Arequipa - Colca Canyon II



           
Há palavras que nos beijam. As de D. Mercedes, mãe do Marlon, o proprietário do hostal Marlons’ house em Arequipa, eram notas de música de uma sinfonia harmoniosa. Palavras de amor, palavras de esperança sopradas sem condições, tocando como quem abraça.
Fiquei uma semana em Arequipa, a segunda maior cidade do Peru. O objectivo era visitar o Colca Canyon. De entre as opções oferecidas pela Lily – a recepcionista simpática muito prestável de Marlons’ house – o trekking de três dias foi o que logo me cativou. Sobretudo pela extensão do percurso.
Os dias que antecederam essa caminhada foram a calcorrear as ruas, a contemplar a grandiosa basílica construída em silhar – uma verdadeira obra arte neo-renascentista com influência gótica – e os três portais da cidade. Outras vezes deixava-me estar por muito tempo sentada num dos raros bancos vagos da Praça de Armas. Este tipo de praça é a mais importante de cada cidade ou vila, sendo geralmente habitada por um dos heróis de guerra de libertação do domínio espanhol. Os bancos estavam quase todos quase sempre ocupados por locais ou turistas observando as crianças atrás dos pombos, depois de lhes atirarem o milho comprado a um dos muitos vendedores ambulantes da praça. Havia mais do que um fotógrafo atento, para quem quisesse guardar uma memória materializada de uma brincadeira, de um beijo ou um abraço.
Passei muitas horas no hostal do Marlon, assistindo às aulas de escrita por skype, desenvolvendo os respectivos trabalhos de casa e conversando com Jeff: um fotógrafo e guia americano que passava o dia em frente ao computador e a fumar cigarro atrás de cigarro. Escutar o Jeff era sinónimo de uma boa gargalhada. Percebi que organizava viagens personalizadas e de longa duração para uma ou duas pessoas – basicamente para gente com muito dinheiro.
Mesmo que em certos momentos duvidasse da veracidade das suas histórias, o seu modo de contar era delicioso, muito divertido e repleto de pormenores bizarros que temperavam as narrativas com perfeição. A sua presença quase contínua na sala de jantar da casa do Marlon – nunca o vi sair do alojamento – permitia-lhe, igualmente, observar os demais hóspedes, entre os quais um jovem de Toronto.
A voz rouca e o rosto enrugado de sessenta anos com muitas aventuras tornavam o seu discurso ainda mais eloquente. As minhas lágrimas não se contiveram quando Jeff descreveu detalhadamente o quotidiano do canadiano de vinte e um anos em Arequipa. Pouco saíra do quarto privado durante as já três semanas (!) que aí permanecia alojado. Só vi o rapaz duas vezes. Estava sentado à porta do seu quarto com um gorro andino enfiado na cabeça. Estava adoentado: informou-me Jeff. A sua mãe autorizou-o a viajar durante um ano pela América Latina. Sem experiência, o jovem não fazia a mínima ideia de como viajar. Aplicava-se bem a esta pessoa o ditado: “deus dá nozes a quem não tem dentes”.
As suas três semanas foram muito diversificadas, entre tomar o pequeno-almoço (incluído nos menos de seis euros por noite e muito bom por sinal: muita fruta, pão fresco com queijo, manteiga, fiambre ou doce, acompanhado de sumo de fruta natural e café, leite e/ou chá), jogar computador e sentar-se alguns minutos à porta do quarto, saía de vez em quando para comprar comida; pouco mais sabia como passar o tempo. Todavia, fez algo mais: tornou o seu quarto mais aconchegado: comprou mobília! Uma secretária e uma cadeira de rodas de assento recostável. Imaginávamos o rapaz a fazer corridas contra si próprio no quarto – ainda que pouco espaçoso – durante os intervalos dos jogos online e quem sabe a bater com a cabeça na parede por perder dinheiro na jogatana: o uso que consignámos ao gorro de lã pouco prático para as temperaturas cálidas de Arequipa.
O seu portátil de quinze polegadas não era suficiente para aprender a ler mapas: a sugestão que Jeff lhe dera, uma vez que teria a intenção de planear a viagem até à Patagónia. ‘A blind leading a blind’ – o mapa que o americano entre risos disse ter-lhe proposto.
A D. Mercedes foi outra pessoa que me encantou com a sua voz serena. Enquanto lavávamos roupa no terraço, a senhora descrevia-me Nazca. Com muita pena não tive tempo para aceitar e desfrutar do seu convite gentil. D. Mercedes era de lá e sei que serei recebida de braços abertos no dia em que regressar ao Peru para sobrevoar as linhas de Nazca. Por ora, vou resgatando as memórias em sorriso. Quem sabe um dia destes surja uma nova oportunidade para voltar e assim visitar Guilherme, o dono do restaurante vegetariano Mandala, onde fiz grande parte das refeições enquanto na cidade.


