Bailando em Salento

Foto de Todd Breese

            Conheci Todd em La Paz, Bolívia, em Novembro de 2014. Divertimo-nos muito durante os dias que aí passei, compartilhando experiências, momentos, juntamente com Ron – um americano com quem partilhávamos o dormitório no hostal Pirwa.
            A descida da Estrada da Morte, de bicicleta, foi o acontecimento que nos aproximou. Os dois, eu e Todd, sempre em busca de novas e excitantes experiências – acrescente-se, a busca de encontros com pessoas estimulantes. Era o caso de Todd – a pessoa que me provocou com as suas fotografias de Salar de Tara, impelindo-me a viajar até ao Deserto de Atacama, não desde Arica, como inicialmente pensara, mas indo directamente para San Pedro de Atacama.
            Viajámos juntos para Uyuni onde, depois de passear pela vila onde o Rally Dakar levanta poeira, nos despedimos num forte abraço, sussurrando: até breve. Todd seguiu para o Salar de Uyuni – um dos locais que ainda tenho a expectativa de ir; haja oportunidade e, com toda a certeza, a agarrarei de peito e braços abertos, não fossem os testemunhos que fui escutando tão peremptórios quanto à beleza e paz desse lugar. Apanhei o autocarro para o Chile com a sensação de estar a viver mais um sonho a cumprir-se... e com a vaga impressão que me encontraria novamente com Todd, algures na vastidão do mundo.
            Pouco mais de seis meses depois, o pressentimento tornou-se realidade. Durante os meses em que pairei no Porto e arredores, íamos trocando correspondência no mundo virtual. Em Maio seguinte aterrei na Colômbia – o país onde Todd se encontrava!, dando continuidade ao seu périplo pela América Latina. Este continente provoca, seguramente, uma atracção indizível aos ‘estrangeiros’. 
         Depois de várias semanas em locais distintos, o encontro realizou-se em Salento – na zona cafeeira da Colômbia. Uma escolha criteriosa. Ambos sabíamos que era um dos lugares mais bonitos desse país quente, sendo manifestamente obrigatório, na nossa perspectiva, uma visita a uma Finca de Café, se possível em boa companhia. 
         Parti de autocarro desde Bucaramanga, a cidade mais limpa da Colômbia, dizem, na qual tive o privilégio de conhecer uma mulher extraordinária, uma americana que viajava há dois meses de bicicleta. Ao fim de catorze horas, o abraço desejado numa guesthouse de Salento.
            Foi um fim-de-semana memorável. Salento proporcionava um cenário extraordinário com os seus muitos verdes como pano de fundo, no Valle de Cocora. Uma caminhada de várias horas conduziu-nos a um santuário de aves exóticas, onde os colibris de todas as cores, com os seus matizes de azul me ofuscavam o olhar. Tão pequeninos e esvoaçantes, os colibris coloriam as árvores verdejantes de copas frondosas, fazendo-as rumorejar de felicidade. As flores de todas as cores, muito vívidas, por que íamos passando: mais um elemento irresistível. Escutava algo que me exortava a tocar nas suas pétalas macias, cuja voluptuosidade inebriava o mais desatento dos mortais. 
Foto de Todd Breese

            Esse passeio culminou num prado habitado de palmeiras tão altas que me faziam acreditar que as suas folhas roçavam as nuvens. Corremos, como crianças, atrás do nada. Corremos infantilmente, brincando nas tonalidades palpáveis e divinas que os olhos captavam, envolvendo todos os sentidos. O vale escorria por entre os dedos e seguíamos extasiados pelo silêncio humano. Despertámos, enfim, do idílio da natureza perfeita, retomando os caminhos para a vila, onde as ‘calles’ povoadas de casas térreas alegremente pintadas nos reavivaram os sentidos. Estávamos vivos e gratos. A comemoração era imprescindível.
A noite caiu e as ruas encheram-se de gente. Sábado à noite convidava à festa e nós facilmente sucumbimos à espontânea boa-disposição das gentes colombianas. A ‘aguardiente antiqueño’  encorajou outros mecanismos internos. ‘Bailando’, do Iglesias mais novo, foi a banda sonora perfeita para dançar alegre e ebriamente na praça.
Foto de Todd Breese
            O fim-de-semana terminou com uma visita a uma das Fincas de Café. Guiados pelo aroma de um dos melhores cafés do mundo, experienciámos o ciclo de produção dessoutro estimulante dos sentidos, fotografando e rindo com os sabores dos grãos ainda amargos.
Doce é a memória do australiano a viver a sua vida encantada. É provável que, mais cedo que mais tarde, a vida nos propicie um novo encontro, para assim termos ocasião de partilhar o que entretanto aprendemos desde então. Confio que sim. Muito obrigada Todd!



