Pedras

           
            Debaixo das pedras. Esconde-se. Longe do mundo. Sai. Vai. Afunda-te. Aprofunda. As pedras são assuntos perigosos. Deixa-te levar. Sai. Segue. O caminho é suave. A mudança é segura. As pedras são pausas. Descansa de vez em quando, em cada margem. A viagem é a tua escola. Os sonhos e os pesadelos ficaram debaixo das pedras. As estrelas no céu, a poesia que te guia.
            Lembra que o poeta é mais alto. As suas asas são infinitas; voam sem medo do desconhecido. Sai. Como o condor, voa. Ama sem medo. Ama. Perde-te. Debaixo das pedras a vida não acontece, não avisa. Não dá. Agarra os segundos e voa, voa como condor. Segue até à cidade perdida e encontra o lugar. Belo, na fantasia do encontro com a poesia.

20 de Julho, 2015
Em viagem de autocarro, Guatemala

Dormindo no aeroporto


"Su mercê de onde é?" Quase sempre a primeira pergunta de quem viaja, ou "Para onde vai?", seguida de "Onde vem?" Questões a que estou habituada. Eu própria observo-me nesse interrogatório. Desta vez, o diálogo sobre o gosto de viajar decorreu no aeroporto de Bogotá. Quase me sinto da casa. Aí aterrei várias vezes, daí parti outras tantas, assim como pernoitei duas vezes, como esta noite.
Dormir no aeroporto não me é estranho. A primeira vez que isso aconteceu foi na Austrália. Uma experiência digna de registo. Além de ter sido a primeira vez que decidi poupar uma noite, o saco-cama abriu-se na rua! Uma estreia: dormir ao relento. Não estava sozinha. Desde então, apercebi-me que há muita gente que aproveita a segurança (possível e percebida) do aeroporto para poupar uns trocos.
O nome do aeroporto não sugeria o desfecho nocturno. "Aeroporto Internacional da Gold Coast". Ao comprar a viagem com partida às sete da manhã, pensei que o melhor seria aí pernoitar. O comboio desde Sunshine Coast permitiu-me chegar às dez da noite. Hora a que o aeroporto fechava as portas! "A sério?" Inesperado. Depois de percorrer o passeio deserto que ladeava o edifício, encontrei um largo coberto com vários bancos compridos. Três deles ocupados! Um italiano e duas norueguesas tiveram a mesma ideia que eu e, como eu, estavam admirados pela circunstância. Curioso foi ter passado as duas semanas anteriores debaixo de chuva - uma das razões que me fez viajar para a Ásia. Essa noite brindou-nos com céu limpo e estrelado. A tranquilidade não me abandonou. O local era vigiado por polícia e éramos vários mochileiros.
A segunda vez que dormi num aeroporto foi diferente. Em Banguecoque. Não dormi, apenas passei pelas brasas e mal. O forte ar condicionado, as cadeiras desconfortáveis e o bulício de um grande aeroporto. Nessa viagem de três meses em 2012, passei por vários aeroportos. Foi no de Kuala Lumpur que novamente me aventurei e com uma boa noite de sono. Usei uma estratégia que não volto a repetir. Regressava ao Porto numa longaaaa viagem. Saí numa terça-feira de manhã de Koh Tao, uma ilha paradisíaca para mergulhadores na Tailândia. Entre jipe, barco, autocarro e vários voos, foram tantas horas que perdi a conta. Aterrei às dez da noite de sexta-feira no aeroporto do Porto.
A estratégia, que hoje sei ter sido muito arriscada, foi-me sugerida por Bob. Um escocês que conheci em Saigão e com quem passei uma semana muito divertida naquela ilha. Aí vivia com a sua irmã. Comprei dez comprimidos do genérico de valium. O meu sono é muito leve e raramente durmo seis horas seguidas. Estar na cama mais de oito horas é um milagre para o meu corpo.
Resultou. Dormi na viagem de barco entre Koh Tao e o continente, no autocarro que atravessou o país até à capital da Malásia. Nesse aeroporto dormi toda a noite. Daí voei para Melbourne, onde também dormi a noite seguinte. É certo que com interrupções, mas a verdade é que estava extasiada pelo efeito dos químicos.