Dezembro, 2015
Matosinhos, Portugal



Em jeito de balanço - mais um ano começa

Fotografia de Carlos Luís Pedrosa


            É intencional, o título. Mais um ano começa, em vez de mais um ano que termina. Gosto de recomeços. Gosto de reinícios. Gosto da perspectiva de novas experiências. Ainda assim, para mim, é muito importante olhar para trás. Um olhar reflexivo. Sem nostalgia. Sem arrependimentos. Sem pesar. Um olhar em jeito de balanço. Passar em revista, como se sentada na plateia de uma sala de cinema, cada mês, cada lugar, cada pessoa, cada experiência, cada livro. Onde estive. Com quem estive. Como estive. O que experimentei de novo. O que repeti.
            Questionar-me acerca de cada minuto que se incrustou no meu ser. Questões que me auxiliam a construir aquela que para mim mais importa: o que aprendi? Com a resposta a esta pergunta, fico mais capaz de compreender se, com efeito, cresci como pessoa, se já não repito padrões de comportamento inadequados e se me libertei daquilo que deixou de ser relevante (refiro-me a coisas, a lugares, atitudes e até a pessoas - mesmo que o último elemento soe inconveniente).
            Também olho para a lista efectuada no início do ano que finda (que tende a ser cada vez mais curta) e verifico se a cumpri, como a cumpri, que consequências no meu modo de ser e de estar. O que não foi possível realizar e porquê. Apesar da lista ser cada vez mais curta a cada ano que passa, não alcancei dois dos pontos. Ainda não tive oportunidade de voar em queda livre, assim como ainda não conheci um dos escritores que mais aprecio - estou a ler mais um livro da sua autoria, mas creio que isso não conta. Tudo o resto concretizou-se. Li muito, escrevi alguma coisa - bem sei que poderia ter escrito muitíssimo mais -, conheci pessoas maravilhosas, estive em lugares únicos, trabalhei com e sem remuneração e em muitos momentos senti-me em paz: fui feliz.
            Esta é uma das aprendizagens do ano: o conceito que detinha de felicidade alterou-se imensamente. Se até ao ano passado ser feliz era, sobretudo, ser livre e independente em todas as dimensões da vida, hoje, essa liberdade amplia-se ao mesmo tempo que se acalma. Ou seja, a liberdade - que para mim significa estar e ser como considero adequado, aceitando com responsabilidade as consequências das minhas escolhas - é, sem dúvida alguma, fundamental para me sentir em paz.
            Estar em paz e sentir-me serena ultrapassa, porém, a necessidade de ser livre. Tenho tido o privilégio de conhecer muitas pessoas fascinantes, de ler livros que me provocam indagações, de vivenciar montanhas, praias, desertos, e até tubarões no outro lado do mundo. Sinto-me, sou e estou profundamente grata por tudo o que me  tem sido concedido viver.
            Compreendo, hoje, que a minha felicidade está directamente associada à equanimidade: aceitar com tranquilidade tudo o que a vida me oferece, sabendo que tudo passa, tal como na natureza. Desfrutando de tudo o que é bom sem criar apego. Viver os momentos que me pareçam mais difíceis sem aversão, atentando de forma consciente às possíveis ilações a retirar para, desse modo, crescer... aprendendo.
            Quando me observo e olho em redor, percebo o quão agraciada, privilegiada, afortunada sou. E essa sensação despoleta em mim, a cada momento, uma crescente confiança na vida. A confiança de que tudo está e estará bem providencia-me cada vez mais paz, tranquilidade.
            Ser e estar em paz, confiante e segura em relação à abundância da/na vida: sei e sinto que tudo o que necessito me é concedido no momento e no espaço certos. Para isso, basta que:
-       me esforce ao máximo em tudo o que faço e sou
-       esteja atenta aos sinais para assim estar receptiva a todas as formas de abundância
-       seja e esteja consciente - a cada dia esses instantes vão aumentando
-       confie que sendo e fazendo o melhor que sei e posso, não há mais nada a fazer
-       seja fluindo e desfrutando cada momento, cada lugar, cada pessoa
-       aceite o desconforto e os momentos menos bons ou até mesmo muito difíceis com o discernimento suficiente para me questionar: o que tenho eu a aprender com esta situação, com esta pessoa?
            E assim é!
            Neste final de Dezembro sinto ainda necessidade de agradecer todas as circunstâncias em que me encontro; sobretudo às pessoas que se deram a mim, que partilharam comigo as suas horas, os seus dias, as suas coisas. Também sinto uma necessidade incomensurável de agradecer ao C.L. por entrar na minha vida e de me incluir de forma tão fácil e amorosa na sua. Hoje, compreendo um pouco melhor o que é o amor incondicional. E, por isso, estou tão cheia, tão feliz. Por isso, também, necessito de partilhar o que em mim não cabe. É possível o AMOR. Basta que se abra o coração e se deseje dar e receber o que de melhor há em cada um nós.

