Cheguei a
Flores, Guatemala, desde Lanquin –
a vila mais Maia onde estive até ao momento. Em Lanquin,
os locais falavam todos quishé entre si. A única palavra que compreendi, numa
das vezes em que fui comprar pão, foi ‘gringa’. A vendedora reportava-se a mim,
enquanto eu esperava, mais ou menos pacientemente, observando-a a atender uma
série de pessoas à minha frente. Até que a paciência se esgotou quando aquela
palavra se insurgiu como um espirro sobre mim. “Desculpe, mas não sou ‘gringa’
e se não se importa também sou cliente e gostava que me atendesse” – escutei-me
numa hostilidade irónica e com voz enfática, no espanhol mais elaborado que me
era possível à época – já estava há dois meses e meio em modo hispânico, como
tal, sentia confiança até para discutir. Claro que a minha pretensão em
aprender a saber esperar ficava em causa. Não obstante, uma coisa é ser
tolerante, outra é permitir que gozem na minha cara. Ainda muito a aprender, já
se sabe...
Tendo em
conta o lugar tão fora de circulação em que me encontrava – a viagem até
Lanquin mostrara-me a lonjura de tudo e mais alguma coisa –, achei que o melhor
era repetir o modo de deslocação desde Xela: em shuttle. As mais de vinte horas que os diversos chicken bus me ‘obrigariam’ a experimentar, contrastavam com as
teóricas nove horas que este transporte privado me prometia. Na Guatemala,
apesar do valor escandalosamente mais elevado, esta é a opção mais frequente
entre os estrangeiros, nomeadamente Marco e Daniela. Um casal de italianos,
que, tal como eu, tinham passado uma noite em Semuc Champey – um lugar que de
tão belo, merece um postal por si mesmo.
Flores era
então o nosso destino seguinte, de onde saem as visitas a Tikal – a
maior das cidades Maias, na região de Petén. Isso implicava atravessar quase
metade da Guatemala; daí que me tenha rendido ao shuttle. Às oito da manhã, as minhas coisas estavam na carrinha de
nove lugares. Aproveitava a espera pelos demais passageiros para observar,
divertida, a conversa animada entre o casal de italianos e um israelita, aquele
que os trouxera de Semuc Champey nessa manhã. O israelita vivia na Guatemala; era
o proprietário do alojamento onde os italianos haviam pernoitado, para
desfrutar daquele outro paraíso de águas cristalinas.
A minha
escolha foi outra. Regressara de Semuc Champey na manhã anterior à boleia,
depois de mais de uma hora em pé a aguardar um ‘colectivo’ que nunca chegou a
aparecer. Felizmente, uma família guatemalteca apercebeu-se da minha espera em
vão. De pé, na sua carrinha de caixa aberta e recebendo o pó da estrada de
terra batida durante mais de hora e meia, cheguei a Lanquin, onde, ao apear-me,
os mais jovens da família fizeram questão de tirar fotografias com a
estrangeira com pele da cor de argila - noutros tempos de canela;
naquele dia era mesmo uma camada de pó, que um duche de água morna rapidamente
resolveu.
No dia
seguinte despedia-me da vila Maia, sorrindo com o à vontade com que Daniela
conversava, em espanhol arranhado e mesclado de inglês, com o homem israelita.
Reporto-me a este casal simpático e muito gentil, pois este foi o primeiro de
diversos encontros que partilhámos. Viviam há um ano na Cidade do México.
Marco, professor de inglês na capital mexicana. Daniela, em ano sabático para
acompanhar o marido e aproveitar o tempo para aprender espanhol numa das
universidades da cidade.
Entre nós,
alternávamos entre o inglês e o espanhol. Quando, por acaso, nos encontrámos posteriormente
em Caye Caulker,
o inglês era o idioma preferido, até pelo local. Nessa ilha
ficámos definitivamente ‘amigos’ através da rede social mais conhecida. Umas
semanas depois, quando me abriram a porta de sua casa, tinham uma chave para me
emprestar enquanto eu desejasse apreciar a cidade, que dizem ser uma das
perigosas do mundo. Além da chave, Daniela preparara o segundo quarto da casa
para meu conforto! Muito obrigada!
Antes
desse novo abraço, a partir do qual a amizade se tornou mais quente e vivida
que numa rede social, viajámos bem-dispostos desde Lanquin, contemplando a
paisagem extraordinária que a estrada até Flores nos proporcionava.
Resgato
algumas fotografias para avivar a memória. Faz parte do processo recordatório,
é sabido. Apesar da fraca qualidade que o iPad concede – aproveito a ocasião
para justificar a qualidade dúbia das fotografias que publiquei até ao momento;
confio que me seja dado esse desconto –, os pêlos ralos, e às vezes loiros, dos
braços reagiram reavivando a emoção sentida, durante as largas horas na carinha
com pessoas de diversas partes do mundo.
Para além
do casal de italianos e viver no México, destaco o casal de argentinos: a
Valentina e o Marcelo. Bailarinos a viajarem há pelo menos um ano, pagando as
suas despesas com as mandalas de arame do Marcelo e dos acessórios femininos de
Valentina – a quem comprei um crachá de madeira com o desenho de um golfinho
azul. Dois dias depois desapareceu... Confirmando-se a ideia de que mais é, com
frequência, menos. Valeu pela ajuda ao casal. Estavam determinados a avançar
nas suas andanças apenas e somente com o que obtinham da sua manufactura.
Foi com os
dois argentinos que segui em busca de alojamento em Flores – o casal de
italianos estava de férias, como tal o seu orçamento era substancialmente
distinto do nosso. Encontrámos um sítio muito económico, que se revelou ainda
mais acessível quando descobrimos que no terraço se podia dormir em palapas.
Para mim, mais uma estreia no que a camas e dormidas diz respeito. Se tal
poderia significar uma interrupção na continuidade do tempo ou do sono ele
mesmo, revelou-se antes uma excelente opção. Com efeito, dormir num nível mais
elevado sob um tecto de palha seca, não só me proporcionou uma vista sobre o
lago, como ainda me salvou de uma noite sob o ar condicionado – um dos aparatos
modernos que mais me afecta. Não é raro ficar com uma tosse que assusta aqueles
que não me conhecem. Também não é raro que aqueles que o apreciam me façam
sentir um animal raro. Enfim, nada a fazer. Quando o calor é de facto
insuportável rendo-me à tecnologia; apesar das minhas eventuais ‘manias’ não me
tenho como uma pessoa fundamentalista.
Depois de
me instalar num dos terraços mais altos de Flores – a história quase se repetiu
em alguns pormenores – contactei Christine.
Também ela planeara visitar Tikal. Quem sabe estivesse a caminho de Flores. E,
com efeito! Mas isso só soube depois de ter tudo ‘arranjado’. O dia seguinte na
vila foi para me organizar, quer na decisão por uma visita guiada à maior
cidade Maia, quer como prosseguir. Encontrei uma agência de viagens que
ofereceu um pacote muito interessante: transporte e visita guiada a Tikal, mais
viagem de autocarro para o Belize, dois dias depois.
Apesar do
desencontro e das reservas efectuadas em separado foi com grande satisfação que
avistei Christine na entrada do Parque Maia. Integrávamos o mesmo grupo para a
visita a Tikal!
Não
obstante ter aberto a sebenta com intenção de passear pela cidade misteriosa, a
esferográfica deslizou por outras vias. Confio que na próxima investida ela me
conduza às ruínas dos Maias. Até já...
Abril,
2016
Matosinhos,
Portugal
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