Um corte no pé VI




Antes de prosseguir é devido, imperioso, fundamental um esclarecimento. Neste momento, leitor@, quem lês é a Margarida: a namorada do homem, rapaz, pessoa do sexo masculino que esteve aqui nas cinco vezes anteriores. Acontece que eu também quero ser lida e já é tempo da minha ‘voz’ se fazer ‘ouvida’. Chama-lhe presunção, necessidade de ser ‘vista’, o que melhor entenderes, para assim nos entendermos melhor.
As ambulâncias não páram as suas sirenes incessantes. Estou habituada. A minha casa é próxima do hospital central da cidade. Cada vez que escuto uma, agradeço o facto de estar viva e de boa saúde. Podes imaginar, leitor@, o número de vezes que o faço ao longo do dia e da noite também. Particularmente quando os dias passam inteiros por mim sem que eu sinta o calor exterior; no caso dos meses anteriores a chuva fria, ela própria. Hoje, felizmente, é o sol no seu ocaso dourado que me encadeia o olhar. Encandeia mas não fere. Sou daquelas que aprecia olhá-lo de frente, mesmo que me digam que posso ficar cega! Será mesmo verdade?
Apareço-te, então, leitor@. Perguntas porquê; consigo vislumbrar um som distante da tua voz mais ou menos rouca, mais ou menos sensual, mais ou menos fanhosa. A minha é assim que está neste momento. Constipada, muito ranhosa, desde há pelo menos sete dias e sete noites. Deve ser pela ausência do meu namorado. Resolveu ir para o Chile. Sem mais nem porquê. E tu leitor@, também te parece que foi uma atitude descabida? É que tu, leitor@, não sabes um pormenor.
Dias antes de ele se decidir a ir para o outro lado do Atlântico, pediu-me em casamento! É verdade. É verdade também que tínhamos bebido um pouco. Vá, um pouco se calhar é redutor. Uma garrafa de vodka e algum sumo de limão à mistura. Não nos ficámos por aqui. Uma amiga nossa muito louca – é o melhor adjectivo, acredita, leitor@ – esteve na Tailândia e trouxe-nos, como recuerdo, balões para fazer rir. Apesar da longa distância percorrida até casa, os balões ainda vinham cheios de um hélio que era muito mais que hélio. Claro que neste momento estás a duvidar do que eu te digo. Dou-te mais um pormenor: a minha amiga muito louca – vou manter o atributo para que saibas a quem me reporto – decidiu fazer a viagem de volta por terra: comboios, autocarros, boleias... Às tantas terás razão na dúvida que te assalta como a mim também, e ela terá adquirido mais balões pelo caminho.
De qualquer modo, como te dizia, o meu namorado, ao fim de uma garrafa de vodka e dois balões que fazem rir – eu acompanhei – fez-me um pedido cerimonioso: “querida Margarida, és a mulher da minha vida! Quero passar o resto dos meus dias contigo: casas comigo?!” O meu rosto ébrio terá mudado de forma diversas vezes. Era o primeiro pedido de casamento que escutava. Tendo em conta que nenhum de nós estava sozinho em si, pensei que a resposta também não seria apenas minha: adiei delicadamente para o dia seguinte, quando a ressaca se curasse.
Ressacados, estremunhados, esquecidos das horas antecedentes: assim despertámos na tarde seguinte. As nossas caras estavam um pouco diferentes e os corações transmudados, pelo álcool ingerido e ainda em processo de destilação. As mãos tocavam-se amorosamente. Era o que a minha pele me sugeria. Arrepiada. Em pele de galinha. Não percebia aquela sensação: até que olhei em redor pelo quarto – também em recuperação pelo torpor noctívago – e era o frio que se instalara pela janela que ficara entreaberta!
O meu namorado também se ressentia e as suas mãos começaram a gelar inadvertidamente, ao ponto dos dedos ficarem todos brancos. Pensámos que poderiam cair, como acontece aos alpinistas que chegam ao Evereste: só podíamos estar sob o efeito das substâncias tomadas na véspera.
Fomos tomar banho. Não é necessário dar-te muitos pormenores do que se passou debaixo da água quente, leitor@. As cabeças ainda pesavam sobremaneira. Nada a relatar, portanto – em relação ao que esperavas ler. Ainda assim, talvez seja melhor dar mais um esclarecimento: sou uma pessoa muito reservada, a roçar o pudico. Como tal, mesmo que nos estivéssemos enrolado e afogado na banheira não estaria aqui a fazer esse tipo de revelações. Além disso, não sei a tua idade, nem tão-pouco os padrões de conduta por que te reges: não quero ofender os teus olhos com cenas mais ou menos lascivas – se as houvesse, reforço.
Isso seria mais tarde. Nessa mais tarde de um Domingo qualquer chuvoso – houve muitos em Janeiro –, não sucedeu o que eu esperava. O melhor é mesmo não esperar nada: evita-se o desapontamento e o que quer que aconteça é bem-vindo. O que não ocorreu – também tu, leitor@, quererás saber se o pedido foi renovado. É que o meu querido, amado, adorado namorado ficou momentaneamente amnésico. O que dá sempre jeito, refira-se. Dois dias depois estava a fazer uma mochila e abalava para Santiago do Chile. Não acho isto nada normal!

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