Corte no pé V




Cortei-me no pé! Outra vez. É verdade! Quase verdade. Uma meia verdade. Também poderá ser apenas uma meia mentira. Como preferes o teu copo leitor@: meio cheio, ou meio vazio? “Depende do que escreves”, dirás leitor@; “depende do que bebo”, acrescentas ainda. Concordo contigo. A perspectiva altera quase sempre o modo como percepcionamos a realidade.
Um dia destes apercebi-me disso de uma forma muito concreta. Fui andar de bike com o meu amigo Martin. Já te disse leitor@ que estive com ele aqui em Santiago do Chile: convidou-me para ficar uns dias em sua casa e para o acompanhar numa série de coisas, entre as quais conhecer o Parque Auracano sobre duas rodas.
E fomos então de BMX para o parque. O meu amigo Martin é rapaz muito afoito, irreverente, audaz, destemido e outros atributos do género também o vestem. Deve ser da idade: ainda não tem trinta anos. O meu discurso, a ti leitor@, quase te soa a bota-elástico. Calma, como te disse, a perspectiva com que a realidade nos entra pelos olhos depende sempre do nosso ângulo posicional. A minha idade... pois ainda não tens essa informação. Será este o momento para ta revelar? Hum... pelo que já leste, leitor@, estou certo que terás um palpite... deixo para mais tarde.
O meu amigo Martin: além de ter duas bmx, é skatista, surfista e snowborder. É verdade, desta vez sem ser só pela metade. Pelo menos do que vou conhecendo dele.
Fomos para o Parque Auracano. Um parque urbano na cidade de Santiago. Até aqui tudo bem, não fosse o caso de ter chovido copiosamente nos dias anteriores. A temperatura é excelente, para mim claro: sempre acima dos 25ºC; mas houve uma pequena lembradura por parte de São Pedro (para quem acreditar nesse santo, claro). A chuva tem algumas consequências num parque, nomeadamente no piso... transforma-se em lama! Verbos como chafurdar, atascar, atolar aplicam-se como luvas neste passeio. Essa foi a razão porque numa das descidas muito loucas ia dando um belo trambolhão.
O meu vocabulário de chileno vai-se enriquecendo de dia para dia. Sinto-te atent@ e fazes um reparo: “é espanhol!” Não foi por lapso, nem tão-pouco provocação. Decorre da mesma diferença entre o nosso português e o português brasileiro. Sobre isso não me alongo. Já terás percebido leitor@, que prefiro o português sem muitos acordos. Geralmente o desacordo traz novas discussões, quiçá novas formas de perspectivar a realidade. Neste caso a que me aconteceu. Tem calma leitor@, não me esqueci do corte no pé, nem do copo mais ou menos cheio, ou mais ou menos vazio.
Antes de começarmos uma das descidas mais perigosas - não estou a exagerar. No topo li uma placa com este aviso: “Bajada muy peligrosa”. Nesse momento passou-me uma vertigem pela frente: ‘estou mesmo aqui?’ Estava! Não foi necessário beliscar-me – não havia tempo para essa lamechice de pouco homem. Quando se pedala, pedala-se e pouco mais – eventualmente também se fará uma ou outra pausa para desfrutar da paisagem: neste caso repleta de muitos outros sobre outras rodas, como os skates.
O meu amigo Martin só queria ser o primeiro a chegar – esqueci-me de te dizer, leitor@, que éramos mais de dez ganapos sobre rodas. Isso tem várias implicações; desde logo se se vai atrás de um deles. Sendo a lama e as poças de água o cenário rasteiro, podes visualizar a quantidade de salpicos que alcançaram os meus olhos, as minhas orelhas e também a barba – uso uma barba rala; aquela que dizem ser a de três dias. A minha já tinha pelo menos cinco. Espelhos não havia pela casa do meu anfitrião... de maneira que só me restava confiar que o meu rosto estivesse minimamente aceitável.
Como te lembras, leitor@ – pressinto que ainda estejas aí – numa das descidas ‘más peligrosas’, a dúvida existencial desvaneceu-se e subitamente eu não era só eu. Éra-me mais o garoto que em mim mora, mas que me esquecera. E então, icei o rabo para trás e para cima, relaxei os braços, segurei bem o volante e deixei-me ir pela encosta abaixo. Era uma inclinação superior a 30%. Foi já no final da descida que as poças de água me travaram e conheci de perto o cheiro do chão. Não foi apenas o nariz que teve as melhores condições para o seu sentido primeiro. Também o tacto teve oportunidade de se expandir: agarrei-me a uma cerca de arame para não voar de dez metros de altura. Foi então que bradei pelo meu amigo: “espérame, Martin!! – o sotaque cantado acompanhou esta chamada – ia dando um tralho” (saiu-me no meu calão, claro...).
“Na próxima vez salta” – eis que também tu, leitor@, deves ter lido o mesmo que eu escutei: saltar. De facto, não tinha de cair: podia saltar. E repentinamente a perspectiva de perigo, medo, receio, sobressalto, alterou-se-me por completo. Eu não voltaria a cair, escolheria antes saltar. E isso muda tudo! Como quase tudo na vida...
Porque saltei na vez seguinte, cortei-me no pé. Quer dizer, não foi bem no pé. Foi no tornozelo. Felizmente por aqui posso andar de calções e as meias são daquelas que só tapam o pé. Os tornozelos nus ficam expostos à vegetação que em mim entrou, lacerando o tornozelo direito. Tu, se fores leitora, prevês que sejam apenas alguns arranhões; se fores leitor, serás muito mais solidário e sentirás que o sangue que se esvaiu foi o suficiente para me fazer vomitar. Claro que esse despejo era resultado de duas horas de pura adrenalina. A minha idade começa a tecer algumas limitações: não muitas: quero saltar, sempre... em vez de cair!


