Poesia em Junho*



            Junho é um mês repleto de poesia. Logo no primeiro dia somos convidados a celebrar a infância. Seja manifestando os afectos às crianças que nos são próximas, seja providenciando a todas, sem excepção, as condições para que cresçam em harmonia, desenvolvendo a totalidade das suas potencialidades. Seja concedendo-lhes o espaço e o tempo para brincarem.
            Brincar – um dos verbos mais bonitos, para mim. Aquele que, seguramente, proporciona mais instantes de felicidade, contentamento e alegria. Em especial quando brincamos com as crianças que nos rodeiam, ou tão-somente, quando permitimos que a criança que em nós habita, também ela, desabroche... brincando.
            Brincar é um termo tão amplo que pode ser usado e abusado em quase todas as circunstâncias. Brincar com as palavras, por exemplo, conferindo-lhes sentidos e significados para lá do óbvio – como na poesia.
            Em “Liberdade” de Fernando Pessoa fica expresso que “o melhor do mundo são as crianças”. Recuperar o futuro, pois “breves são os anos”, “para o fim do futuro!” – inspiro-me no poeta instando que cada um nós recupere o riso das crianças. O riso dobrado, que tanto me estimula a rir.
Rir até às lágrimas, qual emoção quando escutei pela primeira vez o riso dobrado do Gonçalo e do Rodrigo – as ‘minhas’ crianças. Aquelas que me iluminam o olhar e me lembram que “para ser grande, sê inteiro (...) brilha, porque alta vive” [a lua].
            Foi no dia de Santo António, a 13 de Junho de 1888, que Fernando Pessoa nasceu em Lisboa. No mesmo mês, mas séculos antes (a 10 de Junho de 1524), também em Lisboa, nascia outro grande poeta português: Luís Vaz de Camões, “Que num amor que arde sem se ver” me transporta para um “mar de contentamentos”. Celebremos, pois, brincando a poesia que existe em cada criança. Na criança que subsiste em nós, ainda que frequentemente reprimida. Afinal, para que serve a vida se não para ser desfrutada, partilhada e realmente vivida, mais ou menos poeticamente, mas se possível... brincando.
            Este ano, o dia 18 de Junho calha a um Sábado. E calha bem, pois as brincadeiras com as crianças têm mais uma oportunidade de serem vividas e celebradas: é o dia internacional do piquenique. Se fosse dada a apostas, seria certamente uma aposta ganha, ao afirmar que o leitor ou leitora tem boas recordações dos piqueniques da sua infância... e não só. De facto, pelo que conheço das gentes de Nogueira do Cravo, essa é uma prática bem apreciada, sobretudo no Verão, à beira-rio, nas Caldas de São Paulo, só para dar um exemplo.
            E o Verão está mesmo a chegar. Este ano o seu solstício é a 20 de Junho. Nesse dia, mas em 1969, Neil Armstrong cumpria um dos maiores sonhos da humanidade: pisava a Lua. Inspirava, desse modo, mais e mais poetas a cantarem o astro que na noite aquece e envolve os corações.
As noites de Verão ao luar são propícias não só à poesia, mas também à festa, à música. E música não falta para brincar e saltar as fogueiras nas noites de Santo António, São João e São Pedro – o padroeiro que fecha em grande mais um mês... Pois que seja bem vivido e aproveitado e partilhado, para que não fiquemos na angústia de Fernando Pessoa: “A vida nos viveu”...

* Este texto foi publicado no Jornal "O Chapinheiro"

