi-me de saltar. Talvez pressentindo a fragilidade dos meus ouvidos.

Os dias, as horas e os minutos voam quando escolho a bicicleta como meio de transporte. Presumo que se deva ao facto de vivenciar um prazer que me preenche sobremaneira. De tal modo, que, quando me apercebo, o dia está quase no fim. Não era bem o caso; ainda tinha tempo para almoçar tranquilamente antes de entrar no Paraíso das Borboletas – uma reserva por onde deambulei pelo menos duas horas. Além das borboletas – posso dizer que fico sempre deslumbrada cada vez que um desses insectos maravilhosos se cruza com o meu olhar –, a vista admirável do Lago Nicarágua comovia-me a cada momento. A vegetação exuberante vivamente habitada era mais um elemento que despertava todos os sentidos. A pele arrepiava-se e os suspiros de gratidão sucediam-se instante a instante.
À saída do paraíso, o olhar colou-se novamente ao vulcão e as pernas, ainda que trémulas pela emoção, voltaram ao movimento que a bicicleta docemente convidou. Em grande velocidade pedalei até ao ponto de partida. Se chegasse antes das seis da tarde teria oportunidade de contemplar – tal como no fim de tarde anterior – o pôr-do-sol.
Cheguei a tempo ao local seleccionado. Na plateia do cais já outras pessoas, também atentas, admiravam a bola de fogo na sua descida exuberante. O cor-de-laranja pintava o céu, que se transmudava em cada instante. Tudo passa, tudo muda, mas muito se pode guardar neste coração infantil. Muito obrigada, Christine!

 
           
Março de 2016
Matosinhos, Portugal




Isletas de Granada


           Numa noite enorme, o sono foi brando no silêncio pouco negro do hostal ‘Hamacas’, em Granada – Nicarágua. A viagem desde a cidade do México aconselhava a escolher um quarto privado. Partilhei as refeições e experiências com outros viajantes furtivos naqueles dias, mas era fundamental um quarto só para mim.
            Cheguei a Granada no dia nove de Setembro. No dia seguinte começaria o retiro de meditação do qual desisti algum tempo antes. Como tal, informei a organização com a devida antecipação. Desse modo, o lugar que me estava destinado ficou disponível para alguém na lista de espera. Refira-se que a oferta de retiros de Vipassana costuma ser inferior à procura, daí o meu cuidado.
É possível que a 'minha' vaga tenha sido ocupada por Amanda, uma norueguesa com quem conversei na noite de chegada. No dia seguinte, era ela quem iria para o centro de meditação. Recebera a notificação três dias antes: “Ah... que engraçado. Às tantas...”
Fui directamente do aeroporto de Manágua para Granada. Pelo que escutara, seria uma cidade pouco interessante com muitas histórias que não valia a pena confirmar. Não arrisquei e, como tal, continuo sem conhecer Manágua e sem saber qual o impacto da revolução sandinista na capital.
Quando ingressei numa visita guiada de lancha pelas ‘Isletas’ de Granada, percebi que existem muitos europeus a residir em Manágua, pelo menos temporariamente. Julie era disso exemplo – uma alemã de passeio em Granada com a sua mãe. Aproveitara a visita materna para conhecer a cidade do grande Lago Nicarágua e, assim, sair da capital por uns dias. Julie era professora de alemão e inglês numa escola privada em Manágua.
