Corte no pé - II



Sigo-me no corte do pé. A João e a Fátima queriam saber mais; o Jorge ficou curioso em relação a alguns pormenores. Posto isto, senti como que uma necessidade de me continuar. Coisa do ego, certamente. Por mais que digam que a sua ausência é um dos fundamentos para a transcendência, a sua desconstrução é com efeito algo muito difícil de conseguir. Falo por mim. Por mais que tente... Tenho a impressão que isso passa primeiramente pela aceitação de quem somos e da vida tal como é, bem como pela compaixão – em relação a mim mesmo e só então em relação ao outro. Tenho ainda um longo caminho a percorrer...
O corte no pé. O chão rapidamente ficou lavado e por incrível que pareça a cicatrização foi quase tão veloz como a limpeza do soalho. Isso deve-se, diz a minha namorada, à dimensão do golpe. No dia do apagão acabei por telefonar a alguém. Precisava de ajuda. Apesar de ser orgulhoso, estou a aprender a pedir ajuda quando necessito. Foi o caso: chamei a minha namorada. O meu tom de voz assegurou-lhe que eu estaria entre a vida e a morte. Acorreu de imediato.
A luz entretanto reacendeu-se. Enquanto eu estava ao telefone à janela, percebi-me novamente observado. Como se sabe, quando estou em casa, a nudez é o estado que me faz sentir ligado às origens. Esse estado foi habilmente fotografado nessa noite pelos mirones alheios. As vizinhas da frente, se forem fãs do facebook, já me devem ter partilhado. Ora eu, tão avesso a essa rede social, já lá devo estar todo escarrapachado. Isso da (não) privacidade tem muito que se lhe diga – não me alongo.
A minha namorada tocou à porta. Abri. Ficou admirada. Fiquei admirado. Os dois admirados frente-a-frente. A luz acesa mostrava-lhe o chão salpicado de pingas vermelhas. O pé, segundo ela, tinha um pequeno corte. Bastava desinfectar com água oxigenada – o que gentilmente fez – e colocar um penso adesivo – o que também carinhosamente fez.
O seu rosto de feições delicadas sorria compassivamente perante a minha dor calcinante. Claro que isto daria para desenvolver uma das inúmeras teorias que defendem as diferenças de sentir entre homens e mulheres. Estou certo que os elementos do sexo feminino têm muitas histórias. Aliás, a minha namorada fez questão de avivar-me a memória. Uma vez queixou-se de estar com uma gastroenterite e de eu lhe ter dito que estava muito ocupado nos meus trabalhos. Foi ela à farmácia. Entretanto, vomitou à minha frente. Devia ser sério: é possível que fosse mais que uma dor de barriga provocada pela ansiedade feminina.
De qualquer modo, a sua compreensão é inesgotável e passou essa noite comigo. A minha namorada, não o Martin! O Martin...
Voltei a vê-lo uns dias depois. Vestia ainda as roupas que lhe providenciei. Tomámos café numa confeitaria. Contou-me a sua novidade: ia voltar ao Chile. Soubera da morte de um familiar querido. De quando vez acede à internet em locais públicos e assim ficou informado. Não tinha vontade de regressar, mas sentiu um apelo – além disso ofereceram-lhe a viagem. Trocámos endereços electrónicos e ficou a promessa de continuarmos em contacto. 
É provável que nos voltemos a ver. Quanto mais não seja porque quero efectivamente conhecer o seu país... em breve.

2 comentários: