Há pessoas assim...*






A nove de Fevereiro de 1994 o Humanidade ganhava um novo alento. A esperança de um mundo mais justo era recuperada. Um ano depois de receber o Prémio Nobel da Paz, Nelson Mandela tornava-se o primeiro presidente negro da África do Sul.
 A dez de Fevereiro de 2017, outro homem manifestava ao planeta outras possibilidades de mudança: Barack Obama anunciava a sua candidatura à presidência dos Estados Unidos da América. E também Barack Obama viria a receber o mesmo Prémio da Paz.

Dois homens, de duas gerações diferentes. Em dois continentes, fazendo o que estava ao seu alcance para transformar o seu país, Mandela e Obama teciam a trama de um horizonte mais vasto que a sua cápsula. A imensidão dos seus actos expandiu-se a todos os cantos e recantos do planeta.
Ninguém terá ficado indiferente aos seus esforços. Há pessoas assim.
Ninguém terá desvalorizado a vida de reclusão por uma causa maior.
Depois de 27 anos de cativeiro, Nelson Mandela mostrou que o impossível não existe e que só o é na aparência. Lembrou-nos, igualmente, que “bravo não é quem sente medo, mas quem o vence”.
E 2018 é o ano de centenário do nascimento do prisioneiro 46664. Valerá a pena, por isso, parar e respirar e reflectir sobre o rumo a trilhar. Mantendo a esperança em cada representante da Humanidade, é possível vislumbrar um futuro animador. Sobretudo se cada um de nós se lembrar que faz parte de algo incomensurável e que cada gesto, por mais pequeno que seja, pode fazer a diferença. Qual bater de asas de uma borboleta a repercutir-se na brisa até ao outro lado do globo.
Defender e colocar em prática o Protocolo de Quioto é, parece-me, uma maneira de fazer a diferença, mesmo que ténue. A discussão deste protocolo terá começado em 1988, tendo entrado em vigor a 16 de Fevereiro de 2005, após ratificação da Rússia em Novembro do ano anterior. Com este protocolo, assinado e ratificado por 55 países, pretende-se reduzir em 55% as emissões de gases que provoquem o efeito estufa.
Portugal é um dos signatários desde 1998. Assim sendo, também os portugueses têm a responsabilidade de o respeitar. Em cada gesto, em cada escolha. Só desse modo poderemos contribuir para o presente e futuro de todos nós e dos nossos descendentes.
Ainda que o tema das florestas seja sensível, a sua protecção e preservação também depende, e muito, dessa consciência individual. Sabendo que em cada ser particular estará a totalidade do colectivo.
Ou seja, se cada pessoa se detiver alguns instantes por dia e decidir escolher (passe a redundância) com atenção, lembrando-se que as suas acções afectarão os outros, o ambiente que a rodeia e, no limite, o outro lado do mundo, certamente que contribuirá para alcançar a meta (a meu ver pouco ambiciosa) do Protocolo de Quioto.
De facto, Mandela e, posteriormente Obama e tantos outros, acreditaram no seu poder pessoal. Por vezes, tantas, não acreditamos que está em nós esse poder de transformar. Todavia, é em nós mesmos que começa a mudança. Por mais prosaica que seja a afirmação anterior.
Por conseguinte, a minha sugestão para este mês de Fevereiro, para este ano de 2018, é homenagear esse grande Homem que, desde a sua cela, nunca desistiu de contribuir para um mundo melhor. E uma das formas possíveis, para cada pessoa, individualmente, é tão-simplesmente realizar escolhas conscientes. Respondendo, por exemplo, à questão: quais são as consequências (conhecidas) dos meus actos?
Assim, ainda que não controlemos quase nada, temos capacidade para controlar as nossas opções.
Assim, ainda que (aparentemente) não tenhamos como mudar o mundo, temos capacidade para mudar os nossos gestos, as nossas palavras e até os nossos pensamentos...



Nota: No dia 10 deste mês será o segundo aniversário da partida da querida Avó Altina.

*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Às vezes é assim...