A nossa piscina em Nogueira do Cravo

O que os nossos olhos viam



É provável que seja do conhecimento de poucos. Na década de 1980 existiu uma piscina em Nogueira do Cravo. Ou antes, ou melhor, se calhar era uma piscina apenas para uns quantos. Para umas quantas crianças e adolescentes.
As férias de Verão nessa época eram muito longas. Em vários sentidos que o tempo pode ser percepcionado e vivido. Não havia telemóveis, muito menos telefones espertos, nem tão-pouco tabletes (só de chocolate) e outros dispositivos electrónicos. Está bem, tínhamos um tijolo onde escutávamos as cassetes do Bryan Adams e o spectrum chegava a alguns. Pouco mais; por isso, as crianças e adolescentes tinham apenas uma ocupação nas férias: brincar. Às vezes também liam – nos dias em que a chuva nos surpreendia e não permitia brincar... na rua.
As tardes eram, por isso, realmente grandes. A distracção da brincadeira em Nogueira provinha de quando alguém chamava: “Oh Sóniaaaaaa, onde é que tu andas??? Oh Lisete, anda cá!!” Pequenas interrupções que rapidamente eram ultrapassadas por um desígnio mais elevado: brincar!
Num desses Verões em Nogueira do Cravo, o tanque do Nelo e do Nando foi a diversão eleita. Estava em desuso: a rega e a roupa não eram para ali chamadas. Vai daí, alguém se lembrou: “e se fizéssemos desaparecer a divisória e transformássemos o tanque na nossa piscina?” Uma ideia luminosa unanimemente aceite. Na realidade, não houve sequer discussão sobre a derradeira utilização do tanque antiquado: a de tomar banho nas tardes quentes de Nogueira. Até porque nenhum de nós tinha carta de condução para ir para as Caldas de São Paulo. Por conseguinte, é fácil de ver que no nosso imaginário, os banhos logo entrevistos seriam muito mais que simples banhos. Em primeiro lugar, porque a água seria inevitavelmente fria e, em segundo lugar, porque o objectivo era só um: brincar ainda mais. Dessa feita, na água e com muita água – mesmo que gelada.
Não obstante, antes de tal ser possível, era necessário colocar mãos à obra. De maneira que era imperioso esboçar um proto-plano. Proto, no sentido em que os planos eram poucos ou nenhuns: rebentar com o muro que tornava o tanque duplo. Só queríamos um e o maior possível: como é óbvio! Pois bem. Que fazer então? Arranjar ferramentas que permitissem derrubar a tal divisória. As marretas e outros utensílios do género, os nossos auxiliares, ou melhor, os nossos brinquedos. Escusado será dizer que durante várias tardes essa era a nossa brincadeira preferida: acabar com o murete.
Os pais do Nando e do Nelo rapidamente se arrependeram do aval concedido. Isso, como é óbvio, não demoveu os filhos, nem tão-pouco os seus compinchas: o Nuno, a Lisete, a Sónia, a São, o Zé Fernando, o Chalana, a Ana e talvez os irmãos mais novos dos mesmos e mais um@ outr@ garot@. A memória, já se sabe, tem destas coisas e trinta anos volvidos não me é fácil restabelecer com precisão quem ali se divertia à grande. Caso @ leitor@ também integrasse o bando, por favor, queira ser condescendente e compreenda que esse tipo de falhas calha a tod@s.
Os pais do Nando e do Nelo não eram certamente os únicos que estariam um pouco – reforço o pouco – incomodados. O barulho das pancadas, marteladas, bordoadas, mocadas e outros sinónimos que promoviam a nossa feliz algazarra eram a constante. Já para não falar da roupa: ficava num estado miserável. Mas isso, presumo, seria de somenos importância. Era para isso que servia. Naquela época, as vestimentas das crianças tinham como único propósito tapar-nos – não muito, era Verão. As marcas xpto não as conhecíamos; nem sequer lhes dávamos a importância que posteriormente lhes daríamos. É natural, as crianças deixam de o ser, da adolescência desprendida à juventude peneirenta é um pulo. Só então – actualmente penso ser muito mais cedo que tal acontece – a indumentária passaria a ser um elemento relevante para se ser mais ou menos estilos@.
Na década de 1980, em Nogueira do Cravo, o que nos importava eram mesmo os mergulhos que poderíamos dar após concluída a tarefa premente. E assim, ao fim de três ou quatro tardes, tínhamos uma verdadeira piscina – mesmo que ainda vazia. Esse foi então o passo seguinte: encher o tanque de água. Não só, como se calcula. A água do poço estava a uma temperatura próxima do limite polar quando encheu a nossa já piscina. Era imprescindível que o sol tomasse as devidas providências. E nós, como tínhamos todo o tempo do mundo... Relembro que nessa década do século passado as férias eram de pelo menos três meses. Não existiam actividades compradas e programadas pelos pais. O que eles faziam, no meu caso e do meu irmão Miguel, era mandar-nos pelo menos um mês para casa dos meus queridos avô Alfredo e avó Altina. Lisboa estava a quatro horas de distância – hoje o meu tio chega em pouco mais de uma hora. Como tal, enquanto a água aquecia só nos restava fazer uma coisa: brincar a outra coisa qualquer.
A piscina, depois de alargado o tamanho e plena de água menos fria – apenas menos, note-se – estava pronta para o resto. O resto – não era o mais importante: o antecedente fora vividamente aproveitado e brincado.
Os mergulhos, as bombas, as amonas não estão postadas no FB. Há esta memória. Estou certa que aqueles que comigo brincavam a terão igualmente amorosamente guardada. As histórias, mesmo que só histórias como esta, são de quem as viveu: eu tive o privilégio de brincar no tanque, ou antes piscina, ok, proto-piscina, com os meus queridos companheiros dessas e muitas brincadeiras em Nogueira do Cravo.