Até já... Quinta de Monserrate




Até Já!... O que quero dizer à Quinta de Monserrate e a todos os seres que nela vivem e/ou viveram. Até já!; só me imagino a regressar: para aqui! Para este lugar maravilhoso – voltar à quinta na cidade. À ilha na cidade – o modo como habito na quinta, como a vivencio: uma ilha aparte do bulício da cidade.
No momento em que escrevo, os meus sentidos estão despertos: escuto o canto dos pássaros, dos melros, por exemplo. Mas há mais, muito mais aves a construírem os seus ninhos nas árvores altas e cada vez maios frondosas. Aves de vários tamanhos e cores a repicarem no repuxo, soltando pingas de água que brilham e resplandecem com os raios de sol... em Maio, quando o amor está no ar, quando a Primavera cintila com todo o seu fulgor.
Os plátanos, os pinheiros, as camélias rosas, brancas, vermelhas, cuja textura macia das flores me toca generosamente. Como generosas são as laranjeiras, que me oferecem – na sua exuberância de época – laranjas para o pequeno-almoço, ou para qualquer hora do dia. Nem é preciso esforçar-me. Antes de entrar em casa, uma laranja salta aos meus pés, como que antecipando a minha chegada. O marmeleiro está em flor e os seus botões, abrindo num rosa pálido, adivinham a geleia e a marmelada que eu adoro – as delícias do meu palato.
Os olhos sempre extasiados; hoje, pelas rosas que florescem escandalosamente por todos os cantos, colorindo-os de vermelho, rosa, branco e outras tonalidades. No alpendre – onde as palavras se revelam agora na sebenta –, as sardinheiras, as petúnias e outras cujo nome ignoro, concorrem sem competir com as rosas que o cobrem... Noutro jardim, os brincos de princesa transportam-me para a infância, quando eu usava alguns botões nas orelhas, acreditando que sim senhora, os contos de fadas são reais...
As tulipas anteciparam-se e abriram-se num fogo que quase me fez crer que a Primavera chegara. Alegraram e coloriram ainda mais os dias que já em Fevereiro sentia a escassearem por entre os dedos, à velocidade da areia que, em vão, se tenta agarrar nas mãos.
Agarrar... nada disso! Quem agarra tem quase sempre muito a perder. O que a vida me transmite é uma confiança cada vez maior e cada vez mais próxima do inabalável de que o que tiver de ser, há-de ser.
Quando me sento no banco verde em frente à janela dos periquitos e canários de todas as cores, sempre a chilrear, observo e apreendo outros sons, enquanto os olhos se deleitam nas flores, na erva verdejante que, quando acabada de cortar, exala um aroma inebriante.
Nestes dias, o coração começa a apertar. Mesmo confiando na vida, gostaria – sem forçar... já se sabe – que o porvir me trouxesse de volta aqui. E, assim, sentir de novo o acolhimento do Jackon e do Kelvin que todas as manhãs aceitam os meus afagos no seu pêlo serrano.
A mala não está pronta e já uma saudade em crescendo dos ‘bom dia, louise’ do Gustavo.
A mala não está pronta e os meus olhos já se retraem para não deixar verter a emoção em estado líquido. Ah... as despedidas. Não quero despedir-me. Prefiro: Até já!
Até já à serenidade que esta casa cheia me concede. Até já à boa-disposição e ajuda incansável da Emília. Até já aos cuidados da Rosário, sempre disponível, no seu sorriso luminoso e bondoso para o que for necessário.
Até já ao sorriso transbordante da Maria. Até já às conversas com o Cláudio e o Sebastião.
Até já às memórias vívidas da alegria do Beto e das risadas com a Júlia, os Bernardos e o Orlando.
Até já aos fins de tarde e noite em que o FCP joga, trazendo os amigos do Gustavo e fazendo-os sofrer alegremente – este ano foi só sofrer... mas um sofrer bem-disposto.
Ah, a quinta – tão perto do mar e do Parque da cidade.
Querido Gustavo, lembra-te de mim e guarda um lugar para quando eu voltar... Obrigada!
E muito obrigada por estes meses de partilha com uma pessoa tão especial como tu! Cuida-te!
Cuidem-se e continuem a cuidar deste lugar, desta ilha preciosa na cidade –quase me atrevo a dizer: cuidem deste pequeno e imenso paraíso: a Quinta de Monserrate.

31 de Maio de 2016
Matosinhos, Portugal

Do topo da pirâmide do sol vejo o mundo*


Na Cidade do México, ‘onde a vida é mais pequena’, saí de casa do Marco e de Daniela para a cidade da Civilização Asteca: Tenochtitlán. Uma hora e meia de viagem de metrobus e autocarro. No autocarro, as janelas ‘escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu’. Silenciava o monólogo interior, escutando ‘dreams of a journey’ e sonhava com um império civilizacional.

A incursão pelo ‘Museo Nacional de Antropología’, da Cidade do México, fora apenas um introito, confirmando a ninharia da minha existência. A companhia musical de ‘scent of love’ apagou-se. Importava escutar outras vozes, enquanto os pés pairavam de pavilhão em pavilhão, de sala em sala, de cave em cave. As flores azuis, atrás das montanhas, que falam e falam na ‘Canción del Peyote’, eram um alerta. Havia que atentar ao que os olhos líquidos captavam. Havia que pelo menos tentar absorver alguns grãos da informação infinita sobre séculos de civilizações ancestrais. Acrobatas, serpentes emplumadas, coiotes, jaguares – o que olhos captavam sem apreenderem a chave da vida, ritualizada ao ínfimo pormenor através do culto dos mortos. ‘Eu sou do tamanho do que vejo’. O que via era o mito da criação espelhado na Pedra do Sol. Perguntava-me em que aldeia estava eu, para desse modo poder alcançar ‘quanto da terra se pode ver do Universo...’

As deidades guardadas nas tumbas, os deuses do sol e da lua venerados com rituais descritos e explicados através dos relatos mitológicos, eram janelas para um mundo onírico. Um mundo mágico, mitológico, povoado de xamãs – os mediadores entre os seres terrestres e os seres sobrenaturais. Através das suas poções, tabacos e algumas bebidas mais ou menos alucinogénias, os sacerdotes contactavam com o mundo superior, dando esperança aos terrenos. Uma segurança assegurada pela construção de estátuas, tótemes,  templos... pirâmides. 

No topo das pirâmides do Sol e da Lua... em Tenochtitlán, alguns dias depois. Pelas janelas do autocarro, que ‘escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu’, sentia ‘la folie’ em modo musical - a melodia que narrava o percurso sobre rodas até Tenochtitlan. Um percurso que me conduzia até uma aldeia, que é ‘tão grande como outra terra qualquer’.
Não era uma calçada qualquer, aquela que atravessei. Através da ‘Calzada de los Muertos’ entrava num mundo ainda muito vivo. Habitado de pedras sobre pedras, cujos cálculos e sentidos posicionais me faziam adivinhar que o seu tamanho não seria a sua altura. 