O ano passado tentei a façanha antes de sair de Cusco, Peru, de autocarro para Copacabana, na Bolívia. Na farmácia não havia o genérico e o 'verdadeiro' era demasiado caro para quem procura gastar com cuidado o pouco que tem. Ainda bem! As histórias que entretanto escutei de outros mochileiros e outros viajantes demonstraram-me como tal é perigoso. Prefiro ficar de rastos, como é o estado em que me encontro neste momento. Uma delas é de uma rapariga que conheci em La Paz. Numa viagem nocturna de autocarro tinha a sua mochila entre as pernas. Esta é outra das técnicas comuns: viajar de noite para fazer um dois em um - viagem e dormida; frequentemente com jantar incluído. A jovem inglesa chegou ao seu destino com a mochila bem mais leve. O seu computador portátil desaparecera. Há que dizer, porém, que a rapariga adormeceu com os auriculares em modo musical e de venda nos olhos... Um dia destes alguém me contou que as suas botas de montanha também se escaparam numa dessas viagens, sem que as tivesse descalçado. Algo que eu faço amiúde. Ou antes, fazia! São apenas dois exemplos que provam que é péssima opção deixar-se adormecer profundamente enquanto em viagem.
Esta noite, quando me recostei nos bancos do aeroporto de Bogotá (mudei várias vezes de poiso, refira-se), a almofada estava sobre a mochila, cuja asa entrelacei no braço. O último período de sono foi nos bancos do McDonald's (para alguma coisa servem); dos  poucos bancos almofadados no aeroporto. De resto, quando despertei ao fim de duas horas e meia estava muito satisfeita. Eram sete da manhã; a dinâmica fez-me desistir de tentar dormir mais.
São sete da noite e estou no aeroporto de Lima, no Peru. Uma viagem larga até ao Rio de Janeiro. Era a mais económica perante o meu itinerário desde a Nicarágua. Desci de autocarro até à Costa Rica, onde passei duas semanas, e o mesmo bilhete permitiu-me seguir até à Cidade do Panamá, de onde comecei o trajecto, após três dias de desfrute. As restantes opções, apesar de serem um pouco mais curtas, eram substancialmente mais caras. É mesmo assim. Entre fazer voos directos e pagar o triplo, ou demorar cerca de 30 horas entre o Panamá e o Rio de Janeiro. Escala de dezoito horas em Bogotá e cinco em Lima. Aeroportos revisitados. É verdade que o cansaço não permite grandes actividades intelectuais. De qualquer modo, há tempo e disponibilidade (alguma para ler), escrever - como neste momento - e para falar com os amigos pelas vias virtuais. E claro, observar o lugar não-lugar aeroporto. Um espaço de trânsito de gente de muitas origens. Ao mesmo tempo, não é raro conversar com outras pessoas, como com a senhora Marlene, que me fez lembrar a semana maravilhosa que passei em Villa de Leyva*, onde toda a gente se tratava e a mim também por 'su mercê'.

4 de Outubro, 2015
Aeroporto de Lima, Peru



Borboleta azul índigo


O primeiro deslumbramento foi na Estrada da morte, em La Paz. Novembro de 2014 - descia de bicicleta aquela que dizem ser a estrada mais perigosa da América do Sul.* Actualmente está encerrada ao trânsito. As mortes que aí aconteceram durante décadas obrigaram à construção de uma via mais segura. Apenas os ciclistas mais afoitos, ou que assim se sintam, se aventuram a percorrê-la com mais ou menos velocidade.
Ia na esgalha. O vento no rosto era uma sensação saborosa. Apenas um vislumbre. Apenas e tanto. Desde então os meus olhos procuram sempre por mais esse azul a esvoaçar. Aquele que uma borboleta azul índigo, maior que a minha palma da mão, me ofereceu. Voava, cruzando o meu caminho. Longe do oceano Pacífico, a vegetação exuberante era o cenário para pedalar a 125 azul em direcção à morte. É inevitável. O azul do céu é efémero. Assim como é efémera a borboleta morpho peleides. A imagem dessa borboleta gravou-se na íris.