O que os outros veriam

Corte no pé IV


Dança, dança, dança... Podia ser o título de um livro. Podia e é! De Haruki Murakami. Não o meu preferido: Sputnik, meu amor – o primeiro que li. Dizem que não há amor como o primeiro. Deve ser essa a razão. Outros houve. A saga de 1Q84 também gostei muito. O terceiro volume já o li em kindle – durante a viagem para Santiago do Chile! Pois! Já fui... E sabes com quem estive? O Martin – ele mesmo!
Como é que foi isso? Adivinho a tua pergunta. Oh... nem sabes o que aconteceu. Nada de especial. Estava farto do Porto. Em Dezembro começou a chover e Janeiro não estava muito diferente. Pelo que a minha namorada me disse por skype ontem, a previsão não é de melhoria tão cedo. De maneira que aqui me prolongo. Até quando? Ainda não sei. Por ora na capital. Antes disso... tens razão ainda não te disse.
De quando em vez faço experiências pelo skyscanner. Andava nisso desde há uns tempos, confesso. Até que um dia estava nesse devaneio – já te falei sobre essa teoria que está amplamente descrita na literatura académica – e vai daí: um preço bestial: seiscentos euros (só ida!). Comprei de imediato. Embarquei no dia 28 de Janeiro. Estava mortinho por viajar. Nem te sei explicar este impulso que alguém chama de viajante e outro alguém de fugitivo. Revejo-me nos dois.
A minha casa estava um pouco fria. O Inverno... Não é a minha temperatura preferida. A minha namorada Margarida não sorriu muito quando me deixou no aeroporto de Sá Carneiro às seis da manhã. O seu rosto estava fechado e os olhos alagados. Mas não deixou cair nem uma única lágrima. O que me surpreendeu. Volta e meia abre a torneira. A tua namorada também, se és homem? Ou se és mulher, costumas lacrimejar sempre que vais ao cinema? Bem... está visto que a minha namorada não é uma raridade.
De qualquer modo, conteve-se. Abraçou-me. Ou melhor, fui eu que a prendi nos meus braços. Apertei-a tanto que deve ter ficado com o seu peito esmagado – vou dizer assim, mesmo não sendo a expressão que me apeteça empregar. Espero bem não ter estragado a sua fronte. Afinal, é pouco provável que me fique aqui para sempre.
Abraços, beijos e até amanhã. O modo como entrei na secção de controlo. Rapidamente passei esse trâmite de segurança. É uma daquelas coisas que quase me exaspera quando viajo. Só quase: basta que me reposicione e lembre da razão por que ali estou: viajar! Mas também é por pouco tempo. Apenas quando estou a preparar a mochila de mão. O menos possível para ninguém me aborrecer. Nem sempre é fácil passar sem percalços.
Uma vez aconteceu-me estar em escala em Frankfurt e saí da zona de embarque. Muitas horas entre os vôos... Quando quis voltar pensei que perderia a minha ligação. A zona de controlo era encerrada à minha frente por ameaça de bomba! Nem mais nem menos. De maneira que hoje em dia, independentemente do número de horas em escala, prefiro não arriscar. Não arrisco nesta matéria. Noutras há que me sinto muito afoito. Diria mesmo que pouco consciente para o que esperam do meu comportamento, teoricamente adulto. É só teoria... fica para depois – eventualmente.
Não é teoria, nem tão-pouco devaneio o local em que me encontro: Santiago do Chile. Finamente! Nem sei há quanto tempo sonho com isto. Ou talvez tenha uma ideia. Não é assim tão remoto no tempo, esse meu desejo. Quando vim da Índia era para lá que queria seguir: aterrava no Porto em Maio de 2012. Mas a Margarida... Ah... os afectos. Desde então que esse país não mais abandonou as noites sonhadas. Devo-te uma explicação leitor@. Só espero que a minha namorada não leia esta parte.
Na Índia conheci uma chilena. Vivemos uma paixão daquelas que só imaginava nos filmes: e nem todos. Foi só uma semana: o tempo não baliza a relevância de uma experiência. Muito menos essa que vivi com Paz Parada. O seu nome é tudo menos ilustrativo. Partilho contigo um raio do meu arrebatamento: a Paz é tântrica. Nem mais nem menos! E nem mais te digo. Se fosse católico, estaria seguramente a fazer a promessa de ir a Fátima a pé e dar vinte voltas de joelhos no santuário: para que a Margarida não leia isto.
Nessa altura também... estávamos afastados. Não conta! Querida, se me lês, hás-de lembrar-te que com efeito nos aborrecêramos antes de eu embarcar para Mumbai. Além disso, quando regressei contei-te... uma parte. Não havia necessidade de entrar em pormenores. Sabes que te amo sempre. Mas o meu coração é muito vasto. Cabes tu e... não só.
Bom, tens razão leitor@, essa conversa não é para ter em público. E talvez que a anterior também não. Estava a contextualizar-te sobre a razão primeira de iniciar viagem pela América Latina no Chile e não na Venezuela. Mas também não sei se esse seria o melhor local para começar. Num país em que o Natal é quando o presidente quer, pode acontecer tudo.  
Estou então no Chile. Estive com o Martin, e não com a Paz Parada. Quem sabe. Somos amigos, quer dizer, não sei se ser amigo através do livro das faces é sinónimo de amizade. Não a contactei: para resumir. Ainda a ponderar. Apesar de ter sido uma experiência extraordinária. Lembro-me de na época ter compreendido a expressão: já posso morrer! Não morri. Estou vivo. Muito vivo e em Santiago do Chile... há dez dias. Por ora fico por aqui: vou jantar ao Restobar KY.