28 de Dezembro, 2015
Carrazeda de Ansiães

Nas asas de um condor - Colca Canyon I


         


           Pela terra e pelo sol, a bordo de um condor. Tu és filho do sol, meu pequeno aventureiro. As frases anteriores integram o genérico de abertura d’As misteriosas cidades de ouro – uma série animada franco-japonesa que, em 1985, fazia as minhas delícias e, provavelmente, das crianças púberes da minha geração.
            Fui ao youtube – confesso – para alimentar a minha imaginação e recordar o motivo porque no dia 23 de Novembro de 2014, dia em que pisava o miradouro do Colca Canyon – no Peru – fui envolvida pela emoção da recordação de uma infância muito alegre e animada.
            Eram oito da manhã do primeiro de três dias de trekking pelo desfiladeiro mais profundo do mundo – garantia Nelson, o guia que acompanhou o nosso grupo de cinco jovens. Entre eles, um casal de ingleses: a Claire e o Kevin; vestiam a felicidade de seis meses de viagem (estavam apenas a meio!). Abandonaram os empregos, esvaziaram o T1 alugado para caminharem juntos e partilharem o seu presente líquido.
            Foi com duas raparigas mal calçadas que partilhei o quarto nas duas noites. Mal calçadas para o trilho, note-se. Alguém sai de casa ou de um albergue (neste caso) com sapatilhas de passeio para realizar uma caminhada de três dias pelo canyon mais profundo do mundo, como iterava Nelson? Parece que sim! E, com efeito, a sua profundidade de mais de 4000 metros confere-lhe uma superioridade em dobro relativamente ao Grand Canyon, o qual ainda, ainda!, não tive oportunidade de visitar e calcorrear.
            Eram oito da manhã quando eu e mais de cem pessoas – seguramente – esperávamos ansiosamente que algum condor saísse do seu esconderijo e nos agraciasse com o seu voo. Seriam apenas cinquenta minutos de sorte ou azar. Para mim, nem uma coisa nem outra. Estar na varanda do desfiladeiro mais profundo do mundo era um instante perfeito e de grande contentamento.
            Havia algo mais que me fazia sentir cheia. A bexiga, ela própria. Deve ser pequena. Não é raro colocar-me em situações deveras desconfortáveis. A casa-de-banho do local também fazia um pleno e a fila interminável desmotivou-me. Além disso, o tempo era precioso: “e se enquanto eu estiver na posição de requitó passam de rajada os condores e lá se vai a minha fantasia infantil?!” De forma que me aguentei e observei e admirei e contemplei as escarpas altivas – tão altas que não vislumbrava o fundo do vale. O que também era natural, já que os olhos estavam todos postos no céu azul à espera das asas negras de algum condor menos envergonhado ou menos orgulhoso. Isso de se ser tímido ou peneirento é uma capa com frequência indecifrável, no caso dos seres humanos. O que é distinto é ser ou pelo menos agir de forma disparatada. O que senti, quando escutei: “Nothing special...” Uma blasfémia: o que os meus receptores auditivos captavam. Como era possível ter-se aquela perspectiva? – a minha questão silenciosa, enquanto respirava profundamente, quase tão profundamente quanto o maior desfiladeiro do mundo nessa matéria, para não rosnar à vacuidade do adolescente. Enfim, talvez as suas experiências anteriores lhe tenham proporcionado muito mais que a cordilheira andina.
            Quanto a mim, deleitava-me com as encostas nuas e agrestes encimadas pelo céu azul, cujas nuvens esparsas se deslocavam numa velocidade equivalente ao vento forte que as soprava. Cheguei a desejar que o vento fizesse levantar voo o tal púbere insano. É mentira. Não pensei mais nele.