O amor... ah, o amor... Julie apaixonara-se por um ‘nica’ no ano anterior e não hesitou. Mudou-se de armas e bagagens para o outro lado do mundo, pelo menos por um ano. O namorado estava a terminar uma especialização e em breve iria realizar a sua dissertação de mestrado na Alemanha. Se a paixão perdurar ou evoluir para outro estado, Julie regressará à terra natal bem acompanhada.
A alemã, de olhos de um azul morno e sorriso imaculado, partilhou a sua história enquanto vagueávamos languidamente de lancha por entre as centenas de ‘isletas’ ao largo da costa. Ilhotas muito ilhotas que resultam da erupção do vulcão Mombacho há milhares de anos. Numa delas o Forte de San Pablo. Noutras, hotéis de pequenas dimensões – conforme a área disponível. A maioria das ilhotas eram privadas, residências de férias. Casas mais ou menos luxuosas, cuja arquitectura  nos provocava mais ou menos suspiros: ah, que varanda... ah, que janelas... ah, que casa linda para passar uns dias.
O azul esverdeado das águas era rasgado pela língua que a pequena embarcação desenhava com o leme. Sorriamos extasiadas, contornando ‘isleta’ atrás de ‘isleta’. Algumas garças marcavam o seu território, pairando-nos a dúvida se teriam apenas uma pata ou se estariam numa qualquer posição ‘yogui’ ou se estariam apenas a observar-nos, indagando-se, quem sabe nestes termos: “parece que nunca viram uma árvore com ‘monos’”. E de facto havia muitos macacos. Uma das ilhotas, que era propriedade de um médico veterinário e nas poucas árvores que tinham espaço para se expandir, os ramos estavam num frémito contínuo pelos saltos inquietos dos ‘monos’ de Granada.
A visita incluía um lanche de frutas muito coloridas: ananás, pitayas e manga e um sumo natural de ananás para mim e para a Julie e um sumo directo do coco para  a sua mãe – confesso que esta é uma daquelas coisas que sou incapaz de ingerir seja em que estado for... O coco provoca-me vómitos – literalmente. O que é uma pena, já que tem muitas propriedades e ainda por cima é tão económico. Mas as pitayas... encheram-me. Pelo sabor, pela textura e pela cor. A casca de rosa choque e o interior roxo quase me impediam de a comer pela sua beleza exuberante. Uma fruta tão bonita como deliciosa.
Sentadas na esplanada de uma das ilhotas, desfrutámos da vista enquanto nos contámos mais histórias vividas em terras latino-americanas. Dúvidas não havia: o castelhano era encantatório e tínhamos vontade de continuar a aprimorar as nossas competências nesse idioma quente e envolvente. Entre nós, porém, era em inglês que comunicávamos. Eu e Julie. A sua mãe pouco escutei. A senhora só falava alemão e eu ainda não me propus nesse idioma. Talvez seja tempo de pensar nisso. Afinal, com tantas pessoas alemãs lindas que vão entrando na minha vida, começo a achar que é uma falha não conversar na sua língua materna. Quem sabe se para o ano. Por ora tenho é de estudar francês. Amanhã tenho teste e ainda quero rever algumas regras dos COD e dos COI, que é como quem diz, dos complementos directos e indirectos*. À bientôt...