A mosca


Esta história é simples, mas foi comigo que aconteceu. Quer dizer, comigo e com uma mosca. Como o insecto não tem a mesma linguagem que eu aprendi, partilho contigo que a lês: obrigada!
O nome por que fui batizada é Célia: dou-te este elemento para que me identifiques de algum modo. Dou-te outro: nasci há vinte e seis anos. “Já ninguém tem vinte e seis anos!” – a minha vizinha um dia destes. Fiquei admirada com o seu tom. Parecia saudosa desse seu tempo, apesar de ter um rosto que adivinha pouco mais de trinta.
Eu ainda não sinto saudade nem dessa idade nem das anteriores. E tu, que estás nesta página, costumas ter esse sentimento face ao que passou ou ao que virá? Achas que vale a pena? O passado já não existe e o futuro não sabes se alguma vez o terás ou pelo menos no modo que gostarias – se é que sonhas com o que há-de vir.
A mosca. Esse belo insecto, quando vem só e nos vem dizer que a temperatura exterior queima: a sua razão para querer estar na nossa sala fresca. Se vives no Porto como eu, tu que estás ainda à espera da história que te disse ser simples, saberás que a presença daquele ser minúsculo de asas não estava no meu quarto por causa do calor. Janeiro ainda não acabou: o que significa que faltam muitas semanas para que a temperatura se altere de forma notória. Isto é relevante para ti, se como eu te sentires mais confortável com o sol mais forte.
Porém, os porém são frequentes na vida: é o seu sal: há quem diga. Não sei se o sal é assim tão bom: a minha comida até costuma ser insossa... para os outros. De qualquer modo, nem sequer é um porém pejorativo aquele a que me reporto. Neste mês de Inverno aceito o frio e frequentemente até de bom grado. Malgrado as frieiras que estão em visita – por muito mais tempo que o desejável: se é que tal coisa possa ser desejável.
A mosca. Ainda está aqui. E tu? Ainda bem, obrigada. Entrou sem pedir licença. Já se sabe que se o fizesse eu não lhe daria autorização. É por isso até que às vezes o melhor é não pedir. Queremos, pegamos. Queremos fazemos. Se o outro ficar incomodado, que diga!
Apesar de estar sozinha no momento em que a janela aberta lhe deu essa oportunidade, preferia esse estado: mais vale só que mal acompanhada. Repara que não o digo por dizer. Não é treta. A tal vizinha saudosa é que de quando em vez me pergunta: “Ainda é solteira? Olhe que está na altura de juntar os trapinhos”. “Sabe como é – desculpo-me por cortesia – nem todos apreciam o sol de Maio. E eu gosto mesmo dele durante esse mês – em especial quando o posso contemplar na sua hora nascente”.
Parece-me que a minha vizinha não sabe bem do que falo, assim como não sei se tu aí do outro lado da página virtual acolhes esta minha característica com simpatia: a de ver o nascer do sol... quase todas as manhãs.
Hoje foi o caso. Foi precisamente nessa altura que abri a janela do quarto. Vai daí, a mosca que gelava no parapeito agarrou a oportunidade do calor do quarto dormido: entrou!
Olhámos uma para a outra. Quantos minutos terei insistido para que se ausentasse? Não os suficientes. Se eu sou teimosa – é o que me dizem –, a mosca ganha-me aos pontos. Como estou a aprender a render-me ao inevitável, retirei-me dessa luta. Há uns tempos atrás teria recorrido a uma arma que me dá poder – pelo menos em relação a esse reino de minorcas, nem por isso menos aborrecido: o insecticida!
Não valia a pena: afinal até me preparava para sair. Era eu que me ausentaria. Fui. Três horas depois regressava. E tu, que ainda estás aqui comigo, calculas que a casa não esteja vazia. É verdade. A senhora mosca – nesta altura já se pode considerar uma senhora, tal a sua resistência – mantinha-se à janela.
A chatice disto tudo são os vidros. Limpara-os no dia anterior. Mesmo que seja uma tarefa que me agrada – uma das minhas formas de limpeza mental –, não me apetecia repeti-la tão cedo. Há coisas mais interessantes que limpar vidros: estou certa que concordarás comigo. É possível até que tenhas alguém que o faça por ti. Aproveito para me oferecer – calma! não sou nenhuma oferecida: nesses termos que porventura magicaste por momentos. De qualquer modo, se quiseres que te visite, terei todo o gosto em ir a tua casa com esse propósito. Assim estejas perto de mim e no final partilhes um chá. Eh lá! Pensas tu que estou a gozar contigo. Podes perguntar à Judite, a quem disse que ajudaria nessa tarefa, para si árdua e aborrecida.
Aborrecida também poderia ser a mosca. Não só continua cá em casa – são três da tarde –, como conseguiu apagar a minha perseverante limpeza; que pelos vistos de perseverante não tem nada. Isto só confirma que a limpeza da casa, tal qual tantas outras coisas na vida, são como o mito de Sísifo. Eternamente repetidas, repetíveis e sempre com o mesmo objectivo: serem repetidas e voltar ao mesmo, apenas porque sim. Neste caso, para ter o vidro transparente. E até que valia a pena essa transparência total: o arco-íris assomou diversas vezes no horizonte. Ali fiquei a contemplá-lo.
Uma contemplação partilhada: com a mosca. É que mesmo que a linguagem não seja a mesma, há coisas para as quais as palavras são de somenos importância. E tu? Apreciaste algum arco-íris hoje? Não te preocupes. Ontem também observei uns quantos. Tendo em conta que a chuva nos continua a fazer companhia: desfruta a sua água e a sua ausência sob o sol. É quase certo que agarres esse instante num longo farrapo azul com uma tira em arco com sete cores. 
A fotografia não a tentes: pode dar-se o caso do instante se ter desvanecido entretanto.
A mosca. Finalmente saiu. São quatro da tarde e ela lá terá concluído a sua missão. O vidro, esse, esperará até que eu necessite de uma pausa nos pensamentos.