            Quando me dirigia para a carrinha, um pouco desapontada – há, quase sempre, essa sensação quando se vai a um local com um objectivo específico, mesmo que se queira desviar das expectativas e aceitando a beleza do lugar como dádiva mais do que suficiente. Dirigia-me então, ligeiramente – apenas ligeiramente – desapontada, até que alguém gritou muito excitado: um condor um condor um condor. E eu vi um condor um condor um condor.. Como é óbvio, nem tentei a fotografia. Esses momentos, sabia-os tão excepcionais que não podia arriscar perdê-los e assim ver um condor por um canudo, que é como quem diz ver através de uma lente. E os meus olhos, esses sim, directamente não nos do condor, mas nas suas asas que, de tão enormes e negras e abertas, me transportaram num lapso interminável para a minha infância. A fotografia do condor, consegui-a entretanto na vila próxima ao desfiladeiro. No centro da praça existia uma estátua, não de um qualquer político, mas de um condor!
            E foi a voar no tempo que entrei na carrinha com os restantes elementos do grupo. Era a primeira de quase setenta e duas horas e já me sentia tão cheia e grata e agraciada.


Dezembro, 2015
Matosinhos, Portugal



Cor de canela


Foto de Todd Breese

Em Novembro passado, a minha pele apresentava o tom do deserto. Cristina elogiava o meu bronzeado “cor de canela”. Uma chilena que, como eu, passava uns dias em San Pedro de Atacama. Aí fui desde La Paz, onde Todd – um australiano que também fez a Estrada da Morte – acirrou o desejo de tocar, cheirar e contemplar o deserto de Atacama. “Se queres ter um vislumbre desse lugar inigualável tens de ir a San Pedro de Atacama”. Eu tinha apenas a intenção de ir a Arica e regressar ao Peru. Mostrou-me as suas fotografias: não hesitei – marquei duas noites no hostel Pachamama.
No seu ‘Livro’, J. Luís Peixoto afirma que “um pouco de vida se gasta em cada sentimento”. Todavia, o que senti naquela cidade desértica foi bem distinto. A experiência telúrica que vivi desde os primeiros instantes gerou um sentimento de tal modo intenso, que me atrevo a afirmar que foi das poucas vezes que me senti realmente viva: a VIVER.
‘Planeara’ ficar apenas duas noites na cidade do deserto – fiquei um semana! –, por isso, logo no dia em que cheguei fui ao Vale da Lua com um guia: o Orlando. As suas feições de índio espelhavam as suas raízes incas. Amante da sua herança cultural, o jovem de olhos escuros e brilhantes deixou escapar uma certa amargura ao referir-se à presença dos espanhóis, em especial do Padre Gustavo Peige. As ruas baptizadas com o nome do missionário explorador, assim como do museu da cidade eram, para Orlando, uma afronta face às consequências da invasão espanhola. Talvez fosse esse um dos motores da paixão com que vivia a sua missão. Estudava e procurava saber o  mais possível sobre a geografia do deserto: era seu desejo que aqueles que contratavam os seus serviços tivessem pelo menos uma ideia da origem da beleza que o deserto de Atacama exibia de forma escandalosa. Fazem-me sentido as palavras de Kenneth White em “A estrada azul”; o viajante afirmava precisar sair da história para entrar na geografia.
        Caminhar por entre as formações rochosas do Vale da Lua era como sentir a ausência de gravidade do satélite da Terra. Aliás, Orlando era da opinião que tinha sido ali que Armstrong teria aterrado em 1969. O ar seco e quente aquecia o meu coração, ao mesmo tempo que as mãos roçavam nas rochas cristalizadas de sal e em cada passo consciente pelos corredores labirínticos das paredes que o tempo sedimentou.
Nesse fim de tarde que terminou contemplando o pôr-do-sol no Vale da Morte confirmava, pelos sentidos mais abertos que nunca, o quão infinitamente vasta é a Natureza e o quão pequena sou. Um grão de areia na imensidão do deserto. Arrebatada, aspirava integrar a totalidade no planalto de onde avistávamos os vulcões transformarem-se em sombras, à medida que os raios de sol se tornavam cada vez mais rasos até desaparecerem na linha do horizonte.
Sentada no topo de uma escarpa, as recordações de outros desertos assomavam. Como as dunas de Merzouga do Sahara (onde estive em Agosto de 2009 com o Z.), cuja suavidade dourada e macia contrastava com os rochedos pontiagudos de Atacama. Nos dois desertos o silêncio era a sensorialização mais forte. O azul turquesa do céu rasgado pelo rosa choque dos flamingos: outro elemento que me adentrou. O mesmo senti no deserto de Guajira, em Junho deste ano.
O espaço sem limites e o efeito da inclinação do sol, sobre as inúmeras tonalidades das formações rochosas do Vale do Arco-Íris, ao segundo dia em San Pedro de Atacama, fizeram-me duvidar da minha convicção em ser ateia. Verde, cor de ferrugem e mesmo azul, as cores que se gravavam nas minhas retinas... para sempre.
Ao terceiro dia em Atacama integrava um grupo para ir ao famigerado Salar de Tara. Foi de joelhos a tremer que desci da carrinha que nos transportou ao lugar da solidão, ao lugar sagrado do silêncio. As falésias e as escarpas desenhadas pelos ventos despertavam-me do que me parecia ser um sonho. A brisa seca e morna tocava o meu rosto como uma mão apaziguadora.
Sob os raios de sol mais luminosos que nunca, o meu olhar não sabia onde poisar: se no verde resplandecente da vegetação rasteira do oásis, se no rosa das asas dos flamingos, se nas águas brilhantes onde as aves se deleitavam, se no azul ofuscante que transformava um instante numa vida inteira: “Já posso morrer” – a minha voz interior que compreendia a perfeição da Natureza divina.
Foto de Todd Breese

