Maresia*

Quando tudo parece calmo, não está!
Debaixo de cada onda dançam a Bela e o Monstro.
No horizonte, o azul desfaz-se em negro quando a tempestade se aproxima nas vagas da nova maré.
Quando tudo parecia calmo, o negro aproximava-se e apagava o azul no horizonte. A luz enegreceu, transformando brutalmente o cenário que antes parecia de tranquilidade azul. A Bela escondeu-se nas ondas.
Debaixo das ondas, dançam a Bela e o Monstro, mas, deste lado, a lente não alcança os sonhos dos revoltados.
Os sonhos querem dar-se à costa na espuma fremente que as ondas oceânicas lançam. Mas os olhos que as agarram têm medo.
Medo de quê? Se até um pássaro é capaz de sobrevoar o mar, ainda que as suas asas vacilem e lutem no horizonte com o vento contrário.
Debaixo das ondas, desceu a noite de Inverno.
Não é o Inverno, é a sombra desse mar negro que se arranca no horizonte.
Debaixo das ondas, o Monstro guarda os sonhos dos revoltados como um tesouro que só a espuma das ondas atlânticas conseguem selar.
O Monstro é o medo da realidade que os olhos perdem em cada flash, que os olhos querem agarrar no voo desse pássaro ao vento.
Debaixo de cada onda vem a noite, vem a sombra do mar que os sonhos dos revoltados preferem cantar.
O medo não lhes assiste. O medo não lhes existe.
Só os revoltados sabem que o Monstro da realidade, o mar revolto na negrura da tempestade também é a Bela que transforma o caos noutra possibilidade.
Debaixo de cada onda, dançam a Bela e o Monstro... quando tudo parece calmo.





Para as fotos de Álvaro Martino
https://www.behance.net/gallery/14434087/Maresia


Em Setembro, os tralhões que se cuidem*




O dia mundial da alfabetização comemora-se este mês. Dia 8. Mais uma data para lembrar que ainda há muito a fazer para que o mundo seja pelo menos um pouco mais justo. E sim, é mesmo verdade: em Portugal ainda existe gente que não sabe ler. Gente que não sabe ler no sentido literal da palavra. Em pleno século XXI, em Portugal (!) há gente que não sabe ler! É possível! Não é uma pergunta retórica. É uma afirmação que, de tão inacreditável, é chocante (pelo menos para mim).
Naturalmente que a alfabetização ultrapassa o saber ler, escrever, contar, etc. Desde logo, porque saber ler não significa que se compreenda a informação disponibilizada. Tantos exemplos que conhecemos de pessoas que foram enganadas, por não fazerem ideia do que se lhes estava a ser vendido – leia-se, impingido. Ora, isso é tão frequente que nem se dá conta. Só quando acontece na porta ao lado, como em Nogueira. Quantas pessoas terão assinado contratos para serviços que não só desconhecem, como não têm como usufruir. E essas pessoas que ‘compraram’ os serviços não são iletradas nem tão-pouco ignorantes. Só não estão alfabetizadas em relação às novas tecnologias. É pena que quem faz esse tipo de venda careça da alfabetização mais importante, a dos valores, como o respeito pelo outro.
Coincidência, ou nem por isso, Setembro é o mês do regresso às aulas. Em Nogueira, a escola está linda. A renovação/reconstrução da escola deu lugar ao Centro Educativo de Nogueira do Cravo. São cerca de 150 miúdos da freguesia e arredores que aí dão os primeiros passos na leitura.
Quem sabe este espaço renovado incentive a quem de direito a desenvolver iniciativas para toda a comunidade de Nogueira. Actividades que contribuam para outras alfabetizações. Como a do coração – o dia 29 deste mês é-lhe dedicado mundialmente. Tomemos então conta do coração. Não apenas com acções que estimulem os bons hábitos e estilos de vida saudáveis, mas também com actividades que contribuam para o desenvolvimento dos afectos. Até porque a escola é o local por excelência para aprender. E na escola de Nogueira sempre se aprendeu muito, e muito para lá do saber ler e escrever e contar.
Que o digam aqueles que aprenderam com o Professor Albano. Um Mestre, diz Amadeu, diz Francisco António, diz Zé Alberto, dizem todos os que andaram na escola entre as décadas de 1940 e 1980. Durante mais de trinta anos, o Professor Albano ensinou a ler, a escrever, a contar.  Sobretudo educou no respeito, na verdade e em outros valores que também hoje se querem renovados.
Eram tempos diferentes. Setembro significava também aventura para os rapazes de Nogueira. Às cinco da manhã, era vê-los a saírem armadilhados de costilos para irem aos tralhões. O caçador-mor era outro grande professor, o Francisco António. Acompanhado dos primos Amadeu e Zé Alberto – e com o António Mendes quando estava na terra –, ficavam no olival à espera que os tralhões caíssem nas armadilhas – os costilos previamente preparados com todo o cuidado... e artimanha! A tia Rosa levava o café. Se não houvesse café havia muita uva para comer – sim, porque as vindimas só depois.
Os tralhões eram um regalo para todos. O gozo ultrapassava a caça dos pássaros também conhecidos por papa-formigas. A véspera era na brincadeira a juntar umas quantas formigas para os ludibriar. De troféu aos ombros, cantavam os galos para ir depenar as aves. Um pitéu: os tralhões grelhados com umas quantas pedras de sal. Relembram os protagonistas. Esses senhores de Nogueira, homens que respeitam as suas origens e que fazem questão de partilhar as suas raízes com as gerações mais novas. Obrigada pai Amadeu e padrinho Francisco António.




*Texto publicado no Jornal: O Chapinheiro