Com ou sem nuvens, o céu azul tranquiliza-me. Com ou sem ondas, o azul do mar inspira-me. Tenho a sensação que a minha vida está plena de instantes azuis. Gosto do azul real, do azul índigo, do azul celeste. Gosto dos setes azuis que metamorfoseiam a Lagoa de Bacalar, do azul das águas cálidas que contrastam com o frio glaciar da Lagoa de Reiquejavique. Em voos mais ou menos longos, as asas do avião cortam sempre um novo céu... azul.
Foi apenas no início de 2013, em Melbourne, que pela primeira vez me apercebi que as tonalidades do azul são passíveis de se distinguirem consoante o lugar e a estação do ano. Se até aí não me cansava do azul do céu, desde então comecei a desejar tocar cada um dos tectos das cidades e vilas, montanhas e vales, praias e rios por onde tenho vagueado.
As asas daquela borboleta permanecem na minha memória visual.
Este ano regressei à América Latina. Em cada borboleta um sinal divino. Os pensamentos que povoam o meu caminho são um labirinto nem sempre azul. Aceito essa prolixidade. Suponho que seja natural que o antes e o depois me continuem a habitar, sobretudo quando os pés pisam o caminho em direcção a novos lugares. Em cada pequena decisão para o futuro (sempre muito próximo) reparo numa borboleta. Não é exagero. De tal modo me sinto confiante, que um sorriso se desenha. Se uma borboleta surge no meu caminho, um sorriso sela o pensamento. Fica resolvido e prossigo o mais consciente que me é possível. Ainda muito a aprender, ainda um longo caminho até à totalidade do presente.

A borboleta morpho peleides visita-me amiúde. É com frequência que o meu olhar capta esse insecto, transmitindo informação aos neurónios que em sobressalto entram em sinapses contínuas. A pele arrepia-se, o sorriso rasga-se, o ritmo cardíaco acelera. Quase salto como uma criança deslumbrada em cada borboleta azul. Dádivas a que o corpo reage num agradecimento somático.
A última vez que tal ocorreu foi há uma semana na floresta tropical do parque Corcovado. O mar de água cristalina reflectindo o céu limpo contrastava com a vegetação densa da floresta. Algumas árvores estavam unidas entre si, abraçando-se mutuamente - o que eu vi. O guia explicou. São árvores que se asfixiam umas às outras, como que se engolindo em pura competição. Prefiro a realidade que os meus olhos percepcionaram sob o azul resplandecente da Costa Rica. Outro azul enchia os meus olhos. O das borboletas morpho peleides. Os dedos das mãos não foram suficientes para as contabilizar. O oceano Pacífico enviava ondas numa melodia perfeita, acompanhada das vozes incansáveis das lapas. Os grilos gigantes quase despertavam os morcegos bebés que dormiam enroscados nos colos providenciados pelas folhas imensas.
A cada passo um sorriso infantil. Uau!, um pelicano. Uau!, um tucano. Uau!, um macaco aranha, nas Ceibas e Pilons. Troncos tão altos como largos. De focinho a esgravatar o solo, as famílias de quatis deliciavam-se com os caranguejos que encontravam. De quando em quando, as borboletas multicolores despertavam a minha consciência que de quando em vez se esvaía. As asas do tamanho das palmas da mão mantêm-se em mim.