As pernas oscilavam, o coração batia numa arritmia assustadora, os olhos alagavam-se tentando conter um pranto de regozijo extemporâneo (?). Sem que me apercebesse do movimento a concretizar-se, observei-me então ajoelhada perante a beleza quase dolorosa, de tão intensa, do Salar de Tara.
Reverência e rendição. Como não? Os meus sentidos captavam uma paisagem surrealista, cuja espessura da atmosfera me era insuportável reter. Não cabia em mim o êxtase que invadia o meu ser.
Nesse dia assombroso emergia a gratidão mais profunda de viver. Crescia a confiança na existência, pela confirmação ratificada por cada segundo, por cada inspiração. Senti-me invadida pelo estranho sentimento de perdão. Ah... a vida inteira num instante incomparável. A convicção de estar no lugar certo, à hora certa: nada a mudar, apenas e tanto a desfrutar... com gratidão por SER!


Novembro, 2015
Matosinhos, Portugal

San Cristobal de las Casas




            Na mesma manhã de Agosto que cheguei ao albergue 13 Cielos em San Cristobal de las Casas, México, reencontrei Juanjo. Conheci o jovem adulto de Barcelona dias antes em Oaxaca. Viajava há sete meses. Começou na Argentina; terminaria o seu périplo daí a duas semanas em Cancun, de onde tinha o voo de regresso a casa. Recebera um telefonema do pai dias antes: “já tens o bilhete de volta!” Foi um soco no estômago, disse entredentes, ao mesmo tempo que se ria de si próprio. O seu humor pareceu-me genuíno; de quem sabe rir de si mesmo e de quem está confortável em ser como é. O seu desconforto devia-se à incerteza do futuro em Barcelona. Apenas sabia que começaria uma pós-graduação em Janeiro próximo. Juanjo gosta de viajar; nunca sabe como será o dia seguinte. Todos os dias são diferentes. “Hoje estamos a caminho de San Juan Chamula, amanhã quem sabe”.
            Antes de apanharmos o colectivo para essa vila, sobejamente conhecida e recomendada em todos os livros e sítios virtuais de viagem, detivemo-nos na catedral de San Cristobal. Não posso dizer muito dessa catedral. Entrei em tantas ao longo de mais de cinco meses, que essa era mais uma. Na verdade, são poucas as que tiveram o poder de se armazenar na minha memória. Dessa, em San Cristobal de las Casas, recordo a fachada cor de tijolo e o exterior. De um lado, a praça Zocalo e, do outro, um largo muito amplo, onde quase sempre havia muita gente. Sobretudo indígenas – muitos Maias nessa região do México – a vender o seu artesanato e outros bens menos tradicionais. De facto, uma das imagens que mais me marcou no andador (rua pedonal) principal da cidade foi a quantidade de crianças (muito novinhas desde os três anos, talvez) a venderem pastilhas elásticas, rebuçados, chupa-chupas e tabaco. A minha tristeza era resultado apenas da minha perspectiva? Aquelas crianças contribuíam para o parco sustento de uma família numerosa – o argumento de Juanjo. Brincar e estudar são verbos que não vi praticar.     
            É na região de Chiapas que está sediado o movimento Zapatista, sendo esse departamento do México onde mais se luta pela integração dos indígenas e pelos seus direitos. Inclusivamente, existe um albergue para voluntários que queiram contribuir para o desenvolvimento dessas comunidades locais. Alberto, o madrileno que conheci juntamente com Juanjo, aí se hospedou durante dois meses. Professor de Ciências Naturais numa escola secundária em Madrid, aproveitou as suas férias para fazer voluntariado em Chiapas, no México.
            Conheci os dois espanhóis em Oaxaca, cidade onde fiz uma excursão com o objectivo de ir às ruínas de Mitla – uma localidade de origem Zapoteca. Reconheci o sotaque de Espanha nos dois rapazes – o pretexto para entabular conversa. Esse dia em Oaxaca foi muito bem passado. Além dos dois rapazes, o grupo que se formou era constituído por Mónica, instrutora de yoga de Monterrey; estava de férias no sul.
Nessa excursão pelos arredores de Oaxaca, a primeira paragem foi em Santa Maria del Tule, a fim de contemplar a Árbol del Tule: uma árvore com mais de dois mil anos, com um tronco de 58 metros de circunferência. A maior que alguma vez vi. Aquela que recordava como tendo o tronco mais largo era de Palermo, quando estive de férias na Sicília em 2002, com as minhas queridas amigas S. e M.A. Ao contrário do que aconteceu em Palermo, não havia gente a tentar abraçar a árvore. Estava protegida das mãos humanas por uma cerca. Tentava adivinhar as figuras que o tronco desenhava com o seu relevo. Caras de homens, deuses, corpos de mulheres...