A ‘Plaza de la Luna’, um dos espaços sagrados mais importantes na cidade asteca. Um espaço aberto com um altar, a plataforma das coisas imperfeitas, aquelas sacrificadas para um mundo que se desejava mais perfeito. A imagem da deusa das águas, a companheira do deus das trovoadas, ainda permanece na praça ‘lunar’, como que testemunhando cada turista mais ou menos curioso, mais ou menos distraído, mais ou menos pequeno e pobre. Dependendo do alcance do olhar. O que os meus olhos me davam, ao subir a Pirâmide do Sol era uma riqueza que, depois de capturada, ficou bem guardada num baú, cuja chave, mesmo que perdida, salva está... pela memória ‘que aqui na minha casa no cimo deste outeiro’, me mostra mais uma vez que ‘eu sou do tamanho do que vejo’.
Na Pirâmide del Sol avistei o horizonte infinito e senti o poder da luz; os raios de sol tocavam a minha pele e a escala do meu mundo ampliou-se. Aquietada, sentada numa pedra, na qual muitas vidas se perderam, os cinco sentidos estavam alerta, agarrando a continuidade ininterrupta de um tempo sem tempo. O impulso criador, aquele que o sexto sentido, inexplicável, inefável tentava apreender na imobilidade inerte de quem testemunha a origem de todas as coisas. O cimo daquela pedra era, num instante eterno, a minha aldeia que me permitia ver o ‘quanto da terra se pode ver o Universo...’

Por isso, mesmo que vida na cidade seja mais pequena, os meus olhos viajam, viajam e sempre me mostram que são eles, também, a minha riqueza... a de ver.

* Intertexto com "Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver do Universo…”, de Alberto Caeiro
24 de Maio de 2016
Matosinhos, Portugal

Na cidade perdida dos Incas - Machu Picchu V



Noite de sono rápido, sem tempo para alcançar a dimensão onírica. Às 3.30h da manhã tocava o despertador. Quinze minutos depois, encontro com Valerie e Ferdinand e Hanuku e Bastien – outro casal que se adentrou no meu coração. Ela, japonesa, fizera voluntariado em Cusco, onde conheceu Bastien. Um jovem de origem francesa que vagueava pela América Latina há pelo menos um ano. Muito amorosos entre si, partilhando cigarros de erva de meia em meia hora... Planeavam viajar uma temporada pelo Japão para que o francês – a quem só escutei espanhol; pareceu-me que renegava o país e a língua materna – conhecesse a família nipónica. Quanto tempo aí se demorariam: uma incógnita para um viajante sem destino como Bastien.
Noite cerrada e demorada. As lanternas escorriam um fio de luz que guiava os passos ainda ensonados. Às 4.30h juntámo-nos aos muitos que preteriram o autocarro (dez dólares dá que pensar...) que saía de quinze em quinze minutos de Aguas Calientes até às bilheteiras da cidade perdida.
Os portões que davam acesso ao trilho ascendente abriram meia hora depois. Uma fila de gente recomeçou energicamente o caminho sob uma bruma tão misteriosa quanto a cidade perdida que nos estava cada vez menos remota. O magnetismo crescia, ao mesmo tempo que a humidade se entranhava nos ossos daqueles que subiam degraus perenes. A distância entre os visitantes também ia crescendo. Afastamento que se esbateu totalmente na entrada de Machu Picchu. Éramos os primeiros visitantes do dia. O meu bilhete incluía a visita guiada pelo Nico entre as seis e as sete e meia da manhã, a subida à montanha Machu Picchu e claro, algumas horas por entre as ruínas incas.
Pouco depois das seis, o grupo escutava, sentado, o que se conhece da cidade Machu Picchu. Sílabas do tempo, em relação às quais não me era fácil focar de forma plena o sentido da audição. Os meus olhos estavam por detrás de Nico, vidrados na névoa que pairava sobre os canhões escarpados. À medida que os minutos se esfumavam, os primeiros raios de sol, tímidos, tentavam penetrar na neblina que se ia dissipando... lentamente. Aspirava prolongar o máximo que me era possível as cinco horas que me eram permitidas vaguear pelos vestígios mais famosos e enigmáticos da civilização Inca.
Feita a apresentação do santuário, a visita deslocou-se pelas escadarias, terraços, templos e casas da cidade, culminando, para mim, no observatório solar. Aí, a memória transportou-me à infância. Os desenhos animados – As misteriosas cidades de ouro – que me estimularam desde miúda o desejo de conhecer o vôo do condor. Mal sabia eu que um mês depois estaria no lugar onde eles arquitectam os seus ninhos e se dão à estampa.
Às sete e meia, o grupo reunia-se rodeando Nico. Os aplausos, a ‘propina’ por todo o seu empenho e entrega total durante os cinco dias que nos guiou, acompanhou e partilhou o seu conhecimento e experiência. Muito obrigada, Nico! E muito obrigada ao grupo. Nesse momento dispersávamos para fruir talvez pela única vez (falo por mim, o mundo é tão grande...) de tão emblemático lugar.
Vagueei, toquei, cheirei, escutei, tentando captar a magia que sentia entranhar-se em cada poro do meu ser. Só depois resolvi subir à Montanha Machu Picchu.
Demorei cerca de uma hora pela escadaria de sentidos. Uau! Uau! Uau! E mais umas quantas expressões interiores de espanto, assombro e regozijo. Escutava sobretudo palavras que ratificavam o sentimento que me vem envolvendo com cada vez maior frequência. Sentia-me grata pela condição física, pelas pernas fortes que me permitiam subir e subir e continuar a subir. Sentia-me grata pelos olhos que podiam contemplar uma paisagem tão grandiosa. Sentia-me grata por estar e ser apenas, e tanto, num lugar que arrebatava a totalidade do meu ser.
Quando os pés finalmente alcançaram o último degrau: Uau! Uau! Uau! Estou mesmo aqui? Muito obrigada!
Após mais uma fotografia para o meu futuro eu, sentei-me durante pelo menos meia hora no topo do mundo – a minha percepção. Apreciei, respirei profundamente várias vezes. O meu olhar varria tudo o que lhe era possível, para assim guardar no coração um dos lugares mais belos onde tive o privilégio de estar... de ser. Muito obrigada!
Claro que depois de subir, há que descer – como quase tudo na vida. E foi então que o cansaço dos últimos dias se fez sentir nos joelhos, não tão estranhamente, inseguros. As escadas pareciam, então, muito mais perigosas e difíceis. Diz o provérbio que a descer todos os santos ajudam. Ali ajudariam, certamente, a rolar que nem uma bola de neve, desintegrando cada pedaço, cada osso. Por conseguinte, mantinha-me alerta, descendo cada nível com o cuidado e atenção que me eram possíveis nessa hora do dia, já bem longo.
Quando me sentei no comboio de regresso a Cusco, as lágrimas, há muito reprimidas, começaram a fluir languidamente. Terminava, enfim, uma das experiências mais bonitas que alguma vez vivi. Ah... como estou/sou grata por cada dia que me é concedido viver... assim!