Quem sabe ganhe coragem e me decida a gravar na pele uma borboleta azul índigo. Quem sabe as suas asas me relembrem como efémera é a existência e como a transformação é um acto contínuo. Quem sabe a magia me envolva e eu toque no céu nocturno, encontrando-me com as estrelas.  



2 de Outubro, 2015
Cidade do Panamá, Panamá

Um postal*

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Foi a cinco de Outubro de 1143 que se reconheceu, em Zamora, Portugal como um Reino independente. Curiosa a coincidência de datas. Também foi a cinco de Outubro que Portugal se constituiu como República. Numa véspera das comemorações, a quatro de Outubro de 1907, morria Alfredo Keil, o compositor da música do Hino Nacional, 'A Portuguesa'.
Coincidência ou não, o período em que me encontro na América Central está pleno de festividades para celebrar a independência de países como o México, Nicarágua, Guatemala e Costa Rica. Em 1821, os espanhóis finalmente cediam o seu domínio nestes e noutros países da América Latina. Este não é um fenómeno de outros séculos. Infelizmente, as imagens que nos chegam mostram o contrário! O pior são as vidas que se perdem e destroem. O que será preciso para que os homens se tornem mais humanos? Talvez se celebrassem e vivessem mais a infância se esquecessem um pouco das lutas pelo poder, pelo território, enfim, das guerras elas mesmas. No dia 6 de Outubro comemora-se o dia Mundial da Infância. Fica a sugestão para sermos como as crianças e, em vez das guerras, brincarmos um pouco mais.
O dia nove deste mês é dedicado mundialmente aos Correios. Com o desenvolvimento das telecomunicações e da tecnologia cada vez menos recebemos cartas e/ou postais. Sem dúvida que hoje as comunicações são muito mais rápidas. Apesar das caixas de correio 'tradicionais' estarem cada vez mais vazias, as de correio electrónico enchem-se de pequenas mensagens, facilitando o contacto entre as pessoas que nos são queridas. Não obstante, confesso que adoro receber um postal ou uma carta de quando em vez. Por isso não é raro enviar postais quando viajo. Mesmo não estando presente no momento em que a pessoa a quem enviei a missiva a recebe, só de pensar no seu sorriso, também eu sorrio.
Há quanto tempo não envia uma carta? Experimente. É quase certo que receba uma resposta pela mesma via. E quando isso acontece, é tão bom! Como diz uma amiga, a felicidade é feita de pequenos grandes momentos. Na minha perspectiva, cabe a cada um de nós criar as condições para que esses instantes sejam, não só mais frequentes, como mais largos. Fica então mais uma sugestão.
Outra coisa que me faz sorrir, dançar, partilhar, a ser feliz é a música. O mês de Outubro começa exactamente com o dia 1 a celebrar internacionalmente a música. E é tão fácil. Basta ligar um rádio, ou um qualquer engenho e aí está alguém a cantar, a tocar só para nós. Às vezes quase adivinhando o que nos apetece escutar. Quando ligo o rádio e está a tocar precisamente a música que cantarolava interiormente, o meu rosto rasga um sorriso. Já lhe aconteceu? Também nesta dimensão, o desenvolvimento tecnológico é fantástico. Num instante podemos encontrar o que quer que seja para corresponder ao estado de espírito em que nos encontramos. Melhor ainda, podemos encontrar uma música ou canção que nos altere o estado de espírito. E isso é maravilhoso. Pessoalmente, mostra-me, mais uma vez, que com efeito sou eu a responsável por criar mais condições para ser feliz. E a música em muito me ajuda.

Aliás, escrever uma carta ao som das músicas preferidas pode ser muito inspirador. Assim como instalar-me com a melhor banda sonora e ler uma carta acabada de abrir. Creio que se o tempo for despendido em mais actividades deste género, criamos mais ligações, estimulamos mais os afectos. No fundo, cultivamos a nossa felicidade ao mesmo tempo que contribuímos para a felicidade dos que nos rodeiam. E não é também isso ser feliz? 


*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro