Kevin

Foto de Kevin Burgi





Viajante da eternidade, Kevin vagueia pelas horas e dias colombianos. Às vezes deita-se com o vento. Quer sentir a brisa amena nos cabelos louros. Bebeu um copo de fortuna à beira-mar. Os olhos da cor do mar à sua frente fogem do sol ofuscante.
Kevin quer conhecer, quer aprender, quer compreender o sentido da vida. O carteiro suíço despediu-se das cartas. Deseja ser ele próprio uma carta... de amor, ou pelo menos uma carta de si. Quando afinal se decidir a redigir a totalidade das palavras, saberá quem é.
Na Argentina fez uma confissão espantosa: quase abreviou a vida. Todavia, o sangue real estimulou-o para a busca do jogo de contas. As contas da vida.
As suas sobrancelhas são um arco de curiosidade e o sorriso aberto almeja deslizar levemente pelo céu semeado de estrelas. Talvez amanhã, o amor... ah! O amor. Sem pressa e sem presas. A liberdade do viajante não se deixa agarrar por amores primaveris.
A panorâmica que, agora, a janela do comboio lhe oferece é um laivo de lucidez. Kevin bebe mais um copo de fortuna argentina. As praias quentes da Colômbia são já uma miragem. O que aí ficou de si; mais tarde alcançará.
Kevin anseia fazer algo da vida; pelo menos algo na vida. Não escreve. O raciocínio e o rápido fluir dos pensamentos permitem-lhe observar as mudanças que vai experimentando na viagem. A viagem... ah! A viagem.
Tem vinte e sete anos. O rosto marcado e as cãs nos cabelos fartos e claros enganam as mulheres. Deve-se também ao olhar profundo; como o mar límpido de uma ilha de coral. As mulheres mais velhas atraem-no. Elas sentem-se atraídas pelo seu semblante nórdico. Apenas o semblante. A baixa compleição induz a erros. Ainda assim, é usual ser confrontado pela sua fisionomia. Em terras latinas sobressai. Foi convidado para participar como actor num filme colombiano. Recusou. O visto quase expirou, depois de oitenta e oito dias nesse lugar quente e sensual. Está de saída do país.
Para onde? Decidindo. Se ao menos soubesse o quê e como fazer algo na vida. Enquanto não obtém uma resposta concreta vai vadiando, vai vagueando. Assim aprende. Assim conhece. Talvez assim seja mais. Com sorte encontrará a sua fortuna - o sentido do seu viver.


9 de Maio, 2015
Bogotá,Colômbia  

Um postal de Cartagena das Índias



De que se fala quando se escuta a palavra escravatura? O turismo é a onda que move muitas pessoas em Cartagena. No Museu da Inquisição, a história documenta como a tortura era (?) uma forma de manter a ordem cristã europeia. Espanhóis, portugueses estão presentes nessa imposição sobre os indígenas, aborígenes, os nativos da agora denominada Colômbia - uma colónia.

Ouro e prata. Rotas de riqueza. A motivação velada na cristianização. Hoje, na Colômbia, como em grande parte dos países da América do Sul, as povoações são fervorosas crentes da religião católica. A imagem da nossa senhora de Fátima portuguesa é uma evidência em vários locais da costa do Caribe. Como em Rioacha e Cabo La Vella.

Angola e Guiné. Duas das proveniências dos negros convertidos em escravos em Cartagena. Chegados em contrabando, os números são falíveis. Não há como, nem tão-pouco interessa contabilizar a entrada dos escravos trazidos por portugueses e espanhóis.

No Museu da Tortura está registada parte da acção europeia em nome de deus. Em 1822 viviam 25 mil almas em Cartagena, nas quais não se incluem as almas africanas. Bruxas, hereges, não-humanos - esses não números nas estatísticas dos intelectuais da época. Talvez o capataz fizesse parte. Se era mulato ou não, isso pouco importa nos dias de hoje. Importará se for muito negro, sendo certo que terá mais dificuldade em entrar em determinados lugares da moda!

A mescla é imensa. De tal modo, que não é fácil para um 'forasteiro', turista ou viajante perceber quem é ou não de origem do Caribe. 

Em Cartagena, o bairro Getsmani é uma das memórias realistas da colonização espanhola. As casas com balcão convidam com as múltiplas cores exuberantes e são um dos atractivos principais para os turistas.

Todos por um novo país. Relembrando a memória incómoda. Maio. O mês da afro-colombianeidade representa a vontade de apagar as diferenças e unir as almas qualquer que seja a cor de quem as encarna. Património imaterial. A pedra-angular da cultura do Caribe. A sua preservação registada e catalogada para a tornar em Património da humanidade. Viva a Colômbia e o multiculturalismo.