Fevereiro, 2016
Matosinhos, Portugal


Exquisito - Machu Picchu IV






O silêncio brilhava. O dia estendia-se até aos cumes nevados. Às cinco da manhã despertávamos para o pequeno-almoço ‘exquisito’ – a palavra preferida de Isidora – a chilena do grupo que me provocava uma espécie de saudade do futuro.
No relâmpago de um instante, o amanhecer. Farrapos de luz: o fogo no céu mesclado com o azul eléctrico envolveu-me como um halo.
Sensações inéditas alastravam-se levianamente pelo meu corpo: “Nico, preciso caminhar mais devagar... estou-me a sentir muito tonta...” Ofegava. Via estrelas a desenharem um crocodilo no ângulo do olho direito. As pálpebras mexiam-se num movimento discreto, entre o pavor e a incredulidade. Estaria eu preparada para atingir os quase cinco mil metros de altitude? A voz tranquila num sorriso de Verão acalmou o meu receio: “Cada um pode ir ao seu ritmo...”

Retomei o caminho com alguma solenidade – as montanhas e vales que me rodeavam requeriam uma reverência de veludo. Consegui. O orgulho fugaz de uma principiante ficou registado na fotografia da praxe – para o meu futuro eu, uma memória visual a comprovar: 4600 metros, lia-se na placa do ponto mais alto do Salkantay trekking.
Uma perigosa obsessão conduziu-me sozinha pelo trilho até uma lagoa verde, muito verde, no meio dos montes secos e áridos varridos pelo vento. Vinte minutos que me atrasaram do grupo. Ficar para trás não foi um acaso: deste modo, Sebastião – um dos rapazes portugueses – teve alguém que lhe segurasse a testa no início da descida. Esse sim, estava num estado crítico – as ervas recebiam resquícios das entranhas do jovem português.


A magia não se perdeu. De todo! Éramos apenas os dois no trilho, com o guia um pouco mais à frente, escutando assim o vento a roçar na vegetação cada vez menos rasa. Lentamente, as botas faziam um inventário de cada passo inesquecível pelo ‘sendero’ misterioso, até ao acampamento seguinte.
Ao terceiro dia, o cenário era irreconhecível. Chegámos a uma floresta semi-tropical polvilhada de borboletas e borboletas multicolores e animada pelo canto das aves e aves exóticas.
O calor infligiu alguns estragos na força anímica do grupo: o odor do namorado de Melissa, o australiano Mathew, era implacável. Na pausa para o almoço, as belgas e a chilena foram ostensivas: sentaram-se o mais longe possível do rapaz.
Escutei em português a indignação de Melissa e a justificação: Mathew só levara duas t-shirts e a água fria não convidava ao duche. Eu escolhi pagar dez soles e tomei duche de água quente... O programa dessa tarde salvou-nos o olfacto: tarde nas hotsprings. Três piscinas de água quente no meio dos Andes – o grupo desfrutou com incontida satisfação a temperatura perfeita para a recuperação do esforço inabitual.

Sair da água revelou-se, contudo, uma experiência irrepetível ou pelo menos muito, muito rápida: em segundos, para além do fato de banho vermelho, o meu corpo vestia uma camada de insectos facínoras, frenéticos, furiosos e fatais. Ganhei um novo visual: pontos róseos por todo o corpo.
Foi já em Aguas Calientes, no dia seguinte, que partilhei uma fotografia na rede social. Mostrava, orgulhosa, os antebraços com as picadas dos mosquito. Os comentários que logo recebi reportavam-se, no entanto, a outros elementos decorativos: as pulseiras que habitavam os meus pulsos. Eram várias e duas delas eram novinhas em folha; presentes desse quarto dia enquanto passeava com Valerie e o Ferdinand pela vila. Um casal de alemães com quem a empatia se desenvolveu desde a primeira hora pelos longos trilhos até Machu Picchu. Valerie presenteou-nos com uma pulseira: pedras vermelhas e pretas – as cores protectoras dos Andes, escutáramos. O modo que encontrámos para nos recordarmos desses cinco dias extraordinários e ‘exquisitos’.
Foi na véspera de subirmos à cidade perdida. Terminávamos mais um dia de caminhada, dessa feita, pelos carris que ladeiam o rio Urubamba até Aguas Calientes: a vila turística com gente de todo o mundo. Só a escola primária, de onde se escutavam as crianças a cantar e a brincar me fez duvidar da natureza do lugar. As lojas de artesanato, os cafés, os restaurantes, hotéis, albergues – tudo me levava a crer que me encontrava num não-lugar – recorro mais uma vez à expressão de Marc Augé. O antropólogo desenvolve este conceito reportando-se essencialmente ao aeroportos. Espaços de transição e passagem, a partir dos quais nos deslocamos de um lado para outro: a sensação que me transmitia Aguas Calientes. Edgar, o guia de outro grupo com quem nos íamos cruzando ao longo do ‘sendero’, despertou-me dos devaneios: “Hola Ana!!”; “Hola Edgar!” Numa das ruas da vila: “Te regalo con esta brazalete”. Oferecia a pulseira de artesanato andino, dizia ele à medida que dava três nós para me proteger nos Andes. Nessa vila, fiquei ainda mais ‘protegida’ uma hora depois.
Entrei numa loja de acessórios para comprar um brinco em forma de pena para a minha querida cunhada M. Sei que são os seus preferidos. O proprietário, Marco – de nome espiritual e de curandeiro Sara (acho que era este, confesso que nem sempre compreendo a minha letra... e este é o caso) – convidou-me a entrar e a sentar-me à medida que ia questionando numa voz serena e muito macia a minha data de nascimento, cor preferida e outras coisas associadas ao esoterismo. Informações que gravou para então manufacturar um brinco. Escolheu não uma, mas duas penas azul índigo com veios vermelhos, uma pedra turquesa (para libertar a garganta), uma pedra de quartzo (para os sete chacras), e duas pedras vermelhas e uma preta (para a tal protecção). Sentados na sua mesa de trabalho, as suas mãos trabalhavam com minúcia o arame com um alicate, ao mesmo tempo que me ia explicando o poder dos diversos elementos. Um brinco que usei durante muito tempo e com o qual faço quase sempre um brilharete – pelo menos assim interpreto os comentários que se lhe tecem.