Um corte no pé - III



Car@ leitor@, aposto que esperavas por notícias minhas. Escutei vozes desconhecidas – é verídico – e conhecidas também: a Ema, por exemplo. Queriam saber mais. Tal como tu, presumo: com mais ou menos presunção, pensei ser de bom tom continuar-me. Com ou sem ego – sobre isso já sabes.
Antes de começares a ler, assegura-te que estás bem sentad@ e atent@. Mesmo que estejas a ler-me através de um telefone esperto, se eu tive a simpatia de te escrever, tem tu também essa simpatia comigo. Já reparaste que tendemos a reagir de acordo com a atitude do outro e vice-versa? Pois bem, se ainda não te deste conta disso, deixa essa reflexão para depois. Agora estás nesta página virtual. Só aqui! Nada mais existe – apenas este instante. Como tal, verifica que nada nem ninguém te incomoda: nem aquela rapariga gira que está na outra mesa do café – se for o caso. Bom, se valer a pena, podes sempre convidá-la a acompanhar-te nesta leitura. E terão então tema de conversa. Já estás só aqui?
Muito bem. Calculo que uma das questões que te tenha surgido se prenda com a minha vontade de ir ao Chile. Acrescentas ainda – ouço-te o pensamento – este ano? Tens a certeza que estás bem acomodad@? Se for preciso levanta a voz: “Estou a ler! Não quero ser incomodad@”.
É verdade. Antes disso: o pé já sarou! Também é verdade: parece que a minha namorada tinha razão. Só mais um pormenor: em vez da água oxigenada ela usou soro fisiológico - sugestão de uma amiga sua. 
Ir ao Chile é um desejo: se se concretiza ou não são outros tantos. Há pouco tempo apaguei uma série de velas no meu aniversário e no final trinquei duas delas. Ainda é cedo para te revelar a minha idade. Não te posso alagar já de muita informação: neste momento isso não é tão-pouco relevante.
O Chile. América do Sul: desse continente apenas o Brasil. As cariocas são deliciosas: garanto-te. A praia de Copacabana é maravilhosa: o slogan à cidade é merecido e aplica-se a essas areias quentes, cheias de corpos morenos e lindamente sinuosos. Nada como os de muitas europeias que se querem sempre escanzeladas. Nem percebo. Pelo menos para mim, que gosto de agarrar qualquer coisa. Bom, se fores uma leitora, não leves a mal. A verdade é que sempre me fez confusão essa coisa das mulheres pensarem que a sua beleza está na magreza.
Quase um rima, reparaste? Não foi propositado e se calhar nem funciona em termos literários. Se não te importas, deixo como está: quero reforçar a ideia anterior – os meus olhos verdes (dizem que são lindos e luminosos) e as minhas mãos de pianista – só na forma: não sei tocar nenhum instrumento – têm uma certa atracção por corpos em curva, regaços acolhedores e ventres fofos.
Será que no Chile terei oportunidade de alimentar a vista? Vá, só a vista. A minha namorada também me deve estar a ler. Querida, já falámos sobre isto: é certo e sabido que o meu amor por ti não fica nem um milímetro beliscado. Não sou cego! Aprecio a beleza. Assim como a tua! És linda: Sempre!
Ir ao Chile é daqueles destinos que me atrai desde há muito. O México e o Peru também. A Costa Rica é outro paraíso na terra que gostaria de viver e Cuba não me importava de repetir: digo-te até que é dos poucos países que gostaria de voltar.
Estás atordoad@ leitor@. Então é Chile ou quê? Eu esclareço-te leitor@. Estou aqui para isso. Esses e outros países integram o itinerário que vou construindo mentalmente. A viagem começa sempre muito antes de embarcarmos, concordarás comigo leitor@. A partir do momento em que decidiste viajar começas a viagem. A teoria do devaneio é deliciosa para compreender teoricamente esse estado onírico que nos envolve desde o primeiro instante. O devaneio: perguntas-te agora leitor@ se estarei eu nesse estado em relação ao texto que lês. Afinal ainda não avancei muito. Relaxa. Dá uma olhadela em redor. Nada de especial para ver, escutar? Ainda bem, continua-me.
Quero ir ao Chile! E dizes tu: eu também quero muita coisa e olha, estou aqui a ler-te à falta de melhor. Obrigado!
Quero ir ao Chile, mas não apenas. Daí estou receptivo a todos os lugares que as pessoas com quem me cruzar me sugiram. Não digo vivamente, mas de coração. De coração: e logo outra questão ilumina o teu rosto interrogativo. De coração? Claro! É isso que me move. E a ti não, leitor@? Ou és daquel@s que acha que isso é lamechice? Ficas a perder. Saberás isso quando te deixares conduzir por esse ritmo.
O ritmo que me move agora os dedos é o de Justin Timberlake. Agh! Fazes tu! Porquê, perguntar-te-ia se estivesse ao teu lado e pudesse observar o teu olhar. Já o viste a dançar? E danças? Quem dança é mais feliz – diz um amigo muito próximo. Crê de tal modo nisso que está prestes a fazer uma segunda tatuagem com essa frase. Dançar! Na América Latina dança-se muito. Vês, leitor@, não me esqueci da tua curiosidade. Dança, dança, dança!

Corte no pé - II



Sigo-me no corte do pé. A João e a Fátima queriam saber mais; o Jorge ficou curioso em relação a alguns pormenores. Posto isto, senti como que uma necessidade de me continuar. Coisa do ego, certamente. Por mais que digam que a sua ausência é um dos fundamentos para a transcendência, a sua desconstrução é com efeito algo muito difícil de conseguir. Falo por mim. Por mais que tente... Tenho a impressão que isso passa primeiramente pela aceitação de quem somos e da vida tal como é, bem como pela compaixão – em relação a mim mesmo e só então em relação ao outro. Tenho ainda um longo caminho a percorrer...
O corte no pé. O chão rapidamente ficou lavado e por incrível que pareça a cicatrização foi quase tão veloz como a limpeza do soalho. Isso deve-se, diz a minha namorada, à dimensão do golpe. No dia do apagão acabei por telefonar a alguém. Precisava de ajuda. Apesar de ser orgulhoso, estou a aprender a pedir ajuda quando necessito. Foi o caso: chamei a minha namorada. O meu tom de voz assegurou-lhe que eu estaria entre a vida e a morte. Acorreu de imediato.
A luz entretanto reacendeu-se. Enquanto eu estava ao telefone à janela, percebi-me novamente observado. Como se sabe, quando estou em casa, a nudez é o estado que me faz sentir ligado às origens. Esse estado foi habilmente fotografado nessa noite pelos mirones alheios. As vizinhas da frente, se forem fãs do facebook, já me devem ter partilhado. Ora eu, tão avesso a essa rede social, já lá devo estar todo escarrapachado. Isso da (não) privacidade tem muito que se lhe diga – não me alongo.
A minha namorada tocou à porta. Abri. Ficou admirada. Fiquei admirado. Os dois admirados frente-a-frente. A luz acesa mostrava-lhe o chão salpicado de pingas vermelhas. O pé, segundo ela, tinha um pequeno corte. Bastava desinfectar com água oxigenada – o que gentilmente fez – e colocar um penso adesivo – o que também carinhosamente fez.
O seu rosto de feições delicadas sorria compassivamente perante a minha dor calcinante. Claro que isto daria para desenvolver uma das inúmeras teorias que defendem as diferenças de sentir entre homens e mulheres. Estou certo que os elementos do sexo feminino têm muitas histórias. Aliás, a minha namorada fez questão de avivar-me a memória. Uma vez queixou-se de estar com uma gastroenterite e de eu lhe ter dito que estava muito ocupado nos meus trabalhos. Foi ela à farmácia. Entretanto, vomitou à minha frente. Devia ser sério: é possível que fosse mais que uma dor de barriga provocada pela ansiedade feminina.
De qualquer modo, a sua compreensão é inesgotável e passou essa noite comigo. A minha namorada, não o Martin! O Martin...
Voltei a vê-lo uns dias depois. Vestia ainda as roupas que lhe providenciei. Tomámos café numa confeitaria. Contou-me a sua novidade: ia voltar ao Chile. Soubera da morte de um familiar querido. De quando vez acede à internet em locais públicos e assim ficou informado. Não tinha vontade de regressar, mas sentiu um apelo – além disso ofereceram-lhe a viagem. Trocámos endereços electrónicos e ficou a promessa de continuarmos em contacto. 
É provável que nos voltemos a ver. Quanto mais não seja porque quero efectivamente conhecer o seu país... em breve.