21 de Maio de 2015

Cartagena, Colômbia


Edu y Maru




Quero ser milionário. Eu e a Maru. Estamos de passagem. Como um murro seco no estômago que interrompe o pensamento. Parámos por uns dias, umas semanas. Sem dúvida que voltaremos à estrada. Como não há solução, enfrentamos a realidade. Trabalhamos por uns dias.
Quero ser milionário. Vou aparecer na revista 'Volta ao Mundo'. Estamos a viajar há seis meses. De vez em quando a alma é engaiolada e damos o corpo ao manifesto. Eu estou a fazer trabalho de pintor e a Maru a ajudar na cozinha.
As bicicletas cor-de-rosa com cesta na frente do guiador estão à porta. Preferimos caminhar. Às vezes também voamos. Preferimos os corredores, os caminhos que nos conduzem a novos lugares, a novas pessoas.
Assustam-me os doentes dentro das suas doenças. Preferimos guitarras e o tango argentino. É essa a nossa origem. O princípio. No fim, não sabemos onde chegaremos. O que foi lá permanece. Para o que venha, enfrentamos a realidade. Eu limpo o jacuzzi. A Maru limpa as casas-de-banho. Aguentamos. Às vezes a guerra é isso mesmo. Preferimos assim.
Amo-te muitíssimo, cariño. Digo o que sinto a Maru. Coração, ajuda-me na cozinha, por favor - a Maru para o Edu. Dois jovens argentinos em Santa Marta, Colômbia. Hoje. Daqui a umas semanas no Panamá. Lá, impera o dólar. Melhor para o câmbio e para continuar a viver como se não houvesse amanhã. Esse tempo não existe. Só o agora.
Neste momento, as nossas almas, tocando-se como duas mãos apaixonadas, estão suspensas. É uma pausa. Um soco no estômago. Macio. Os cavalos estão encurralados. Apenas por milionésimos de segundo - no tempo cósmico.
O tempo é quente. A água fresca ajuda. Refresca. Tem de ser engarrafada. Em Santa Marta não é potável.
É o plano. O cheiro a Buenos Aires não se esquece. O da Europa é uma ilusão a tocar por memórias que preencherão o futuro incerto; seguramente possível. Numa tatuagem da Maru tudo é possível. Numa outra desfruta-se o presente.
As paredes caiadas recentemente por Edu, as refeições preparadas por Maru. O amor vive-se no lugar exacto em que se encontram. No hostel Villana, em Santa Marta. Só até amanhã. Depois... Logo se vê!


12 de Maio, 2015
Santa Marta, Colômbia  

Comboio para Norte

Infalível no gesto. Sacudiu o pó dos pensamentos. Pesavam-lhe no pescoço. Eram uma carga inexorável nos ombros. Ao ponto de, apesar de ainda não ter chegado aos trinta, as omoplatas serem já uma serra de duas altas montanhas nas costas estreitas. Marta.
Infalível no gesto, trancou com firmeza a sua fúria descontente. A água corria no chuveiro, sem que Marta desfrutasse da temperatura para lá do tépido. Nua era mais pura. Detestava as calças justas de algodão que jaziam sobre a cama. As preferidas de Gonçalo. Sempre lhe provocaram irritação. Vestia aquela peça pelo conforto. Gonçalo agradecia: “Não consigo despregar os olhos das tuas curvas maravilhosas! Que bela invenção”.
Era com inveja secreta que Luís, o amigo de Gonçalo, contava os dias da eternidade para olhar Marta. Os cabelos lisos e finos da jovem nunca se despentearam com o olhar flamejante de Luís.
Sacudiu o pó dos pensamentos com a água que corria. E como num impulso alaranjado, fechou a torneira. Suspirando profundamente: “Está na hora. Chega!” Quase saltando da banheira, agarrou a toalha azul, abraçou-a ao tronco. Não gostava de se limpar. Parou os movimentos em frente ao espelho. Aguardou que o ar quente secasse a pele macia. Sempre macia com o creme de aroma floral e fresco.
O olhar violáceo reflectiu no espelho um obituário antecipado. Deslizou pelo corpo esguio, amarfanhado na toalha. Expeliu novo suspiro. “Vou embora. De comboio!” Sem mais demoras, deixou a casa-de-banho e vestiu as calças pretas que abominava, uma camisa azul e sapatilhas. Da estação seguiria para a praia. Ia para a praia. Estava decidida.
Irra! Sacudiu novamente, com mais vigor, o depósito cristalizado dos pensamentos. Correu vertiginosamente pela rua abaixo. Os carros levemente adormecidos, levemente povoados, paravam para Marta prosseguir, vermelha, envolta numa raiva incontornável. O murmúrio pesado das máquinas – sempre obras, sempre em obras, estas malditas máquinas – atravessava-lhe o estômago. Morangos. Esqueceu a fruta no balcão da cozinha. Melhor assim, os primeiros da época não a atacarão. Seria em vão que a mordaça lhe seguraria a ira efervescente.
Cansas-te, Marta!
Marta, Cansas-me!
A ridícula ideia de não voltar a ser. Abraçando o caminho, entrou numa carruagem aleatoriamente. Quer ir embora. Inocente e irrevogável. Com falsa emoção, sentou-se. Cinzenta. O trepidar do comboio logo, logo, lhe quebrou o silêncio. Mesmo que aparente.
Fechou os olhos. Sentiu lenta e pesadamente as pálpebras, como cortinas de aço que trancam o amor. O amor, ah!, o amor... e adormeceu. Rígida. Alguns minutos.
E relaxou. Sorrindo. Em surdina, uma gargalhada, doce.