Ao final do dia o jantar de grupo, onde Nico nos providenciou o pequeno-almoço embalado para a manhã seguinte. O despertar seria às 3.30h da madrugada para aqueles que desejassem subir a pé até à entrada da cidade perdida: o local de encontro até às seis da manhã... 




Fevereiro, 2016
Matosinhos, Portugal

Sábado de manhã em Villa de Leyva



Às sete da noite o quinto Festival Internacional de Jazz em Villa de Leyva. Confirma no jornal local, uma senhora de Bogotá a passar o fim-de-semana prolongado. Decorrerá na Praça Carmen, informa a funcionária da Matilde Blain, uma das lojas de comidas da Casa Quintero. Café expresso, uma fatia de torta de Santiago e um sumo de manga. Para sumercé o marido, que chega com as últimas compras, um chá de malte. 
A manhã avança. Na igreja da praça Central da Villa, o funeral da Doña Teresa Davilla.
Enquanto isso, o bulício no mercado de Sábado. Ananás doce oferecido a potenciais compradores. Frutas de tantas cores quantos sabores. Yuca, abacate, muitos tipos de batatas e muitos outros legumes frescos enchem os balcões. Sapatos e roupas para quem quer renovar o guarda-vestidos. Provam-se comidas. Toma-se o pequeno-almoço tardio à conversa sobre a derrota da Colômbia na noite anterior. 

Foi com a Argentina. A copa da América perdeu grande parte do interesse para os colombianos. Por quem torcer agora? Pela Argentina. Aquela com quem se jogou bem e se perdeu na desventura dos penáltis. 
É só um jogo de Futebol. Sem muita convicção, Luis. O filho emigrado em Londres da senhora Maria. A proprietária do albergue Rana. O nome a homenagear um dos jogos mais tradicionais da Colômbia. A par do Tejo. Em Villa de Leyva este não tem campos para os da Villa se entreterem. Outros campos há. De Basquetebol. De Futebol. Como é óbvio. 
Crianças imitam os craques colombianos. Quadrado, Falcão e o grande guarda-redes da selecção, Ospina. A figura do jogo da véspera, salvando a honra na derrota. Aguardente e muita cerveja àguila dissipavam a tristeza dos pesarosos espectadores de televisão. Nem por ser no Chile os corações quase se perdiam. Isso já lá vai. Hoje é outro dia.
A Villa de Leyva chegam a toda hora os colombianos das cidades mais ou menos próximas. Muitos de Bogotá para o fim-de-semana com ponte. A pequena cidade está em festa para celebrar o feriado dedicado a São Pedro. A chuva que vai caindo amiúde reforça o seu poder. 
Na missa fúnebre os sinos anunciam o último adeus à Doña Teresa, aos quais se juntam as lágrimas de despedida. A saudade do até nunca mais, ou quem sabe até um dia. Para aqueles que acreditam que depois da existência terrena se encontrarão com os que já partiram. É só deus que tem os que mais ama, cantava um Luís português. É semelhante em quase todos os lugares, essa necessidade de crer que depois haverá mais. Isso não significa que se deseje o fim. 
Pelo contrário. É fundamental desfrutar cada arepa, cada almohada com um tinto claro ou escuro ou mesmo com uma poker ou uma àguila. 
Na praça principal, as fotografias retornam. São muitas. De preferência em boa companhia e num sorriso de quem se sente relaxado. O emprego só daqui a alguns dias. Como tal há que saborear. O fim-de-semana avança em festa para quase todos. O sol regressa.   


27 de Junho, 2015

Villa de Leyva, Colômbia 

No deserto da Guajira

Guajira...