Maio, 2016
Matosinhos, Portugal

Mergulho no teu olhar ::: I dive into your eyes







Mergulho no teu olhar, como quem mergulha num abrigo desconhecido. O teu silêncio brilhante mostra-me a vertigem do desconhecido.
Mergulho no teu olhar, como quem mergulha na vastidão do espaço vazio. Fitando as esmeraldas cintilantes e quase paradas no teu rosto, apresso-me a prender o instante entre os dedos, antes que a sombra as ofusque.
-       Estou a morrer?
-       Não!
A queda no vácuo: um salto material que me faz duvidar se ainda respiro.
-       E tu, estás a morrer?
-       Não!
Adormeço dentro de ti, num silêncio apenas quebrado pelos teus olhos mudos e luminosos.
Abandono-me à gravidade e experimento a distância dissipar-se. E, como uma borboleta, poiso nas tuas pétalas, como quem paira. Numa espécie de ignorância – só possível pela curiosidade infantil de quem voa... acordada.
Estamos vivos, Màr?
  

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I dive into your eyes, as one who dives into an unknown shelter. Your bright silence shows me the vertigo of the unknown.
I dive into your eyes, as one who dives into the vastness of the empty space. Gazing the sparkling and almost quiet emeralds of your face, I hasten to hold the moment between my fingers before they’re obfuscated by the shadows.
-       Am I dying?
-       No!
Falling in vacuum: a material leap that makes me wonder if I’m still breathing.
-       And you, are you dying?
-       No!
I fall asleep inside of you, in a silence broken only by your mute and sparkling eyes. I abandon myself to gravity and experience the distance vanishing. And, like a butterfly, I land in your petals, as if floating.  With a sort of ignorance – only possible by the childish curiosity of one who flies… awake.
Are we alive, Màr?


