Na cidade dos mortos - Tikal



Entrei na cidade dos mortos, lado a lado com Christine. O calor que nos envolvia na floresta tropical de Tikal confirmava-nos que ambas estávamos bem vivas e em boa forma para descobrir, na sombra irrecuperável, o possível da profundidade cultural de um povo tão inigualável, quanto misterioso.
Tikal é um dos complexos funerários mais importantes desta cultura, e de tal modo sofisticada, que me fez voar desde a Colômbia até à Guatemala. Ao fim de dois meses nesse país, que tanto me encheu, senti uma espécie de chamamento para o desconhecido mágico e mitológico do mundo Maia. Muito ficou, ainda, por conhecer em terras de Gabriel Garcia Marquez... Quem sabe surja uma nova oportunidade.
Foi em Villa de Leyva (Colômbia) que comprei a passagem aérea para a Guatemala com o objectivo de visitar Tikal. Para mim, era sem dúvida obrigatório que a visita a este parque, povoado de templos-pirâmide de pedra, de animais mais ou menos visíveis como os ‘monos’ e jaguares secretos, se realizasse com o devido acompanhamento. Como tal, em Flores contratei o serviço de uma agência, para assim ser integrada num grupo com guia. E que grupo... também o de Christine! Ao receber o seu sorriso sereno e cintilante, adivinhei que, independentemente, da qualidade do guia ou das informações e histórias, o dinheiro havia sido muito bem empregue.
A visita começou com o guia a descrever ao grupo a ressonância arquitectónica da cidade, através da explicação da maqueta na entrada. As visitas guiadas tendem a ser muito interessantes e elucidativas, em particular em lugares como este, cujas ruínas descontextualizadas pouco ou nada sugerem (falo por mim...). Não obstante, nem sempre são fáceis de seguir e de lhes prestar a atenção devida. Sobretudo pela companhia com que havia sido agraciada. Para além de Christine, estava uma alemã – a Miriam – que conhecera dias antes em Semuc Champey. Novos encontros, novos acasos... A empatia foi igualmente fácil com Bob, um israelita que me chamou a atenção pelo calçado. Trazia umas sapatilhas de trail (ainda não participei em nenhum, mas pelo tanto que tenho escutado pressinto que, mais dia menos dia, isso venha a acontecer). Com Bob, a conversa correu imediatamente para as corridas e para outros lugares (por acaso ou não, voltámos a encontrar-nos ainda nesse dia em Flores e dias mais tarde numa ilha do Belize – Caye Caulker!).
Antes disso, pela manhã, as conversas que se iam desenrolando enquanto caminhávamos pelo xibalba – o termo para designar o lugar dos mortos – não nos impediram de escutar as explicações do guia sobre a existência dos calendários Maias. Plural, fiquei então a saber. Os Maias desenvolveram quase tantos calendários, quantas as actividades que integravam o seu modo de vida. Um calendário solar para o ano ritual, um calendário do ciclo lunar, um para a contagem dos dias, entre outros. Nos códices estão descritas todas estas informações e muitas mais, como a relevância primordial das árvores.
A árvore do Mundo, ou a árvore cósmica. Foi numa dessas árvores que me encostei durante algum tempo. As minhas mãos sentiam a superfície acinzentada e levemente rugosa com o intuito de captar alguma magia – afinal a árvore era o eixo central daquele mundo fabuloso, impregnado de alegorias. Através das raízes da árvore cósmica, os Maias ligavam-se ao mundo dos mortos, ou inframundo. O tronco estabelecia a ligação com o mundo terreno. A união com o mundo celestial era possível com os ramos; de braços erguidos como quem reza – assim cantaria Florbela Espanca.
Mas as árvores eram ‘apenas’ uma das incontáveis e maravilhosas atracções de Tikal. Quando alcançámos a praça central e após mais explicações do guia, passeámos tranquila e atentamente pelo espaço milenar, onde facilmente se podia observar o quão avançada e complexa era a compreensão e vivência do cosmos, por parte desta civilização, que me atraía a cada instante pela sua sabedoria, ao mesmo tempo que me causava questionamentos devido a certas práticas. Nomeadamente, os sacrifícios de animais e mesmo de pessoas com o propósito de apaziguarem os deuses, entre os quais aqueles que lhes garantiam boas colheitas de milho – a base da sua alimentação.
Essas práticas de outros tempos não me impediam de reconhecer a complexidade do seu conhecimento da astronomia e matemática, a partir do qual construíram os templos-pirâmides de forma calculada e simbólica. As pirâmides, para além de representarem as montanhas – para si sagradas –, eram templos para os cultos e rituais inerentes à organização do seu quotidiano, repleto de celebrações e rituais. Estas construções, cuja inclinação pode chegar aos setenta graus, eram igualmente monumentos, nos quais se ‘alojavam’ criptas extraordinariamente trabalhadas, para os soberanos defuntos.
Foi numa dessas pirâmides da praça central, dedicada ao Sol, que eu e as duas alemãs tirámos uma fotografia para a posteridade. Ainda nesse dia partilhámos essa e outras fotografias, bem como histórias e experiências de viagens. Combinámos encontrar-nos na vila de Flores. Ao fim da tarde, após o merecido duche e descanso, na varanda de um bar guatemalteco saboreámos um ‘mojito’ – que Miriam fez questão de oferecer: muito obrigada! Por acaso, ou não, o israelita passava na rua; juntou-se a nós. E assim tivemos oportunidade de confirmar que estávamos ali não por mero acaso; sentíamos que aprendíamos uns com os outros. Na verdade, fiquei com a sensação que esse encontro não terminou. Estou certa que se tivermos algo mais a partilhar entre nós, a vida tratará de nos providenciar novas e adequadas circunstâncias. E assim é!


Abril, 2016
Matosinhos, Portugal

Nota: Como se deve calcular, não tirei apontamentos durante a visita (apesar de vontade não faltar). A visita ao museu dos Maias em Mérida, algumas semanas depois, estimulou ainda mais o meu interesse pela cultura Maia. Não obstante, é de referir que foi na biblioteca Florbela Espanca, em Matosinhos, que confirmei e recolhi informação para este texto.

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