O viajante encerrado num enfermo, para sempre sedentário, interessa-se pela morte. Esta representa uma partida. Escrevia o Adriano de M. Yourcenar. Não era o caso quando viajava num jipe de caixa semiaberta, desde Ubira para Cabo la Vella.
Deserto da Guajira. Os cabelos longos das raparigas a eriçaram-se pelo vento temperado de areia dourada eram uma prova de vida. 
As cores e os sorrisos registavam-se nas fotografias dos engenhos electrónicos. Fundamental guardar para a posteridade os rostos alegres e as cabeças descabeladas, como diziam os colombianos que com as quatros jovens europeias se aventuravam no deserto.
Esforcemo-nos por entrar na morte de olhos bem abertos. A morte estava esquecida, estando sempre presente pela sua inevitável possibilidade em qualquer instante. Ainda assim, foi um acaso não haver vítimas mortais na noite seguinte à chegada a Cabo la Vella. Dois carros chocaram de frente na estrada improvisada, sem luz artificial. As estrelas que povoavam o céu não foram suficientes para iluminar os dois condutores em estado de sonolência. Hospitalizados, os dois, com muitas e graves fracturas. A noite no deserto é traiçoeira, desqualificando qualquer às do volante.
A notícia do acidente chegou à hora do jantar. Patacon com arroz e salada para a vegetariana e lagosta acabada de pescar para as restantes europeias. Arihana, Raquel e Delphine. As três vivendo na Colômbia por uma larga temporada.  Os laços de sangue são frágeis na ausência de afectos. Os que ligam as três de língua francesa são os de amizade. A facilidade de comunicação estimulou o rápido crescimento e fortalecimento dos laços entre as jovens. Amigas que se escolheram. Vidas distintas, com caminhos diversos, que entretanto se cruzaram, acolhendo-se. 
Como a mim, acabada de chegar de Rioacha para entrar no mesmo jipe que sairia de Uribia. "Também és portuguesa" - em português. Ao fim de três semanas na Colômbia, escutava pela primeira vez português pela voz de Raquel, de origem portuguesa; os pais portugueses emigrantes em Paris. A mulher de trinta e quatro anos vive há três meses neste lado do oceano com o objectivo de aprender espanhol in loco. O modo que a empresa da qual se despediu (em comum acordo; estava cansada (!) e com vontade de mudar de vida...) encontrou para dotar a comunicadora social de mais habilitações. Raquel agradeceu!
A ligação pelo idioma e perspectivas comuns contribuíram fortemente para que a outra francesa, a Arihana, e a belga, Delphine, naturalmente me incluíssem no grupo. Passámos a ser quatro mulheres jovens. Isso é naturalmente relativo. 

É comum que a idade cronológica entre os viajantes não se questione. Irrelevante. Essa informação assome quando o tema da conversa está impregnado de questões acerca do como é que a vontade de deixar tudo aconteceu? Porque viajas... Desde quando... Porque deixaste o teu país... O pronome possessivo entre muitos viajantes tende a anular-se à medida que os meses avançam numa velocidade vertiginosa.
Em vertigem nos sentimos ao aproximarmo-nos de Cabo la Vella. Uma pequena povoação piscatória, onde o mar e o deserto se mesclam. A junção é de tal modo promíscua que os olhos duvidam da realidade da beleza assombrosa. 
O poço vai aumentando de profundidade à medida que nos afundamos na temporalidade risível. As horas deixam de fazer sentido. São como o relógio com o ponteiro das horas danificado. Só contam os minutos e os segundos. Assim se desconecta da realidade alheia. 
O céu azul reflectindo-se no mar, a fonte de inspiração. Flamingos e pelicanos apontando para outras perspectivas, quem sabe mais reais. Os olhares emocionados desvendando lágrimas de gratidão. A riqueza aumentava em cada instante de partilha. 
A subida até ao Pilon de Açúcar foi em silêncio. Quebrou-se no topo para fotografar as lusófonas junto ao pequeno santuário com a imagem da senhora de Fátima. A santa portuguesa tem devotos em toda a Guajira. Terá sido ela quem salvou os exploradores que atracaram na hoje denominada província de Rioacha, onde a fé pela senhora é ainda mais visível.
Antes de descermos o monte da devoção, Arihana presenteou-nos com o som da gaita de Cartagena. Um instrumento tradicional da cidade do Caribe. Um dos elementos de estudo para a sua dissertação de doutoramento. Razão pela qual voou desde Nice para a Colômbia. 
O final do primeiro dia foi contemplando o pôr-do-sol no farol de Cabo la Vella. Yo quiero bailar contigo, a banda sonora dos colombianos que também se deslocaram até à enseada para se deslumbrarem com o sol que não chegou a tocar o horizonte.
Quem está em Cabo la Vella não resiste a abrir os cordões à bolsa para tocar e cheirar a ponta mais a norte América do Sul: Punta Gallinas. Ao nosso grupo juntaram-se cinco jovens. Paola, colombiana, e dois casais. Um de instrutores de esqui nos Alpes franceses. A temporada de férias (a sua) quer-se prolongada, desta vez na Colômbia. O outro casal confirma a precariedade crescente das fronteiras. Ela, sul-africana, casada com um alemão. Conheceram-se de mochila às costas no Vietname e assentaram arraiais - mas pouco - na cidade europeia mais cosmopolita (pelo menos para mim) - Amsterdão.
Entre o português, francês e o inglês, era o espanhol que dominava com a banda sonora que animava o grupo. Cantando as travessuras sem nos podermos conter, as risotas aumentavam com os solavancos no jipe. O meu cóccix terminou essa semana num estado miserável, mas feliz. Hola bebé calou-se quando o jipe se atolou na areia. Os cactos alinhavam-se ao longo do caminho feito estrada. As pedras ajudaram o guia que se empenhava sem desanimar. A boa-disposição gravada em fotografias para memórias futuras. 
O grupo de nove pessoas ia partilhando experiências de viagens, de vidas profissionais antes estáveis para outras com propósitos maiores. Como a de Delphine. Belga da parte da mãe, nascida nos EUA, após alguns anos em Londres com a irmã regressou a Bruxelas. A cidade da União Europeia não a cativou e após um ano de testes foi seleccionada. Vive em Barrancabermeja. A mais quente e das mais pobres cidades colombianas. Vale a pena pela missão. É observadora de uma ONG. Com outros voluntários tenta que os direitos humanos sejam com efeito postos em prática. 