11 de Maio, 2016
May 11, 2016

Matosinhos, Portugal



O meu nome é Prince




            A sério? Oh... No dia 11 de Janeiro, David Bowie também se despedia. De géneros completamente distintos, estes dois músicos fizeram e continuam a fazer parte da minha playlist.
            Cremosa, a voz de Prince, foi com uma chuva de púrpura que muitas vezes as lágrimas caíram e ainda ameaçam saltar cada vez que escuto, como neste momento, essa canção, que me toca para além do sentido da audição. A minha modesta homenagem a este cantor, cuja altura demonstra que os homens não se medem aos palmos. E Prince era e será sempre uma referência musical, disso não tenho dúvidas, para aqueles que, como eu, se deixavam abraçar simulando uma dança ao som das suas músicas mais lentas, como Purple Rain.
            Purple Rain, Purple Rain, Purple Rain – eu e a P, a pedirmos na primeira linha do público no seu primeiro concerto em Portugal, no grande estádio de Alvalade. Foi em 1993.
Esse era o segundo concerto em quinze dias, nesse mesmo estádio – uma verdadeira catedral, ah, ah. O primeiro foi a 1 de Agosto – Sting, o cantor que nos mereceu e merece igualmente grande admiração. Outro género. Gostos eclécticos, alguém criticava. E?
            Para o concerto de Sting não fomos preparadas. Ficámos nas bancadas. Tão longe! Tão longe e quando o britânico tirou a camisola eu e a P, histéricas, pedimos ao vizinho os binóculos: “por favor, só um bocadinho, para vermos melhor o six pack”. Não sei se era o caso, mas não há milagres e claro que rapidamente tivemos de devolver as lentes e cingirmo-nos a escutar. O que já de si era extraordinário. Em particular quando tocou e cantou ‘Fragile’.
            Este tema é, na realidade, o ponto de partida para a amizade que começou com uma animosidade palpável. Eu e a P conhecemo-nos meses antes de ficarmos na turma A do primeiro ano da faculdade. Como somos as duas Ana, ficámos no mesmo grupo aquando dos pré-requisitos para entrar na então FCDEF. Esses testes físicos que contavam 50% para a média de entrada, incluíam uma série de esquemas na Ginástica, entre os quais um esquema de corda no tapete. Ambas escolhemos a versão instrumental ‘Fragile’ para a corda.
            A cassete (sim, cassete) parou a meio da minha prestação – quero crer que não terá sido por qualquer ordem telepática daquela que se seguiria: a P, ela mesma, com ‘Fragile’, essa mesma.
            Esta aversão rapidamente foi substituída no início das aulas. A literatura, o cinema e a música sempre foram fontes de encontro entre as duas. Consequentemente, no final do primeiro ano da faculdade passei uma semana fantástica com P em Lisboa, onde então vivia. No final do segundo ano, convidou-me a passar duas semanas no ‘seu’ monte em Mértola. Antes de descermos para terras alentejanas e nos deliciarmos com os mergulhos na Mina de São Domingos, deixámo-nos enlevar frágil e docemente pela voz do inglês.
            Terminámos essas duas semanas em cheio na então grande catedral – o estádio de Alvalade. Ele há gostos para tudo, é sabido. E, tal como na religião, também no futebol não há discussão. No dia 15 de Agosto tínhamos aprendido a lição e foi com várias horas de antecedência que assentámos arraiais à porta do estádio.
            Quando os portões abriram corremos desvairadas. Objectivo: ficar o mais próximo possível do palco. Objectivo cumprido, não fôssemos nós de desporto: primeira linha do público. Entre nós e o palco apenas a distância de segurança marcada pelas grades. E ali ficámos outras tantas horas à espera. À espera que Prince descesse do seu helicóptero.
            Quem lá estava, certamente se recordará que foi muito bom ver e escutar Prince ao vivo e a cores. Quem lá estava, certamente se recordará que antes da actuação do cantor, levámos com mais de uma hora com a banda que o acompanhava à época: The new power generation.
            A hora que Prince esteve no palco inflamou e encantou com músicas como ‘Kiss’ e ‘When doves cry’ – as minhas preferidas. Com ou sem Sheena Easton, ‘1999’ e ‘U got the look’ juntam-se ao rol das minhas preferências. Tantas e tantas que continuam a tocar naqueles que gostam de Funk e Soul – há quem diga que Prince era o melhor, senão o Rei. Rei ou não, pertencia ao reino dos mortais e partiu hoje.
Não obstante, parece-me que Prince, como todos aqueles que nos são queridos, perduram em nós. A sua centelha flutuará e confio que alguma da sua luminosidade permaneça em mim. Afinal, o que sou hoje também resulta daqueles que passaram por mim e continuam a tocar-me, como é o caso da minha querida amiga P, a quem agradeço profundamente tudo o que temos partilhado ao longo destes 25 anos (!) e que certamente continuaremos a partilhar... Obrigada querida amiga.