Em  Mitla, o tempo que passámos na vila em ruínas não foi muito. A chuva não estava para grandes explorações. Quando a chuva amainou já estávamos no mercado que apoia as ruínas zapotecas. Paragem obrigatória para degustar uma michelada. Preferi observar, limitando-me a bebericar para provar o que adivinhava ser demasiado estranho para mim. Michelada é uma mistura de sumo de limão, gelo, molhos (bem) picantes e (muita) cerveja. O copo é polvilhado por várias especiarias bem ‘chilli’. Digamos que não é bem o meu estilo.
As degustações não se ficaram por aqui. A excursão incluía a visita a uma  fábrica de Mezcal – aí sim, bebi vários cálices dessa bebida típica. Tantos quantos os sabores. Não os contabilizei. O grupo ficava mais animado e a empatia crescia. A proximidade futura com os espanhóis era promissora. Com Juanjo o reencontro foi quase imediato. No dia seguinte ele apanharia o autocarro para San Cristobal – o mesmo que eu planeara para dois dias depois. Combinámos reservar camas no mesmo albergue.

Quando chegámos a Hierve el Agua – as cascatas que davam nome à excursão – já éramos todos amigos na rede social mais conhecida. Ao descer as escadas de acesso às pequenas lagoas que transbordavam as suas águas para a escarpa, a emoção invadia-me e as lágrimas quase saltavam. A tonalidade dos diferentes verdes nas cascatas petrificadas fez-me duvidar da sua autenticidade. Além da sua beleza inefável, a paisagem que se avistava desse pequeno planalto enchia os olhos de qualquer um. Confirmava novamente o quão agraciada sou. Caminhámos pelo lugar contemplando as escarpas de branco macio, com o seu relevo ondeado, revelando milénios de águas reinventadas. As fotografias de grupo eram obrigatórias e uma forma de mantermos contacto.