           
Março de 2016
Matosinhos, Portugal

* Alguns dias depois soube a nota: tive 16. Bem bom :)





Página em branco…*









Cada vez que os três dedos – polegar, indicador e médio – seguram a esferográfica e a pressionam sobre o caderno – neste caso, uma sebenta igual àquelas que usava quando andava na escola primária; adquiri algumas na feira da Vandoma e só por isso vale a pena regressar; o que não está longe de acontecer. Cada vez que os dedos seguram a esferográfica e a pressionam sobre a sebenta, dizia, aguardo com confiança que as palavras surjam. Palavras que se encadeiam, umas a seguir às outras, com o intuito de expressar uma ideia, um sentimento, uma opinião, ou tão-somente, como acontece neste instante, para mostrar que estou receptiva a uma Qualquer Inspiração. Inspiro profundamente, calo os pensamentos, como numa atitude meditativa, e permito que a esferográfica flua.
Até ao momento ainda não terei alcançado ou escutado algo que valha a pena partilhar.
Há uns tempos, tomei a decisão de desenvolver estas crónicas, e grande parte do que vou escrevendo para partilhar, com o objectivo de provocar no leitor e na leitora pelo menos o esboço de um sorriso. Nem sempre é fácil, dado que os temas que cada mês me oferece nem sempre são passíveis de gerar textos que a tal conduzam. Pretensão minha, poderá aventar-se. Todavia, essa resolução tem um motivo.
Partilhar as minhas opiniões sobre assuntos da actualidade não é, a meu ver, um bom propósito para o espaço que aqui me é concedido. É natural que as minhas apreciações sejam distintas de quem as lê. Podem até ser tão pessimistas em determinadas ocasiões, que a sua publicação seria apenas mais um momento infeliz. Quero com isto dizer que, tal como na minha vida, também aqui prefiro compartilhar o que, pelo menos na minha perspectiva, conduza a uma reflexão – mesmo que superficial – de um modo positivo – coloquemos assim.
A vida quotidiana é tão cheia de estímulos negativos – mais uma vez coloquemos assim –, que ler um texto que surta o mesmo efeito não é, de todo, a minha vontade.
É provável que nessa empresa nem sempre alcance o sorriso na leitora ou no leitor. Porém, posso afirmar que quase sempre é com esse intuito que a sebenta se abre, os dedos seguram na esferográfica e a pressionam em direcção à página em branco.
Com todo este paleio, é quase certo que o único efeito que terei provocado até ao momento tenha sido um bocejo. Ora, isso pode até ser interessante. Repare o leitor ou leitora: em noites de insónia, pode sempre pegar no jornal e abri-lo na página onde aparece uma fotografia da minha pessoa e pensar: aqui está alguém que me pode ajudar a dormir. Et voilá!
Este mês corro, pois, o risco de me ser aplicada a expressão: fala fala fala, mas não diz nada.
Bom, até pode ter a sua razão, a leitora ou o leitor. De qualquer modo, pode eventualmente aproveitar a oportunidade para desenvolver um pouco mais a empatia e a tolerância. Qualidades, a meu ver, primordiais para que olhemos as pessoas que nos rodeiam de forma compassiva. Aceitar, mesmo que não se compreenda o porquê, os comportamentos e as atitudes dos outros sem tecer qualquer crítica ou julgamento. Afinal, que sei eu por que experiências esta ou aquela pessoa terá passado. Pois é... quantas vezes terei eu mordido a minha língua viperina escassos segundos após um comentário mordaz. Só porque alguém terá dito algo que me terá soado desagradável. Contudo, tenho aprendido que quase nada é pessoal, que quase nada é dirigido a mim. Com muita frequência, as palavras menos simpáticas que escuto decorrem de incidentes ou acidentes prévios à interacção em que estou envolvida. Por esse motivo, tem sido cada vez mais comum que, antes de reagir, olhe para a pessoa à minha frente e me lembre que também ela é um ser humano, como eu, cuja história de vida eu não tenho a mais pequena ideia e que por isso sou totalmente ignorante em relação ao seu modo de estar. Um modo de estar que não é necessariamente – e é até improvável – o seu modo de ser.
Como no dia 25 de Abril se comemora o dia da Liberdade em Portugal, acabo de ter o meu momento de livre expressão, confiando que a leitora ou o leitor também aproveite a não garantida liberdade de ser quem é. Obrigada pela compreensão...


* Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro

Voando para Manágua*



           Ainda não eram seis da manhã na Cidade do México quando me acerquei de um dos balcões do aeroporto, a fim de efectuar o check-in para Manágua. Saí cedo de casa de Patrícia e Arturo; pressenti que seria de evitar chegar em cima da hora. E, com efeito, não foi fácil despachar a mochila para a capital da Nicarágua.
            O principal motivo para conhecer Nicarágua prendia-se com a realização de um retiro de meditação. Todavia, os planos foram ‘desplaneados’ e desisti de me sentar mais dez dias em silêncio em Granada (seria o segundo retiro nesta viagem). Uma decisão já tomada e que não se deveu ao pequeno percalço no aeroporto da capital do México.
            A esse aeroporto, como a quase todos os que chego para partir, o tempo de antecedência com que me dirigi ao balcão permitiu-me resolver o que para mim era inesperado: não tinha visto para estar algumas horas num aeroporto dos Estados Unidos, em escala! Comprara o voo através do skyscanner. Na maioria das vezes adquiro o mais económico, nem que isso implique conhecer todos os cantos e cadeiras desconfortáveis dos aeroportos. Como acusa Luís Sepúlveda, são duros assentos desenhados por criminosos da modernidade.
            Desta vez, porém, o barato saiu caro – antes do check-in tive de ir a um estabelecimento comercial do aeroporto para aceder à internet sem fios. O meu dispositivo electrónico não aceitou qualquer cartão desde que aterrei no outro lado do mundo, alguns meses antes. Por conseguinte, para aceder ao mundo virtual neste aeroporto rendi-me a mais um Starbucks e bebi um café para adquirir a contra-senha.
            Felizmente, a hospedeira de terra mexicana – como todas as mexicanas que conheci – foi muito simpática e prestável; indicou-me todos os passos para obter um visto e assim aterrar tranquila no aeroporto de Hollywood – Fort Lauderdale. Dezasseis dólares, o visto, mais dois ou três pelo café americano. As despesas não se ficaram por aqui. Se em grande parte das vezes é estimulante viajar sem planos, outras vezes, a ausência de pesquisas prévias pode ter resultados menos agradáveis.
Talvez por sentir algum cuidado, quando toquei o solo dos Estados Unidos – a primeira e única vez até ao momento – dirigi-me de imediato ao balcão do check-in. E de facto...
Felizmente, a hospedeira de terra do aeroporto de Hollywood também era simpática e prestável. A sua empatia por mim desenvolveu-se quando lhe dei a saber que estivera na sua terra natal – aproveitei o sotaque da senhora para alimentar a conversa – no ano anterior. Acrescentei que gostei tanto dos lugares e das gentes do Peru que desejava regressar. Era a pura verdade. O Peru encheu-me, sem me satisfazer por completo: quero regressar!
Pois bem, a sua simpatia latina ajudou-me a ultrapassar mais uma situação: para entrar na Nicarágua era necessário ter um bilhete de saída. Como? É verdade. Assim como foi verdade para entrar posteriormente na Costa Rica, no Panamá e no Brasil. O regresso ao Porto também foi condicionado pela necessidade de ter data marcada para deixar o Rio de Janeiro.
Mas – há quase sempre muitos mas – e neste caso um porém muito prático: não fazia ideia do tempo que iria permanecer na Nicarágua, nem tão-pouco tinha a certeza do destino seguinte. O meu único plano era estar no Rio de Janeiro a nove de Outubro, mas ainda estava no início de Setembro.
Comprar uma passagem para o Rio desde Manágua estava fora de questão. Não só sabia que era um valor muito elevado, como implicaria estar as seis semanas seguintes circunscrita à Nicarágua. A sugestão da hospedeira: comprar um bilhete de regresso para Fort Lauderdale. Como?? Esse parecia-me um cenário ainda pior.
            A senhora insistia na sua sugestão. Escutei: “Tem vinte e quatro horas para anular a compra” – hum... – “Ser-lhe-á devolvido o total do montante” – hum... “Ok!” Ser detentora de um cartão de crédito é das melhores coisas quando se viaja, pelo menos para mim. Resolve situações antes que se transformem em problemas. E assim foi.
            Estava nos Estados Unidos da América, num aeroporto em Hollywood, pagara dezasseis dólares e estava nesse momento a pagar para regressar sem ainda daí ter saído.
            As horas no aeroporto norte-americano foram bem passadas. Nessa época trabalhava na revisão de uma dissertação de mestrado – o iPad é outro objecto que se tem revelado muitíssimo prático e útil para viajar. É um dois, três, quatro, cinco em um. Leio, escrevo, trabalho, organizo (nem sempre bem) as viagens e ainda comunico com os amigos e família. Tenho tido acesso à internet sem fios em quase todos os lugares por onde vou passando. Assim sendo, aproveitei o tempo para trabalhar.
Aproveitei, igualmente, para observar as pessoas norte-americanas ao vivo e no seu habitat natural. Pode ‘soar’ estranho, mas para mim era ainda mais estranho estar nos Estados Unidos sem estar. Repito-me no recurso a Marc Augé, quando se refere aos aeroportos como não-lugares. Era assim que me sentia, num intervalo vazio – para usar a expressão de Italo Calvino, em ‘Um Eremita em Paris’. Um parêntesis num território que, apesar disso, tinha de se pagar.
Devo ter alguma coisa a aprender com os aeroportos, tanto é o tempo que aí vagueio, como foi no de Manágua. Esta viagem foi daquelas que se revelou um caso oneroso em tempo e dinheiro.
Na madrugada seguinte conhecia a textura e o desconforto dos assentos do aeroporto de Manágua. Aterrei à uma da manhã, mas era necessário esperar pacientemente pela manhã seguinte e assim ir ao escritório da companhia aérea a fim de reaver o valor virtualmente gasto. Outras horas largas aproveitadas a descansar (o possível) e a adiantar a revisão da tese, assim como a observar os Nicas – como carinhosamente escutei a estrangeiros de outros países da América Central.
Às dez da manhã, o cartão visa era ressarcido na totalidade pela despesa em solo americano. Saía, enfim, do aeroporto a pé para apanhar mais um chicken bus, desta vez rumo a Granada.
           