21 de Abril, 2016
Matosinhos, Portugal

O amor está no ar...*



Fotografia de Álvaro Martino

Maio é o meu mês preferido. Por esta altura é habitual que a Primavera se sinta mesmo primaveril. Os dias estão cada vez maiores e a temperatura vai aumentando, mesmo que a sabedoria popular nos alerte que em Maio, cerejas ao borralho. E esse fruto, cuja cor rubra me suscita devaneios quase luxuriosos, é um dos meus favoritos. Por vezes, até evito comer a primeira cereja. É que atrás de uma, vem outra e mais outra e mais outra, e ainda mais outra. E os caroços vão-se acumulando, nem sempre ao borralho.
Nos montes e vales, nos parques e jardins, os malmequeres e as margaridas (as amarelas, as minhas flores predilectas) abrem as suas pétalas, ao mesmo tempo que o orvalho matinal se dissipa com os raios do Sol cada vez mais altos. Nos ramos das árvores mais verdes e frondosas, escutam-se trinados e cantorias flamejantes. O amor está no ar.
No ar, as andorinhas esvoaçam alegres, confirmando uma Primavera exuberante, que se patenteia nos namorados de fresco. Talvez inflamados pelo canto harmonioso da natureza, ou, quem sabe, atingidos pela seta do cupido.
Ao fazer as contas, comprovo que os meus pais também terão sido tocados pelo cupido. A minha data de nascimento assim mo assevera.
Mas a minha predilecção por este mês deriva, igualmente, do facto de ter sido agraciada pelo nascimento do meu mano. As nossas zaragatas na infância deixaram marcas indeléveis no corpo, que hoje são recordadas como fios de união – a admiração é mútua e não é raro que o digamos: há que o afirmar aberta e explicitamente. E se o leitor ou leitora me permite, aproveito este espaço que me é concedido (muito obrigada!) para dar os Parabéns ao Miguel. No dia 23 comemora mais uma Primavera.
Enlevada pelas cores, sons e odores primaveris, dou por mim nas planícies do Alentejo. De todas as vezes que estive em terras alentejanas, os dias que passei numa Primavera, em Maio, são os mais vívidos na minha memória.
As planícies e montes tapeados de amarelo, sob um céu azul resplandecente assomem, sem que tenha necessidade de recorrer às fotografias tiradas em Elvas, Estremoz e lugares afins.
Sem dúvida que Portugal, com as suas estações (ainda) bem demarcadas e perceptíveis, me oferece uma imensa beleza natural, que me envolve e rodeia, abraçando-me como quem beija. Basta, para isso, que os olhos se abram, os ouvidos escutem, o olfacto se desperte e a pele se desnude. Os sabores, esses, estão em casa.
De todos os restaurantes em que me sentei pelo mundo fora, não há nada, nem ninguém que iguale a comida da Lola: a minha mãe, pois claro! Quem já teve os pés debaixo da sua mesa, sabe que não estou a exagerar. De qualquer modo, no primeiro Domingo de Maio, fazemos sempre questão, eu e o meu mano, de a convidar para almoçar fora. Afinal, mãe é mãe. E a minha é, sem dúvida, a melhor do mundo!

*Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro

Na cidade dos mortos - Tikal



Entrei na cidade dos mortos, lado a lado com Christine. O calor que nos envolvia na floresta tropical de Tikal confirmava-nos que ambas estávamos bem vivas e em boa forma para descobrir, na sombra irrecuperável, o possível da profundidade cultural de um povo tão inigualável, quanto misterioso.
Tikal é um dos complexos funerários mais importantes desta cultura, e de tal modo sofisticada, que me fez voar desde a Colômbia até à Guatemala. Ao fim de dois meses nesse país, que tanto me encheu, senti uma espécie de chamamento para o desconhecido mágico e mitológico do mundo Maia. Muito ficou, ainda, por conhecer em terras de Gabriel Garcia Marquez... Quem sabe surja uma nova oportunidade.
Foi em Villa de Leyva (Colômbia) que comprei a passagem aérea para a Guatemala com o objectivo de visitar Tikal. Para mim, era sem dúvida obrigatório que a visita a este parque, povoado de templos-pirâmide de pedra, de animais mais ou menos visíveis como os ‘monos’ e jaguares secretos, se realizasse com o devido acompanhamento. Como tal, em Flores contratei o serviço de uma agência, para assim ser integrada num grupo com guia. E que grupo... também o de Christine! Ao receber o seu sorriso sereno e cintilante, adivinhei que, independentemente, da qualidade do guia ou das informações e histórias, o dinheiro havia sido muito bem empregue.
A visita começou com o guia a descrever ao grupo a ressonância arquitectónica da cidade, através da explicação da maqueta na entrada. As visitas guiadas tendem a ser muito interessantes e elucidativas, em particular em lugares como este, cujas ruínas descontextualizadas pouco ou nada sugerem (falo por mim...). Não obstante, nem sempre são fáceis de seguir e de lhes prestar a atenção devida. Sobretudo pela companhia com que havia sido agraciada. Para além de Christine, estava uma alemã – a Miriam – que conhecera dias antes em Semuc Champey. Novos encontros, novos acasos... A empatia foi igualmente fácil com Bob, um israelita que me chamou a atenção pelo calçado. Trazia umas sapatilhas de trail (ainda não participei em nenhum, mas pelo tanto que tenho escutado pressinto que, mais dia menos dia, isso venha a acontecer). Com Bob, a conversa correu imediatamente para as corridas e para outros lugares (por acaso ou não, voltámos a encontrar-nos ainda nesse dia em Flores e dias mais tarde numa ilha do Belize – Caye Caulker!).
Antes disso, pela manhã, as conversas que se iam desenrolando enquanto caminhávamos pelo xibalba – o termo para designar o lugar dos mortos – não nos impediram de escutar as explicações do guia sobre a existência dos calendários Maias. Plural, fiquei então a saber. Os Maias desenvolveram quase tantos calendários, quantas as actividades que integravam o seu modo de vida. Um calendário solar para o ano ritual, um calendário do ciclo lunar, um para a contagem dos dias, entre outros. Nos códices estão descritas todas estas informações e muitas mais, como a relevância primordial das árvores.
A árvore do Mundo, ou a árvore cósmica. Foi numa dessas árvores que me encostei durante algum tempo. As minhas mãos sentiam a superfície acinzentada e levemente rugosa com o intuito de captar alguma magia – afinal a árvore era o eixo central daquele mundo fabuloso, impregnado de alegorias. Através das raízes da árvore cósmica, os Maias ligavam-se ao mundo dos mortos, ou inframundo. O tronco estabelecia a ligação com o mundo terreno. A união com o mundo celestial era possível com os ramos; de braços erguidos como quem reza – assim cantaria Florbela Espanca.
Mas as árvores eram ‘apenas’ uma das incontáveis e maravilhosas atracções de Tikal. Quando alcançámos a praça central e após mais explicações do guia, passeámos tranquila e atentamente pelo espaço milenar, onde facilmente se podia observar o quão avançada e complexa era a compreensão e vivência do cosmos, por parte desta civilização, que me atraía a cada instante pela sua sabedoria, ao mesmo tempo que me causava questionamentos devido a certas práticas. Nomeadamente, os sacrifícios de animais e mesmo de pessoas com o propósito de apaziguarem os deuses, entre os quais aqueles que lhes garantiam boas colheitas de milho – a base da sua alimentação.
Essas práticas de outros tempos não me impediam de reconhecer a complexidade do seu conhecimento da astronomia e matemática, a partir do qual construíram os templos-pirâmides de forma calculada e simbólica. As pirâmides, para além de representarem as montanhas – para si sagradas –, eram templos para os cultos e rituais inerentes à organização do seu quotidiano, repleto de celebrações e rituais. Estas construções, cuja inclinação pode chegar aos setenta graus, eram igualmente monumentos, nos quais se ‘alojavam’ criptas extraordinariamente trabalhadas, para os soberanos defuntos.
Foi numa dessas pirâmides da praça central, dedicada ao Sol, que eu e as duas alemãs tirámos uma fotografia para a posteridade. Ainda nesse dia partilhámos essa e outras fotografias, bem como histórias e experiências de viagens. Combinámos encontrar-nos na vila de Flores. Ao fim da tarde, após o merecido duche e descanso, na varanda de um bar guatemalteco saboreámos um ‘mojito’ – que Miriam fez questão de oferecer: muito obrigada! Por acaso, ou não, o israelita passava na rua; juntou-se a nós. E assim tivemos oportunidade de confirmar que estávamos ali não por mero acaso; sentíamos que aprendíamos uns com os outros. Na verdade, fiquei com a sensação que esse encontro não terminou. Estou certa que se tivermos algo mais a partilhar entre nós, a vida tratará de nos providenciar novas e adequadas circunstâncias. E assim é!