Como se alguém te contemplasse


Faz tudo como se alguém te contemplasse. Leu Margarida num quadro da memória. Sentada à beira-mar, a felicidade é um estado inefável. A água fria do Atlântico mantém-se numa distância segura, mas os pés dançantes do invisível arriscam o arrepio. Percorre-a desde os dedos da extremidade inferior até à cabeça. No caminho acalmou o fogo flamejante. É Primavera.
Atrás de si, as gaivotas voam sem tino. É Primavera nas ondas da manhã. Eleita para o amor, Margarida renasce em cada noite pouco, mal dormida. As horas são horas de sessenta minutos, à distância. Quando sente o toque de António, quando o respirar de António lhe sopra ao ouvido, as horas não existem. É um tempo sem tempo. É um presente eterno que se renova, qual onda na areia apagando as palavras risíveis riscadas com o indicador.
O suspiro tranquilo e amoroso que abraça os ombros estreitos e macios de Margarida despertam. Um fulgor que perpassa cada célula, cada espaço intersticial. É um brisa doce.
-       És tão linda, Margarida. As tuas mãos dançam no lenço que se ata e desata num gesto despercebido, por ti. Para mim é um entrelaçar divino. Faz tudo como se alguém te contemplasse. Fica aqui.
-       Não vás. Não tardes...
A inércia é aparente. Os olhos tocam-se. O azul de António no verde de Margarida: a paleta da Primavera. Ao lado, o nada. Atrás o vazio. Em frente a eternidade.
Faz tudo como se alguém te contemplasse. É no centro da gravidade ausente que as estrelas são um lapso. A manhã apagou-as. Foram embora. Vão sempre embora. Em breve vão casar.
António não demora e Margarida acorda. Grava os sonhos na areia pueril. O corpo vibra com o lampejo do sussurrar de António.
Fica mais um pouco para que eu te possa contemplar... devagar.