Desenrugo o sobrolho, e desfiro ataques sobre as teclas. Desmanchando ilusões, procuro desconstruir um discurso desconexo.
Distingo, ao longe, a sombra de um sorriso. É destituída de interesse, a pessoa que o desfia. Os dedos prosseguem, sem que eu saiba para onde me levam. Sem que eu saiba qual é a palavra seguinte.
Nem sei como estas letras ficam gravadas neste espaço virtual. Só aqui. Porque cada vez que a tecla apaga, apaga mesmo. Nada fica neste lugar imaterial. Nada fica no meu espaço cerebral. Outro sítio incompreensível para a maioria dos mortais. E cá estou eu novamente neste tema que, de camada em camada, se cristaliza, não sei onde.
Finto o tema da (i)mortalidade e procuro o ideal no ar tépido da noite. Fujo das lembranças, mas a máquina do tempo está encravada. Fito a eternidade com máscara, escondendo os olhos cheios de pensamentos. A imagem é turva. A da memória de chumbo. Finjo que sou mais leve e voo para outras águas... em menos de uma hora.
O silêncio é de tal modo ruidoso, que qualquer lugar é melhor que este. Aqui não existem pensamentos vazios. As vozes são surdas e provocam o espírito mais absurdo.
Acelero. Tropeço nas horas. A fraqueza aperta os pulsos e quase caio. Prefiro voar. Num lapso de cálculo estou mais além. Sou noutro alguém.

19 de Janeiro, 2018
Matosinhos, Portugal

Ode a uma Música!


https://youtu.be/G6Kspj3OO0s?list=RDy_6ak9CYx48

            Escrevo no dia seguinte à morte de Dolores O’Riordan. Para mim, era uma pessoa muito querida. Não que a conhecesse, mas o facto de ter passado uns bons dias na sua cidade natal, Limerick, na Irlanda, faz-me sentir um pouco mais próxima da sua voz encantadora.
Dolores O’Riordan era a vocalista de uma banda de música rock que muito aprecio. E a sua morte emocionou-me profundamente. Por vários motivos. Desde logo pela sua juventude. Dolores, a cantora dos The Cranberries, viveu ‘apenas’ 46 anos. As aspas devem-se às expectativas que a famigerada esperança de vida contemporânea nos cria. Além disso, como me faltam ‘apenas’ dois anos para alcançar aquela idade, as circunstâncias da sua morte aumentam, diria de forma inevitável, a minha apreensão. Morte súbita – causa desconhecida.
Foi num romance de Pascal Mercier – Comboio Nocturno para Lisboa – que certas indagações ganharam forma, no que à morte concerne. Curioso é o facto de estar a escrever enquanto viajo de comboio desde Lisboa.... Dizia eu que certas questões se materializaram em palavras, dado que o autor suíço me ajudou a visualizar e assim a compreender a angústia face à possibilidade de morrer, bem como o receio, digamos assim, da morte de pessoas que me são mais ou menos próximas.
Quando me reporto à proximidade refiro-me em termos abrangentes. Há pessoas que desconheço fisicamente, mas em relação às quais sinto uma espécie de ligação. É o caso de Dolores O’Riordan. Ainda que não tenha tido sequer a oportunidade de assistir a um concerto da sua banda, o choque que a sua partida me causou ainda reverbera no meu ser.
Na verdade, a morte de outros artistas, cantores, intelectuais e outras pessoas publicamente reconhecidas, suscita-me tristeza. Claro que quando se trata de pessoas jovens, mais ou menos famosas, a incerteza quanto ao derradeiro fim, associada ao questionamento do sentido de viver, assalta-me, qual larápio dos homens.
Foi em 2009. Na primeira vez que li a passagem seguinte do referido livro, gastei uma boa quantidade de folhas a especular acerca da vida que projectara. Estaria eu a VIVER? 
 “E assim poderíamos descrever o medo da morte como o medo de podermos não vir a ser aquilo que aspirávamos ser, ou para o qual nos projectámos”.
Desde então que engendrei formas para estar aqui com outra atitude... Nem sempre do melhor modo.
De resto, os CD’s dos The cranberries foram a banda sonora de muitas viagens de carro, onde a voz de Dolores era posta em causa pelo volume da minha própria voz, ou das pessoas que me acompanhavam. Mais da minha. Gosto de partilhar a boa disposição, mesmo sabendo que por vezes posso ser excessiva, nomeadamente ferindo os ouvidos dos meus acompanhantes. Ou bem que se juntam à cantoria, ou têm de ser deveras pacientes e compassivos para comigo.
Voltando à experiência sonora que a esta artista me providenciou, e que muito agradeço, reconheço nela, bem como em todos os músicos e cantores, o poder de tornar certas vivências inesquecíveis e intemporais, nem que sejam ‘apenas’ alguns instantes num local, com alguém mais ou menos especial.
Quem não se lembra de lugares, pessoas ou mesmo experiências ao escutar determinadas canções? É o caso de Linger – é uma das minhas músicas preferidas. Há 25 anos que a escuto; quase sempre com os olhos emudecidos. Há músicas assim. Há vozes assim. E a de Dolores continuará a ecoar no meu coração...