Abril, 2016
Matosinhos, Portugal

Nota: Como se deve calcular, não tirei apontamentos durante a visita (apesar de vontade não faltar). A visita ao museu dos Maias em Mérida, algumas semanas depois, estimulou ainda mais o meu interesse pela cultura Maia. Não obstante, é de referir que foi na biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, que confirmei e recolhi informação para este texto.

De Lanquin a Tikal




Cheguei a Flores, Guatemala, desde Lanquin – a vila mais Maia onde estive até ao momento. Em Lanquin, os locais falavam todos quishé entre si. A única palavra que compreendi, numa das vezes em que fui comprar pão, foi ‘gringa’. A vendedora reportava-se a mim, enquanto eu esperava, mais ou menos pacientemente, observando-a a atender uma série de pessoas à minha frente. Até que a paciência se esgotou quando aquela palavra se insurgiu como um espirro sobre mim. “Desculpe, mas não sou ‘gringa’ e se não se importa também sou cliente e gostava que me atendesse” – escutei-me numa hostilidade irónica e com voz enfática, no espanhol mais elaborado que me era possível à época – já estava há dois meses e meio em modo hispânico, como tal, sentia confiança até para discutir. Claro que a minha pretensão em aprender a saber esperar ficava em causa. Não obstante, uma coisa é ser tolerante, outra é permitir que gozem na minha cara. Ainda muito a aprender, já se sabe...
Tendo em conta o lugar tão fora de circulação em que me encontrava – a viagem até Lanquin mostrara-me a lonjura de tudo e mais alguma coisa –, achei que o melhor era repetir o modo de deslocação desde Xela: em shuttle. As mais de vinte horas que os diversos chicken bus me ‘obrigariam’ a experimentar, contrastavam com as teóricas nove horas que este transporte privado me prometia. Na Guatemala, apesar do valor escandalosamente mais elevado, esta é a opção mais frequente entre os estrangeiros, nomeadamente Marco e Daniela. Um casal de italianos, que, tal como eu, tinham passado uma noite em Semuc Champey – um lugar que de tão belo, merece um postal por si mesmo.
Flores era então o nosso destino seguinte, de onde saem as visitas a Tikal – a maior das cidades Maias, na região de Petén. Isso implicava atravessar quase metade da Guatemala; daí que me tenha rendido ao shuttle. Às oito da manhã, as minhas coisas estavam na carrinha de nove lugares. Aproveitava a espera pelos demais passageiros para observar, divertida, a conversa animada entre o casal de italianos e um israelita, aquele que os trouxera de Semuc Champey nessa manhã. O israelita vivia na Guatemala; era o proprietário do alojamento onde os italianos haviam pernoitado, para desfrutar daquele outro paraíso de águas cristalinas.
A minha escolha foi outra. Regressara de Semuc Champey na manhã anterior à boleia, depois de mais de uma hora em pé a aguardar um ‘colectivo’ que nunca chegou a aparecer. Felizmente, uma família guatemalteca apercebeu-se da minha espera em vão. De pé, na sua carrinha de caixa aberta e recebendo o pó da estrada de terra batida durante mais de hora e meia, cheguei a Lanquin, onde, ao apear-me, os mais jovens da família fizeram questão de tirar fotografias com a estrangeira com pele da cor de argila - noutros tempos de canela; naquele dia era mesmo uma camada de pó, que um duche de água morna rapidamente resolveu.
No dia seguinte despedia-me da vila Maia, sorrindo com o à vontade com que Daniela conversava, em espanhol arranhado e mesclado de inglês, com o homem israelita. Reporto-me a este casal simpático e muito gentil, pois este foi o primeiro de diversos encontros que partilhámos. Viviam há um ano na Cidade do México. Marco, professor de inglês na capital mexicana. Daniela, em ano sabático para acompanhar o marido e aproveitar o tempo para aprender espanhol numa das universidades da cidade.