Um corte no pé



Cortei-me no pé. O chão da casa ficou completamente empastado com o sangue que sentia esvair-se. A minha sombra assustou-se e agachou-se encolhida. Para animar à festa, não há luz: houve um curto-circuito no prédio que provocou um apagão. Caí. Fui contra um jarrão mal estacionado. O vidro transformou-se em cacos e escancarou-se-me um corte no pé.
Estava nu! Ando sempre nu em casa; mesmo no Inverno. O aquecimento que se espalha até ao soalho autoriza um conforto que me conduz ao nudismo. Gosto de estar em casa nuzinho. Isso provoca algumas situações bizarras. Moro no terceiro andar. A janela do meu quarto é visível pelo prédio da frente. As inquilinas do seu quinto andar já me perceberam. Costumam estar de mirones. O que muito me agrada. Sou homem.
Sou um homem de coragem: outra das minhas caraterísticas. É o que dizem. Se é verdade ou não é irrelevante. A coragem alia-se à loucura dizem, também. Em particular nos últimos dias. Só porque um dia destes fiz uma coisa que nem eu me imaginava a fazer.
Foi há dois dias. Ia na rua. Eram oito horas da noite. No Inverno a escuridão é evidente. Não tanto como a que me encerra neste momento – apenas disfarçada por uma pequena vela acesa. Aqui estou. Com esperança que uma pessoa chegue: o Martin.
Um chileno de vinte e oito anos que encontrei – que me encontrou, talvez. Pedia esmola. Eu voltava para casa na noite invernosa. Um frio tremendo. Ele descalço – como eu ando sempre... em casa, no chão aquecido. O Martin. Escanzelado e de roupa tão velha que fiquei na dúvida se estaria realmente vestido. Dúvida não havia quanto ao frio que sentia.
Convidei o Martin a vir comigo. Aceitou relutante. A sua estranheza era natural. Senti que o devia fazer. Não me perguntem porquê. Tomou banho. A minha primeira sugestão quando entrámos em casa. Ao fim de vinte minutos de água quente a correr pressenti que se hesitava. Bati à porta e dei-lhe roupa minha. Ficou-lhe muito larga, dando-lhe um aspecto de garoto. O ar miserável desapareceu-lhe do rosto, então rejuvenescido.
Preparara uma refeição simples para o jantar enquanto ele estava no banho. Na sala fracamente iluminada abri uma garrafa de vinho maduro tinto. Só bebo em companhia: agradeci a sua presença. Ele agradeceu o convite. Ficámos a conversar pela noite dentro. As suas histórias do Chile encantavam-me e faziam-me sonhar com a próxima viagem.
Ficou a dormir na sala: no colchão que normalmente está debaixo do meu soumier. Dormiu dois dias seguidos. Nesse entretanto prossegui com minha vida. O meu irmão habitou-me – mas pouco – com as suas preocupações. Contei que tinha um pedinte sozinho em minha casa. “Está a dormir. – dizia-lhe, tentando descansá-lo... em vão – Não tenho nada de valor. Se levar alguma coisa é porque precisa mais do que eu”.
O Martin despertou ao fim de quarenta e oito horas. Eram sete da manhã de hoje. Saiu depois de tomarmos o pequeno-almoço. “Fica cá enquanto quiseres”. Não aceitou. É teimoso – diz. Prefere viver fora do estabelecido. Assim tem oportunidade de ser quem quer ser. “Mas podes ser quem quiseres” – assegurei-lhe. Que não. Mais cedo do que mais tarde eu iria cobrar-lhe – nem que fosse a manifesta gratidão. Sorri. Foi.
O Martin. Onde andará? Se aqui estivesse ajudar-me-ia a limpar o sangue. Talvez me levasse ao hospital – seria o mínimo que eu esperaria dele...