Fevereiro de 2016
Matosinhos, Portugal

*Sempre que penso na Nicarágua escuto interiormente a música de Manu Chao, Me gustas tu. Fica aqui a partilha; basta clicar na legenda da fotografia que é do vulcão da ilha de Ometepe

'Drinking games'




            John, um jovem americano, advogado, de férias no Belize. Trabalhava num escritório de produção cinematográfica em Hollywood. Estava sempre a coçar o corpo e falava num tom marcadamente nervoso.
Conheci John em Caye Caulker, uma das ilhas belizianas, para a qual muitos se deslocam por causa do Blue Hole – uma das grandes maravilhas do planeta. Neste caso, no maior recife de coral do hemisfério norte. Exemplo disso era Andy, um alemão que aproveitou as suas férias de Verão para realizar um curso de mergulho na ilha, no final do qual teve o privilégio de mergulhar no grande Buraco Azul.

            Mark, holandês, com pouco mais de trinta anos e já um grande sucesso de empreendedorismo nos Países Baixos. Também estava de férias nessa ilha do Caribe. Sempre bem-disposto, rindo e sendo agradável com todas as pessoas, sobretudo com as mulheres com quem se cruzava. Numa das ‘hamacas’, lia um livro do género de crescimento pessoal. Aprendia, afirmava o rapaz charmoso, que só estando bem na sua pele alcançaria a felicidade. O seu sorriso vagueava entre o fácil e o muito fácil, iluminando um rosto de feições bonitas (para o meu gosto), com olhos verdes claros. De cabelos loiros e ondulados e do alto dos seus cento e noventa centímetros, facilmente me encantou.
            Além de Mark, Andy e John, outros e outras se juntavam ao fim da tarde na mesa exterior do Bella’s Backpackers hostal, onde trabalhei duas horas por dia em troca da dormida. Foi na minha segunda noite na ilha que começaram os ‘drinking games’, por iniciativa de Glenn: um australiano, antigo jogador de rugby, mas que, por força de uma lesão, se viu obrigado a abandonar uma carreira desportiva promissora. Glenn era viajante. Terminaria daí a uma semana a sua longa viagem – seis anos! Terá, com toda a certeza, um baú repleto de memórias, fotografias e muitas histórias para partilhar. Estou certa que a herança que lhe permitiu essa vivência não ficará por contar. Pelo menos foi essa a ideia que passou àqueles que com ele aprenderam inúmeros jogos, durante os fins de tarde cálidos em Caye Caulker.
            Quantas garrafas de rum e cola se esvaziaram é difícil contabilizar. Através da desinibição, provocada pela ingestão do seu conteúdo incalculável, muitas histórias se partilharam, nomeadamente a de John. Percebemos então porque se coçava tanto. Um jovem que ilustrava um dos paradoxos contemporâneos da competição em Harvard.
            Apesar de ser advogado há pelo menos três anos, John ainda necessitava, e provavelmente ainda mais, de continuar a tomar uma série de substâncias químicas. Estupefacientes para estudar – a cocaína era um dos seus preferidos – de forma continuada e concentrada. Estupefacientes para descansar após a época de exames. Estupefacientes para se manter desperto ao longo do dia. Estupefacientes para se divertir q.b. Estupefacientes para relaxar quando necessário. Os últimos não deviam surtir grande efeito, já que as suas mãos não paravam – coçavam as pernas, os braços ou levavam os copos de rum com cola à boca. Estupefacta estava eu enquanto escutava o quotidiano de um jovem universitário americano, cujo colapso nervoso me parecia inevitável, num futuro não muito longínquo.
            Contrariamente, Andy, um alemão com quem corri na ilha, era um jovem muito tranquilo. Irradiava serenidade no seu sorriso silencioso e terno. Falava apenas quando lhe dirigiam a palavra e o resultado era uma piada espirituosa que nos fazia rir. Note-se que o rum ajudava a elevar a intensidade das risadas.
A risota aumentava à medida que as horas avançavam e com as confidências que entretanto se iam efectuando em jogos do tipo ‘verdade ou consequência’. Glenn era um animador profissional e Mark soltava o seu charme para as jovens que se iam juntando à mesa antes de irem dançar num dos bares da praia.
John, porém, não tinha forças para essas andanças. Ao início da noite, o seu estômago revoltava-se com as misturas e, sozinho, ia deitar-se, não sem antes tomar algo para dormir...
           

Fevereiro de 2016
Matosinhos, Portugal