16 de Janeiro, 2018
IC Lisboa-Porto

Porto, um caso de amor *




You know I love you so – cantavam dois dos muitos músicos que nos dias de hoje pintam a cidade do Porto. Em frente ao Cubo, na Praça da Ribeira, escutava um sentimento confirmado numa versão com sotaque desconhecido de Yellow.
A expressão ‘nos dias de hoje’ não é despicienda, tão-pouco é estranho escutar sotaques e idiomas diferentes entre o número crescente de estrangeiros que a visita. 












A cidade do Porto: quem a viu, quem a ouve. Os tons musicais variam em cada esquina, ou em frente a uma casa amarela, ou vermelha ou azul, com sons e ecos diversos. 

O centro histórico vai-se transformando, rejuvenescendo numa paleta de azulejos multicores, procurando manter a sua marca registada nas fachadas. É possível que a Rua das Flores seja um dos exemplos mais ilustrativos dessa renovação tão colorida e musical, quanto polémica, como se lê num protector de obra – ‘o turismo mata os bairros’. Será que quem escreveu se refere à Ourivesaria Aliança, onde a jóia é o chá, ou à mercearia das flores, onde há quem se deleite a degustar os produtos regionais, de preferência biológicos?

You know I love you so: Porto! No cais da Ribeira, local onde terminou a nossa visita, os acordes da guitarra embalavam como um barco rabelo. Se antes este tipo de embarcação trazia as pipas de vinho do Alto Douro, hoje é uma das opções para contemplar o Porto ao longo do rio. O Douro, que nessa quase noite de céu limpo, espalhava as luzes do Mosteiro da Serra do Pilar. Eram estrelas cintilantes que, na varanda do mosteiro da outra margem, convidavam à travessia da Ponte Luís I – um dos miradouros mais altos para apreciar a cidade. Outros há, como seja o da Vitória ou o do Jardim das Virtudes. Este é, aliás, um lugar muito apreciado para tomar um copo ao fim do dia, enquanto o sol se deita... devagar. O pôr-do-sol que a câmara fotográfica de Miguel, de origem senegalesa a viver em Barcelona, gravou quando lhe perguntei qual era a sua melhor fotografia até ao momento.
Também o nosso grupo aí se detivera antes de descer as escadas da Vitória, não apenas para registar o momento para a posteridade, mas igualmente para guardar uma memória gustativa. Por sugestão de um dos elementos do grupo, deixámo-nos ficar algum tempo na Taberna Santo António, numa das esquinas do Passeio das Virtudes. Rissóis de queijo, pasteis de bacalhau e mousse de chocolate: algumas especialidades da casa que tivemos oportunidade de provar, acompanhando com o vinho da casa, como o fizeram a Rita e o Filipe.

Isso foi depois da visita ao Centro Português de Fotografia, alojado na antiga Cadeia da Relação na Praça dos Mártires da Pátria. A exposição permanente do espólio de António Pedro Vicente, com uma quantidade e variedade de máquinas e material fotográfico desde a origem da fotografia, é imperdível para os amantes da fotografia. Também para os amantes da literatura do período do romantismo, já que foi nessa antiga prisão que Camilo Castelo Branco terá escrito, em duas semanas!, Amor de Perdição. Da sua então cela, a vista é de cortar a respiração, sendo a Sé Catedral o elemento mais proeminente de quem se deixa ficar por instantes que seja, e assim captar um pouco da magia da Sé... do Porto.

A magia pairou através de um casal de meia idade. Os chapéus que o senhor e a senhora traziam, aliados à elegância com que se moviam, como que flanando por entre as ‘celas fotográficas’, provocavam o nosso grupo, originando uma curiosidade quase generalizada. Não resisti. Sorrindo, elogiei o casal e perguntei se poderia fotografar duas pessoas tão bonitas como elas. Do alto de dez centímetros dos saltos dourados, a senhora de cabelos louros presos sob o chapéu preto anuiu com simpatia. Agradeci. A fotografia é apenas uma das provas de um amor sem perdição, mas em crescendo... Porto, you know I love so!


11 de Janeiro, de 2018
Porto, Portugal

* Texto escrito no âmbito do workshop de escrita de viagens ministrado por Filipe Morato Gomes