Despelucadas, as mulheres cantavam e bailavam com Enrique Iglesias. A respiração foi cortada quando, no silêncio, os flamingos esvoaçaram pintando de cor-de-rosa o céu muito azul. O fogo no coração ardeu ainda mais com o sol sobre as dunas de cem metros acima do nível do mar,  desafiando as então novamente crianças a rolarem até ao mar. 
A água cálida banhou as coxas e os troncos brancos que contrastavam com os braços e rostos bronzeados. Espraiados na areia escutávamos os mergulhos dos pelicanos que fisgavam o almoço. O nosso foi em Punta Gallinas a meio da tarde. Patacon com salada e arroz para a vegetariana e postas de peixe enormes e muito frescas para o resto do grupo. 
No farol da ponta mais a norte do continente mais musical e alegre (para quem escreve), o sol espalhava o dourado de despedida pelo mar sem ondas. Silêncio...

As palavras voltaram cantando mais uma travessura bebé no regresso ao alojamento  nessa ponta emblemática. Das hamacas, apreciou-se o céu nocturno de lua nova: um quadro luminoso. As constelações expunham sem filtros mitos e arquétipos da humanidade.
Como Ibn Battuta, aquele que não viaja não conhece o valor dos homens. Vale a pena acrescentar que quem não viaja não sente a abundância amorosa da Natureza. Por isso, faço como Buda: caminho, caminho sempre!