Entre nós, alternávamos entre o inglês e o espanhol. Quando, por acaso, nos encontrámos posteriormente em Caye Caulker, o inglês era o idioma preferido, até pelo local. Nessa ilha ficámos definitivamente ‘amigos’ através da rede social mais conhecida. Umas semanas depois, quando me abriram a porta de sua casa, tinham uma chave para me emprestar enquanto eu desejasse apreciar a cidade, que dizem ser uma das perigosas do mundo. Além da chave, Daniela preparara o segundo quarto da casa para meu conforto! Muito obrigada!
Antes desse novo abraço, a partir do qual a amizade se tornou mais quente e vivida que numa rede social, viajámos bem-dispostos desde Lanquin, contemplando a paisagem extraordinária que a estrada até Flores nos proporcionava.
Resgato algumas fotografias para avivar a memória. Faz parte do processo recordatório, é sabido. Apesar da fraca qualidade que o iPad concede – aproveito a ocasião para justificar a qualidade dúbia das fotografias que publiquei até ao momento; confio que me seja dado esse desconto –, os pêlos ralos, e às vezes loiros, dos braços reagiram reavivando a emoção sentida, durante as largas horas na carinha com pessoas de diversas partes do mundo.
Para além do casal de italianos e viver no México, destaco o casal de argentinos: a Valentina e o Marcelo. Bailarinos a viajarem há pelo menos um ano, pagando as suas despesas com as mandalas de arame do Marcelo e dos acessórios femininos de Valentina – a quem comprei um crachá de madeira com o desenho de um golfinho azul. Dois dias depois desapareceu... Confirmando-se a ideia de que mais é, com frequência, menos. Valeu pela ajuda ao casal. Estavam determinados a avançar nas suas andanças apenas e somente com o que obtinham da sua manufactura.
Foi com os dois argentinos que segui em busca de alojamento em Flores – o casal de italianos estava de férias, como tal o seu orçamento era substancialmente distinto do nosso. Encontrámos um sítio muito económico, que se revelou ainda mais acessível quando descobrimos que no terraço se podia dormir em palapas. Para mim, mais uma estreia no que a camas e dormidas diz respeito. Se tal poderia significar uma interrupção na continuidade do tempo ou do sono ele mesmo, revelou-se antes uma excelente opção. Com efeito, dormir num nível mais elevado sob um tecto de palha seca, não só me proporcionou uma vista sobre o lago, como ainda me salvou de uma noite sob o ar condicionado – um dos aparatos modernos que mais me afecta. Não é raro ficar com uma tosse que assusta aqueles que não me conhecem. Também não é raro que aqueles que o apreciam me façam sentir um animal raro. Enfim, nada a fazer. Quando o calor é de facto insuportável rendo-me à tecnologia; apesar das minhas eventuais ‘manias’ não me tenho como uma pessoa fundamentalista.
Depois de me instalar num dos terraços mais altos de Flores – a história quase se repetiu em alguns pormenores – contactei Christine. Também ela planeara visitar Tikal. Quem sabe estivesse a caminho de Flores. E, com efeito! Mas isso só soube depois de ter tudo ‘arranjado’. O dia seguinte na vila foi para me organizar, quer na decisão por uma visita guiada à maior cidade Maia, quer como prosseguir. Encontrei uma agência de viagens que ofereceu um pacote muito interessante: transporte e visita guiada a Tikal, mais viagem de autocarro para o Belize, dois dias depois.
Apesar do desencontro e das reservas efectuadas em separado foi com grande satisfação que avistei Christine na entrada do Parque Maia. Integrávamos o mesmo grupo para a visita a Tikal!
Não obstante ter aberto a sebenta com intenção de passear pela cidade misteriosa, a esferográfica deslizou por outras vias. Confio que na próxima investida ela me conduza às ruínas dos Maias. Até já...

Abril, 2016
Matosinhos, Portugal