Dois dias depois, eu e Juanjo deambulávamos lentamente pelo andador de San Cristobal – tão lentamente como o ‘slow cafe’ Carajillo que desfrutámos como deve ser. Observando modos ‘tradicionais’ de confeccionar o bom café mexicano, esperando pacientemente que ficasse pronto, para então degustar com prazer e tranquilamente o sabor único que enchia a boca e que devagar, muito devagar descia. Em cada gole, uma palavra de êxtase e a agradecer a sugestão de Alberto que tão bem conhecia aquelas paragens. Foi também ele que sugeriu a visita imperdível a San Juan Chamula.
Para apanhar o colectivo era preciso atravessar o mercado de San Cristobal, onde fui posteriormente quase todos os dias para comprar fruta e vegetais frescos. Foi necessário esperar alguns minutos para que a carrinha de nove lugares ficasse mais composta. À chegada à vila, um grande outdoor: “Bienvenidos a San Juan Chamula” patrocinado pela Coca-cola. Não valorizei a marca do refrigerante.
O colectivo deixou-nos numa estrada perto da praça das duas igrejas – deu-me a impressão que a vila quase se reduz à envolvência dessa praça. Interessava-nos a Igreja católica, porém, antes de entrar era necessário obter o ‘permiso para visitar’ no departamento de Turismo Municipal. Pagámos vinte pesos pela autorização, na qual se lia uma grande advertência: ‘Se prohíbe tomar fotos dentro de la iglesia, en las procesiones de santos y con las autoridades tradicinales y religiosos (...). La persona que infrinja esta disposición será sancionada”. Ignoro o tipo de sanção, mas Juanjo escutou histórias de pessoas a quem tiraram os telemóveis espertos e máquinas fotográficas. Não valia a pena arriscar; havia que confiar na memória apreciando cada instante de forma total.
A manhã era soalheira, como quase todas em San Cristobal de las Casas, onde a chuva me visitava quase todas as tardes.  Sob o céu azul, a temperatura era muito agradável – cerca de vinte e cinco graus. O que não demovia os locais de envergarem os trajes para as cerimónias e rituais religiosos da manhã. Os homens vestidos de casacos de lã de ovelha branca e as mulheres com saias de lã de ovelha negra. Um pormenor que fui reparando enquanto na América Central: a quantidade de roupa que as mulheres indígenas vestiam, independentemente da temperatura.
Na igreja católica o calor era ainda mais vívido, exponenciado pelas milhares de velas acesas e pela quantidade imensa de incenso a arder. Também os meus olhos ardiam, mas devido à cortina de fumo. Ao mesmo tempo, sentia uma náusea fremente e em crescendo com a visão de galinhas vivas prontas para serem sacrificadas em plena igreja. Eram as mulheres que as seguravam, enquanto sentadas no chão, aguardando ferverosamente a sua vez de colocar em prática o ritual em prol de alguma criança recentemente nascida, ou recentemente perdida. Os homens, esses, bebiam das garrafas que acompanhavam as velas em frente ao altar, onde jazia a figura de um jesus na cruz. As garrafas de coca-cola lembraram-me o cartaz de boas-vindas. Além dessas, também garrafas de sprite e fanta. Um diferente tipo de arroto de acordo com a intenção do ritual. Não faltava aguardente e, claro, muitos cânticos em torno dos diferentes santos.
Apesar de ser uma igreja católica, as imagens que a habitavam diferiam na forma e indumentária daquelas que são habituais nas igrejas portuguesas, por exemplo. Mais santos negros e menos ornamentos. Apenas pequenos altares encostados às paredes e um no centro da igreja rodeado por grelhas onde ardiam muitas e muitas velas de todos os tamanhos. O chão rústico era uma camada de  caruma nos espaços vagos de velas e garrafas de refrigerantes. Também na entrada da igreja existia um grande tapete de caruma.

Não fiquei para ver o sacrifício das galinhas. A coabitação desses rituais com a religião católica suscitou-me cogitações. A devoção era visível nas pessoas que ali oravam pelos entes queridos, sem se deixarem afectar pela quantidade de curiosos que ali se tinham deslocado para observar uma cerimónia, que a mim me fez pensar sobre a mescla entre práticas mais ou menos pagãs e práticas mais ou menos católicas, sobre a influência da cultura espanhola na cultura mexicana – para usar um termo suave relativamente à chegada dos europeus ao grande continente americano.