30 de Junho, 2015

Villa de Leyva, Colômbia 

A estrada da morte - parte II









“Do the things on a whim” – o Todd, na sua maneira de ser e estar. Rimo-nos durante toda a tarde com o Ron. Convidaram-me para me juntar a eles para jantar. Gostaria muito, mas tinha outro compromisso. Em Copacabana, no regresso de barco da Ilha do Sol, conversei com a Rennie, alemã; mais uma viajante solitária. As duas horas de conversa queriam prolongar-se para lá daquela cidade do lago. A Rennie também tinha como destino seguinte a capital da Bolívia. Trocámos e-mails e combinámos jantar nesse dia. O encontro ficou marcado em frente à catedral. Mais valia ter-me juntado aos dois homens. Até à visita guiada, eu desconhecia a existência de duas catedrais em La Paz. O encontro com a Rennie redundou em desencontro.
Para além das duas catedrais existem muitos locais de culto religioso. Os bolivianos têm lutas interiores quanto às doutrinas, se mais ou menos pagãs, se mais ou menos católicas. Todavia, tal como no Peru, o catolicismo impera, pelo menos aparentemente. Observei muitas pessoas a benzerem-se sempre que passavam em frente, ao lado ou atrás de uma igreja ou afim.
Todos os que buscam a verdade falam a mesma linguagem. Rendi-me à linguagem visual. Quando disse ao Todd que desejava ir a Arica para sentir o aroma do deserto: “No way! Aí não vais ver nada. Se queres pisar o deserto, tens de ir a San Pedro de Atacama”. Digamos que nesta fase eu estava muito permeável à sua opinião. Ligou o Ipad e mostrou-me fotografias belíssimas dos flamingos do Salar de Tara. Tão belas que sonhei toda a noite com o deserto.
No dia seguinte à visita, eu e o Todd tomámos o pequeno-almoço juntos. Ambos nos preparávamos para a aventura sobre duas rodas na Estrada da Morte. Reserváramos em agências diferentes. Ele pagou mais do que eu. Cerca de dez euros a mais que fizeram toda a diferença. Saí antes dele, às oito e meia da manhã; entrei no albergue eram quase dez e meia da noite. O Todd e o Ron na sala de estar, mostrando cuidado pela minha hora tardia. O Todd chegara às quatro da tarde. Esperavam-me ansiosos para partilharmos as experiências.
A minha aventura em BTT começou a 4600 metros. Num planalto próximo da cidade, o grupo de ‘bttistas’ – éramos doze, no grupo do Todd eram três: mais uma diferença que fez toda a diferença – no qual estava incluída, vestiu-se a rigor. Protecções nos joelhos e cotovelos por cima dos fatos de motoqueiros e com capacete à prova de (quase) tudo. Uma hora e meia depois de chegarmos ao ponto de partida, de muitas fotografias e de experimentarmos as bicicletas, seguimos estrada fora. Primeiro na via comum aos carros. Uma via-rápida ou similar sempre a descer com a adrenalina ao rubro. Dos meus companheiros apenas eu andava de bicicleta regularmente e de BTT era única. Desde logo esse facto fez de mim a mais pró, a mais arrojada (sem presunção e água-benta). Aquela que seguia colada ao guia da frente e à maior velocidade possível; a permitida pelo vento contra.
Ao fim de mil metros a descer, eu e o guia esperávamos há quase dez minutos pelo resto do grupo. Uma das raparigas deu um tralho. Nada de grave, felizmente para ela e para nós. O único transtorno foi o facto da moça ter ganho algum receio, o que provocou mais esperas ao longo do percurso. Sempre a descer... até que fizemos uma pausa para um lanche que me soube a almoço. Um ovo estrelado dentro de um pão muito saboroso, complementado com bolo de chocolate. Não admira que à chegada ao aeroporto Sá Carneiro eu fosse eu mais quatro ou cinco quilos nas pernas e no rabo.
Quando baixámos aos três mil metros, o cenário mudou. A estrada de alcatrão deu lugar à famosa estrada de gravilha onde morreu muita gente. Não é de espantar. Com pouco mais de dois metros de largura com ravinas atrás de ravinas, os carros tinham de seguir à vez quando se deparavam com outros no sentido inverso. Frequentemente, esse encontro era mais do que terceiro grau e o carro que fazia a curva por fora acabava fora de estrada... barranco abaixo.
Essa parte do percurso foi naturalmente muito mais exultante. Como a estrada está encerrada aos veículos a motor, era ver-nos por ali a abaixo a toda a velocidade, rodeados de montanhas com vegetação luxuriante e sob um céu azul exuberante. Disso o Todd não desfrutou. Como o seu grupo era de apenas três pessoas, desceram em corrida competitiva. Em vez das cinco horas que o meu grupo demorou, o seu fez a descida em acto contínuo. Sem esperas, sem demoras, sem quedas. Sempre a abrir. O nosso também ia sempre na esgalha, mas com muitas paragens para as fotografias a partilhar nas redes sociais e não só, claro. Até porque esta aventura dificilmente se repetirá e tinha de ficar gravada para além da experiência sensorial. Valeu bem a pena. Desfrutámos da paisagem única, dos cheiros únicos, das sonoridades únicas e de uma borboleta única.
Uma borboleta azul índigo com pelo menos cinco centímetros de diâmetro. Os meus olhos pararam a bicicleta e ali vislumbrei uma tatuagem que retratasse aquela borboleta singular no fundo das costas. Nada melhor que uma borboleta – azul – para me lembrar a metamorfose constante do meu ser e da vida e das asas que quero abrir até que o corpo me doa. Ainda – ainda! – não fiz a tatuagem. Não é uma prioridade. É oneroso e no dia em que escrevo estou de viagem marcada: para a Colômbia.
Eram quatro da tarde quando as bicicletas se estacionaram para bebermos uma cerveja, enquanto os guias e o motorista lavavam as bicicletas. Uma hora ou mais e nós esgazeados de fome. O programa das festas incluía um mergulho na piscina no local do almoço. Só queríamos o almoço antes da hora do jantar. Dispensei a piscina. O frio dos mil metros e do fim de tarde era um arrepio no corpo. Preferi um duche enquanto esperávamos pelo ‘almoço’.
O duche foi outra aventura, não tão fascinante. Não havia água! Ou a que corria era escassa. Saía pelo chuveiro aos bochechos. Toda nua, esperei pela água quase dez minutos. Um fio de água... fria. Ensaboei-me e esperei outro tanto por mais uma fiada de gotas geladas. Nada a fazer. Quando chegasse ao albergue tomaria um banho decente: os meus devaneios antes das sete da tarde, hora em que os pés se instalaram debaixo da mesa para jantar. Frango, a refeição esmerada para o grupo. Eu aguardei por uma omeleta deliciosa. Não era só apetite, estava com efeito muito boa.
Para onde vais? Vou para a festa, respondem as raparigas todas contentes. De onde vens? Exauridas, as mesmas moças dizem num suspiro: venho da festa... Foi assim que o nosso grupo se acomodou na carrinha e quase todo adormeceu durante as duas horas de caminho até ao centro da cidade.
Passava das dez da noite quando dei de caras com o Todd e o Ron. “Então, pensávamos que te tinha acontecido alguma coisa!” O Todd não se evitou: “estás a ver; paguei mais, mas...”
E saímos os três para mais uma aventura em La Paz. Não sei onde fui buscar energia. A essa hora o meu estômago berrava por mais qualquer coisinha e eles como que estariam à minha espera para jantar. Eu agradeci o seu cuidado e sem hesitar acompanhei-os. Eu e Ron dividimos uma sande vegetariana assistida por um mojito. Em Cuba sê cubano. A música ao vivo era cubana e estimulava os sentidos. Só faltou dançar. Isso foi depois. Ou quase.
De regresso ao albergue, parámos à porta de um bar com música em partilha para quem passasse na rua. Sentimo-nos convidados; subimos as escadas. A música era chamativa, mas apenas para nós. A única pessoa que ali se encontrava era o funcionário, um homem jovem. Estava completamente estatelado num dos sofás vermelhos e não nos ouviu chegar. E não nos ouviu a abrir o frigorífico para sacar cervejas. E não nos ouviu tirar fotografias à sua volta e a rir às gargalhadas com a situação mais caricata até ao momento. Os meus olhos eram um rio de lágrimas de tanto rir. As fotografias do Ron ainda hoje me provocam o riso.
Como três pessoas honestas que vamos aprendendo a ser, aquilo que apreciamos deve ser retribuído. Escrevemos um bilhete ao rapaz que deixámos no balcão com a quantia que nos parecia adequada para as bebidas.
A nossa borga foi interrompida, não pelo sonolento, mas por um colega que entrava pasmado, sabe-se lá porquê. O outro despertou muito estremunhado sem saber onde estava. Obrigaram-nos a pagar o dobro do que honestamente deixáramos. Apresentámos o nosso argumento, mas não foram em cantigas. E não discutimos. Afinal estávamos tão divertidos. Quando descemos à rua, mais uma fotografia à porta que pedimos a um grupo de três jovens que passava. Quiseram juntar-se na memória fotográfica.
O Todd e o Ron ainda vagueiam pela América Latina. O primeiro está na Venezuela para apreciar o fenómeno das trovoadas contínuas. O Ron em Buenos Aires... Até já Todd e Ron. Muito obrigada pelo riso e pela partilha em La Paz!