Uma incursão pela feira da Vandoma







30 de Novembro, Sábado, 2013 
Despertador às cinco da manhã! Preparei-me e saí de casa na esgalha para aquecer. Cinco graus! Destino: Feira da Vandoma. O mesmo programa do Sábado passado. A esperança é a última a morrer, por isso quem sabe... pensei.
        O caminho sob o céu ainda nocturno, muito estrelado com a lua em quarto minguante. Em noite pouco cerrada pela iluminação da cidade alcancei a feira em cinquenta minutos. Em ritmo oposto calcorreei a feira de olhos pregados nas bancas. Algumas bikes – nenhuma a minha!
A dada altura dei-me conta que estava num lugar extraordinário, onde se vendem coisas extraordinariamente velhas, extraordinariamente antigas e mesmo extraordinariamente estranhas. E comecei a desfrutar. O céu também se ia transformando em manhã... não tão lentamente como desejaria (?). Estava ali. Apenas na feira.
Ia parando em algumas bancas – uma delas chamou-me a atenção: os cadernos diários da firma. A grelha para o horário escolar. Terei tido alguns semelhantes há trinta anos! Procurei debaixo do monte desses cadernos (eram mais de dez) se estariam ali também as sebentas. A última que tive foi no ano de estágio – 1995/1996. Ainda guardo as calinadas registadas do meu grupo. As reuniões de trabalho eram aí anotadas, em especial os disparates que dizíamos entre nós – éramos quatro a dar aulas à séria pela primeira vez. As reuniões no café Pedra Branca – próximo da escola Rodrigues de Freitas, onde decorria o nosso estágio. O local onde algumas páginas se transformaram em memórias sorridas.
        Nessa banca, na feira da Vandoma, não havia sebentas. Continuei devagar pela feira: local de livros também. Tive vontade de comprar o ‘Comboio Nocturno para Lisboa’ de Pascal Mercier: um dos livros que me marcou profundamente em 2010. Uma leitura escrita inacabada... era dele o livro. Hoje não comprei. Coibi-me. Não preciso. Posso ler na biblioteca do Porto. Não há necessidade de gastar em livros que já li e que estão disponíveis gratuitamente – e que agradeço! Isso é o que tenho feito cada vez mais: requisitar os livros para ler em casa. Como ‘A confissão de Lúcio’, de Mário de Sá-Carneiro. O livro do momento. Uma prosa poética que estou a adorar.
      Fui seguindo devagar por entre as coisas velhas e pouco visíveis. As lanternas eram muitas. As pessoas já sabem para o que vão, preparam-se! A noite era cerrada: tal qual Banguecoque! Só que na capital asiática a(s) feira(s) era(m) diária(s). E a estranheza do que se vendia fez-me ‘postar’ uma fotografia com uma caixa de dentaduras... usadas. Passeios deliciosos em Banguecoque. O de hoje também. Ao contrário do que imaginava (não imaginava muito: não criei expectativas), o sentimento de insegurança não me acompanhou em momento algum.
     Muita gente pobre a vender o pouco que tem ou encontra na rua. Muita gente a comprar com o pouco que tem. Muita gente pobre e muita gente não tão pobre. Pessoas como eu, quem sabe à procura do que se lhes roubou. Outras pessoas que sabem que aí encontrarão o que precisam muito (ou nem por isso) por tuta-e-meia. Foi por tuta-e-meia que não resisti às sebentas! Encontrei a famigerada sebenta noutra banca. Só havia três – cada uma a vinte cêntimos. Quis pagar com uma nota de dez euros.
     A rapariga, que tinha o seu estaminé junto a um dos inúmeros carros com a mercadoria, não tinha troco. Uma nota de dez. Uma miragem para os feirantes que eu e a Ana – a vendedora das sebentas – íamos interpelando para o troco: “oh filha, eu se tivesse esse dinheiro casava-me!”; “ainda não me estreei...”. Eu e a Ana fomos entabulando conversa até ao café onde finalmente se concretizou a venda. “Pode ser que volte a ter mais sebentas. Se eu não estiver, está o meu namorado” – a Ana vendedora, que entretanto dissertou vagamente: “o meu namorado... não é meu nada. Não o posso meter no bolso e trazê-lo comigo como se fosse um objecto... não gosto nada desses rótulos sociais”. Sorri em silêncio e fiquei com vontade de retornar à feira da Vandoma. Trouxe três sebentas. Talvez precise de mais (quero precisar!).
      Às sete horas decidi-me para casa. O céu entrava no seu azul da manhã e o sol começava a subir. Por esse motivo optei por um caminho diferente na volta: um pouco mais longo, mas muito mais aberto: mais brechas entre os prédios para observar a ascensão dourada.
         No caminho vivi um episódio bizarro. Fez-me pensar se a escolha do trajecto fora realmente uma escolha minha – estivesse eu atenta. Parei uns instantes para apertar os atacadores das botas de montanha e reparei num smart parado num semáforo. A música no tom que caracteriza as minhas poucas viagens de carro chamou-me a atenção.
Escutava a alguma distância ‘you saw the whole of the moon’... e continuava a escutar. Pareceu-me que o carro estava há demasiado tempo à espera do sinal verde. Aproximei-me. O homem adormecera! Não sei porquê, fiquei preocupada. Talvez pelas cenas reminiscentes do cinema: carros ligados e fechados em garagens... o homem adormecido estava ali no carro que trabalhava, fechado! Muito adormecido! Estive seguramente cinco minutos bem contados a bater na porta, na janela... e nada. Outro motorista parou. Um outro homem e uma outra mulher na rua observavam-me: “O que vale é que a senhora reparou” – isto, depois do smart ter arrancado... senhora?? Falavam de mim depois do homem ébrio – ainda! – arrancar com a janela aberta: minha sugestão.
      Consegui acordar o homem de verde que olhou para mim como quem diz: “onde estou? Quem é esta mulher a acordar-me?... Acordar-me???” Perguntei se estava bem. Que sim, que não... Ainda lhe perguntei se queria que o levasse a algum lado... “não... está tudo bem”. É certo que não se tenha apercebido do que aconteceu e é muito pouco provável que se venha a recordar...


2 comentários:

  1. qualquer dia ainda vou ler cronicas tuas em jornais ou revistas gostei muito desta, se caracterizares mais personagens e enquadrares o casario então estaria lá tudo o que é importante sobre a feira de vandoma; era artigo para ser publicado, parabéns.

    ResponderEliminar
  2. muito simpático :) obrigada pelo apoio e incentivo

    ResponderEliminar