Novembro, 2015
Matosinhos, Portugal

O outro*








O outro. Alguém para além de nós. Alguém que se cruza no nosso caminho todos os dias. E que por isso não nos é indiferente.
O outro. Alguém distante, com frequência apenas um número, integrando mais uma estatística.
O outro. Alguém tão próximo que tem o poder de nos afectar com mais ou menos intensidade.
O outro. Quase sempre alguém que, sendo exterior a nós, reflecte parte do que somos, ou do que gostaríamos de vir a ser, ou que tememos vir a ser, ou que de modo algum queremos vir a ser.
Não é raro que o outro seja alguém a quem colocamos uma etiqueta para que seja mais fácil encaixar numa categoria criada. Seja pela educação, seja pela influência social, seja por experiências vividas anteriormente.
O outro. Alguém que categorizamos, nem sempre fazendo a pequena ideia de quem é a pessoa à nossa frente, mas que de uma ou outra maneira nos incomoda. E por isso criticamos, rejeitamos, excluímos, e até enxovalhamos. No limite, maltratamos – sempre com gravidade.
A pessoa com deficiência foi (e ainda é em muitos casos) o outro que sofre(u) a exclusão da vida social por ser diferente, por não se encaixar  naquilo que consideramos ser normal. Aqueles que teoricamente não têm qualquer deficiência (pelo menos visível) são consideradas pessoas normais. As pessoas que se distinguem por uma qualquer incapacidade foram durante muito tempo qualificadas como anormais – para usar um dos termos mais ‘suaves’. A ‘evolução’ conceptual transformou-as em deficientes, mais tarde em portadoras de deficiência (como se se pudesse portar uma amputação, por exemplo), actualmente pessoas com deficiência. Confio que num futuro próximo sejam apenas e tanto Pessoas.
É de salientar, porém, que o termo ‘pessoa com deficiência’ de entre as palavras e expressões ainda em uso é, a meu ver, um mal (não muito) menor. Ao substituir a palavra ‘deficiente’ pela expressão ‘pessoa com deficiência’ retiramos o peso de uma etiqueta, cujo poder é o de catalogar uma pessoa pela sua diferença. Como se a pessoa fosse apenas essa diferença. Deficiente mental, deficiente disto ou daquilo. E o resto? Essa classificação retira a possibilidade de se olhar para a pessoa para além dessa (eventual) incapacidade. Ao passo que quando se utiliza a expressão ‘pessoa com deficiência’, em primeiro lugar está a pessoa e só depois a deficiência que a ‘caracteriza’, ou que a torna distinta.
        Essa característica poderá então implicar cuidados especiais, sugerir necessidades educativas especiais, para usar os termos institucionalizados. Também é disso que se trata, essa institucionalização tem por objectivo criar condições para que as pessoas tenham acesso aos diversos sistemas, nomeadamente o de saúde e o educativo, entre outros.
          No entanto, é minha expectativa – mesmo que pareça uma utopia – que num futuro não longínquo toda essa carga de estereotipia se dissipe. Tenho a expectativa que, mais cedo que mais tarde, seja possível criar as condições para que os seres humanos se olhem entre si e tenham capacidade para ver além das diferenças. Neste caso as que impliquem cuidados de saúde distintos. Quando isso acontecer, ficará óbvio aquilo que sempre fomos: todos seres humanos. E a grande categoria ‘seres humanos’ é, como quase as espécies dos restantes reinos, muito diversa. O espectro de possibilidades é tão vasto que as estatísticas que constroem os padrões de normalidade, excluindo com maior ou menor desvio, tornar-se-ão desprezíveis. Pelo menos no que concerne àquilo que mais importa: as pessoas com toda a sua plenitude. Somos todos pessoas e todos somos semelhantes com as diferenças que nos tornam pessoas únicas.
            Deficiência é uma palavra poderosa. Sem dúvida é de poder que se trata. Quem tem ou teve o poder para classificar alguém com deficiência? A não ser que seja com o objectivo de salvaguardar os tais cuidados ‘especiais’ será eventualmente aceitável. Considero, no entanto, que essa categorização não tem de estar necessariamente associada à palavra ‘deficiência’ e muito menos ‘deficiente’. No limite, todos iremos necessitar em algum momento da vida de cuidados especiais. De facto, algumas diferenças são mais visíveis porque aqueles que têm poder para planificar, por exemplo as estruturas físicas, se esquecem das futuras dificuldades a que estarão sujeitos. Basta dar um exemplo muito simples. Se os arquitectos e engenheiros se projectassem com oitenta anos de idade, lembrar-se-iam de planear edifícios mais ‘amigos’ de todas pessoas, independentemente das suas ‘características’ – prefiro este termo. As portas seriam seguramente mais leves, as informações seriam mais legíveis e em diversos formatos, etc., etc... Já para nem mencionar o exemplo recorrente de passeios indevidamente ocupados por carros muito mal estacionados.
É utopia? Creio que não. Até porque o momento que se vive actualmente representa muito bem a incapacidade que temos de olhar o outro de forma compassiva. As diferenças nas crenças religiosas e posições políticas são porta-estandarte que se utilizam para justificar o injustificável: a morte de milhares de pessoas.
Parece que acontece só aos outros. Àqueles cuja distância justifica (???) a nossa indiferença. Será preciso que o outro nos seja muito próximo para então tomarmos uma atitude? Não pelo ódio, mas pelo amor. Afinal, o amor é das poucas palavras que – quando sentida – ainda tem o poder de nos unir e de nos mostrar que somos todos seres humanos, quaisquer que sejam as nossas características.
Os acontecimentos recentes e ainda a decorrer sugerem que se repense na importância que tem a Declaração dos Direitos humanos. No dia 10 de Dezembro celebra-se essa declaração. A sua proximidade é uma oportunidade para ultrapassar o papel. Para colocar em prática o gesto compassivo e não o gesto bélico. Os conflitos, quaisquer que sejam, não se resolvem com toda a certeza com mais conflitos, com o uso da força e das armas. O outro é afinal outro ser humano, como nós!
 Os dias 3 e 9 de Dezembro, dedicados às pessoas com deficiência, juntamente com o dia 20, lembram a importância da solidariedade. São datas que nos podem tocar e ajudar a reflectir sobre o ‘outro’ que também mora em nós.



*este texto foi publicado no jornal o Chapinheiro