Em Maio, comem-se as cerejas ao borralho*

Foto de Álvaro Martino

Em Maio, comem-se as cerejas ao borralho. Há dois anos estive em Nogueira do Cravo no mês de Maio. Fui passar uns dias com a avó Altina. Diga-se de passagem que não me recordo de viver de forma tão intensa aquele provérbio. Estava um frio de rachar! E eu toda artilhada com roupas e casacos de Inverno. Que frio na rua! Em casa estava-se bem, não ao borralho, mas junto ao forno a lenha da cozinha da minha querida avó.
Maio que não der trovoada, não dá coisa estimada. Não conhecia este provérbio. Recorro a essa sabedoria popular, pois para mim as trovoadas são um espectáculo assombroso da natureza, esteja eu segura e abrigada dos potenciais raios.
Comecei a apreciar esse crepitar estrondoso das nuvens depois a infância. Até então, como muitas crianças, os trovões e os relâmpagos apavoravam-me. Corria para debaixo das saias da minha mãe. Com o seu sentido amoroso de protecção, a minha mãe apaziguava-me. Não é isso ser mãe?
A Mãe tem no primeiro Domingo de Maio toda a atenção (possível) dos seus filhos. Pelo menos nesse dia. Contudo, a Mãe não o é apenas nesse dia. A Mãe, desde que intui que está grávida, até ao dia em que desaparece desta existência, é sempre Mãe. Está sempre em cuidado pelos filhos, está sempre disponível para ajudar os filhos, está sempre a fazer e a ser o melhor que sabe como mãe. Não sou mãe. O que escrevo decorre do que sinto e depreendo pela minha experiência enquanto filha, bem como do que vou observando nas mães que conheço. 
Como são lindas as mulheres que trazem no ventre outra vida. Fico sempre agradavelmente surpreendida quando alguma mulher que me é próxima está grávida. Os seus olhos mudam; ficam ainda mais vivos. A sua voz altera-se; tornando-se mais suave. A sua postura transforma-se, sendo em muitos casos de uma tranquilidade exuberante. O que me faz pensar no que é isso que todos nós desejamos: ser feliz.
Ser mãe, para as mulheres que conheço é em relação a essas que me posso reportar , é uma dádiva. Recentemente, uma grande amiga minha foi mãe pela primeira vez. A Sónia. A sua filha, a Carlota, mostrou-me uma Sónia diferente. Tranquila. Ainda mais afectuosa e com um sorriso constante, como quem diz: sou a pessoa mais feliz do mundo.
Ser mãe é, todavia, um dos papéis mais importantes e provavelmente o mais difícil que uma mulher pode desempenhar. Pelo simples facto que não se desempenha. É-se mãe. Sempre. Quando o bebé nasce, a mulher passa a ser Mãe e a ter o coração sempre atento, sempre alerta. SEMPRE. Por isso tão difícil. E no entanto, não se sente como difícil. Pelo contrário. Tal como a maternidade é recebida como uma dádiva, ser mãe é ser A Dádiva constante. Sem que o sinta como mãe, como filha arrisco a dizer que o amor de mãe é possivelmente o único incondicional.
Da minha parte (juntamente com o meu pai), foi da minha mãe que sempre recebi amor incondicional. O sentimento que me transmite a sensação de protecção incondicional. Sinto que o que quer que eu faça, quem quer que eu seja - mesmo que não me compreenda; sei do que falo -, a minha mãe estará sempre para me ajudar. A minha mãe é e será sempre a minha Mãe. Por isso, se o leitor ou a leitora, me permite, eu aproveito este momento para reiterar a minha profunda gratidão à minha mãe. Muito obrigada, querida Mãe, por me ajudares a ser quem sou. Muito obrigada por me fazeres sentir incondicionalmente protegida e amada!
O dia 15 de Maio concede-nos outra oportunidade para demonstrar o afecto pela mãe. É o dia internacional da família, e/ou das famílias. O plural não é um acaso. Faz toda a diferença. Realça o facto de o conceito de família ser muito diverso. Ser plural!
De entre os múltiplos significados da palavra família, agrada-me sobremaneira a ideia de família que abarca o conjunto de pessoas que se liga por laços de afecto e que se une para compartilhar momentos mais ou menos importantes. Que se junta e se acompanha nas horas mais quotidianas e em momentos tão simples como ajudar a fazer os trabalhos de casa, a pôr a mesa (mais ou menos farta) para o almoço ou jantar, ou para sentar no sofá apenas e tanto para conversar.
As pessoas a quem se pode recorrer num momento de maior aflição, ou a quem nem é  preciso recorrer, pois basta um sinal e ali estão, nem que seja apenas para nos segurar e dar a mão.
Aquele conjunto de pessoas que se une para compartilhar nos dias festivos, qualquer que seja a natureza da comemoração. Não posso deixar de lamentar que alguém tenha suprimido uma série de feriados; são esses dias de folga no emprego que, por serem comuns à maioria das pessoas, permitem que elas tenham a mesma disponibilidade e assim estar juntas para confraternizar, partilhar, rir, abraçar, dançar e tudo aquilo que nos torna mais humanos, mais felizes.
Lamentos à parte, parece-me importante destacar que as famílias são muito mais que as famílias tradicionais constituídas pela tríade de pai, mãe e filhos. São os afectos, os sentimentos amorosos que nos fazem sentir amados e integrados numa família, seja ela monoparental, seja ela com dois pais, duas mães, pais e mães adoptivos, família substituta, comunitária ou arco-íris. O que importa, pelo menos para mim, é o sentimento de pertença, compartilha, de abrigo e protecção que cada família transmite aos seus membros. No limite, poderíamos ser todos uma família. Bastaria que nos olhássemos entre todos da mesma forma com que nos olhamos a nós próprios. Com o coração! (já agora, o dia mundial do coração é a cinco deste mês)

*Este texto foi publicado no jornal O Chapinheiro