Uma incursão pela feira da Vandoma







30 de Novembro, Sábado, 2013 
Despertador às cinco da manhã! Preparei-me e saí de casa na esgalha para aquecer. Cinco graus! Destino: Feira da Vandoma. O mesmo programa do Sábado passado. A esperança é a última a morrer, por isso quem sabe... pensei.
        O caminho sob o céu ainda nocturno, muito estrelado com a lua em quarto minguante. Em noite pouco cerrada pela iluminação da cidade alcancei a feira em cinquenta minutos. Em ritmo oposto calcorreei a feira de olhos pregados nas bancas. Algumas bikes – nenhuma a minha!
A dada altura dei-me conta que estava num lugar extraordinário, onde se vendem coisas extraordinariamente velhas, extraordinariamente antigas e mesmo extraordinariamente estranhas. E comecei a desfrutar. O céu também se ia transformando em manhã... não tão lentamente como desejaria (?). Estava ali. Apenas na feira.
Ia parando em algumas bancas – uma delas chamou-me a atenção: os cadernos diários da firma. A grelha para o horário escolar. Terei tido alguns semelhantes há trinta anos! Procurei debaixo do monte desses cadernos (eram mais de dez) se estariam ali também as sebentas. A última que tive foi no ano de estágio – 1995/1996. Ainda guardo as calinadas registadas do meu grupo. As reuniões de trabalho eram aí anotadas, em especial os disparates que dizíamos entre nós – éramos quatro a dar aulas à séria pela primeira vez. As reuniões no café Pedra Branca – próximo da escola Rodrigues de Freitas, onde decorria o nosso estágio. O local onde algumas páginas se transformaram em memórias sorridas.
        Nessa banca, na feira da Vandoma, não havia sebentas. Continuei devagar pela feira: local de livros também. Tive vontade de comprar o ‘Comboio Nocturno para Lisboa’ de Pascal Mercier: um dos livros que me marcou profundamente em 2010. Uma leitura escrita inacabada... era dele o livro. Hoje não comprei. Coibi-me. Não preciso. Posso ler na biblioteca do Porto. Não há necessidade de gastar em livros que já li e que estão disponíveis gratuitamente – e que agradeço! Isso é o que tenho feito cada vez mais: requisitar os livros para ler em casa. Como ‘A confissão de Lúcio’, de Mário de Sá-Carneiro. O livro do momento. Uma prosa poética que estou a adorar.
      Fui seguindo devagar por entre as coisas velhas e pouco visíveis. As lanternas eram muitas. As pessoas já sabem para o que vão, preparam-se! A noite era cerrada: tal qual Banguecoque! Só que na capital asiática a(s) feira(s) era(m) diária(s). E a estranheza do que se vendia fez-me ‘postar’ uma fotografia com uma caixa de dentaduras... usadas. Passeios deliciosos em Banguecoque. O de hoje também. Ao contrário do que imaginava (não imaginava muito: não criei expectativas), o sentimento de insegurança não me acompanhou em momento algum.
     Muita gente pobre a vender o pouco que tem ou encontra na rua. Muita gente a comprar com o pouco que tem. Muita gente pobre e muita gente não tão pobre. Pessoas como eu, quem sabe à procura do que se lhes roubou. Outras pessoas que sabem que aí encontrarão o que precisam muito (ou nem por isso) por tuta-e-meia. Foi por tuta-e-meia que não resisti às sebentas! Encontrei a famigerada sebenta noutra banca. Só havia três – cada uma a vinte cêntimos. Quis pagar com uma nota de dez euros.
     A rapariga, que tinha o seu estaminé junto a um dos inúmeros carros com a mercadoria, não tinha troco. Uma nota de dez. Uma miragem para os feirantes que eu e a Ana – a vendedora das sebentas – íamos interpelando para o troco: “oh filha, eu se tivesse esse dinheiro casava-me!”; “ainda não me estreei...”. Eu e a Ana fomos entabulando conversa até ao café onde finalmente se concretizou a venda. “Pode ser que volte a ter mais sebentas. Se eu não estiver, está o meu namorado” – a Ana vendedora, que entretanto dissertou vagamente: “o meu namorado... não é meu nada. Não o posso meter no bolso e trazê-lo comigo como se fosse um objecto... não gosto nada desses rótulos sociais”. Sorri em silêncio e fiquei com vontade de retornar à feira da Vandoma. Trouxe três sebentas. Talvez precise de mais (quero precisar!).
      Às sete horas decidi-me para casa. O céu entrava no seu azul da manhã e o sol começava a subir. Por esse motivo optei por um caminho diferente na volta: um pouco mais longo, mas muito mais aberto: mais brechas entre os prédios para observar a ascensão dourada.
         No caminho vivi um episódio bizarro. Fez-me pensar se a escolha do trajecto fora realmente uma escolha minha – estivesse eu atenta. Parei uns instantes para apertar os atacadores das botas de montanha e reparei num smart parado num semáforo. A música no tom que caracteriza as minhas poucas viagens de carro chamou-me a atenção.
Escutava a alguma distância ‘you saw the whole of the moon’... e continuava a escutar. Pareceu-me que o carro estava há demasiado tempo à espera do sinal verde. Aproximei-me. O homem adormecera! Não sei porquê, fiquei preocupada. Talvez pelas cenas reminiscentes do cinema: carros ligados e fechados em garagens... o homem adormecido estava ali no carro que trabalhava, fechado! Muito adormecido! Estive seguramente cinco minutos bem contados a bater na porta, na janela... e nada. Outro motorista parou. Um outro homem e uma outra mulher na rua observavam-me: “O que vale é que a senhora reparou” – isto, depois do smart ter arrancado... senhora?? Falavam de mim depois do homem ébrio – ainda! – arrancar com a janela aberta: minha sugestão.
      Consegui acordar o homem de verde que olhou para mim como quem diz: “onde estou? Quem é esta mulher a acordar-me?... Acordar-me???” Perguntei se estava bem. Que sim, que não... Ainda lhe perguntei se queria que o levasse a algum lado... “não... está tudo bem”. É certo que não se tenha apercebido do que aconteceu e é muito pouco provável que se venha a recordar...


Uma história banal...





Às vezes fico impressionada pelo modo como as histórias se repetem. Como diz uma amiga: são só histórias. São tudo histórias que nos contamos; que contamos, que precisamos contar aos outros. Parece que sem determinado tipo de histórias somos pouco. Talvez a sua ausência crie um espaço de vazio, de silêncio, que não conseguimos aguentar. “Só quero paz; só quero tranquilidade”. E afinal: não é nada disso que se quer. O silêncio, o vazio – a ausência do outro assusta... muito!
Estar arreliad@, irritad@, irad@ ou sentir que se é maltratad@ até parece melhor que o silêncio, que o vazio. É provável que esse seja um dos motivos porque as histórias afinal até se apresentem e contem até ao mínimo detalhe.
Esta história é de uma amiga. Se calhar também é a tua, como chegou a ser a minha. O que me deixa apreensiva é a inevitabilidade de ser a história de tantas outras mulheres. Refiro-me às mulheres; é deste lado que sinto e tenho o meu próprio ponto de vista. Os outros pontos de vista serão fruto de experiências, vidas diferentes.
Hoje confirmaram-se as suspeitas da minha amiga. Aquelas que sempre teve; aquelas que por tanto pensar nelas acabaram por se concretizar. Através da rede social que tu sabes qual, percebeu que o seu namorado trocava mensagens com outra mulher. Onde já ouvi esta história, pensei eu; estás tu a rever no teu écran mental todas as que também tu já ouviste – quem sabe até viveste.
Há meses que o seu coração lhe envia mensagens. Há meses que as chuta para canto, pensando que tem de acumular as provas suficientes para não vacilar e para demonstrar que não está nem é paranóica. O seu namorado tem uma capacidade imensa em argumentar as suas razões e tem por costume acabar as discussões de uma forma deliciosa: “Tu já te viste ao espelho? Já te ouviste? Tu és mesmo doente!”
Perguntas agora porque escrevo sobre isto. Deves estar a pensar que a minha amiga deve ter alguma questão interior para resolver, caso contrário já teria dito àquele que ainda lá está: “E se te pusesses daqui para fora! Não te quero ver mais!”
Não lhe disse, mas pensou. E tu? Já passaste pelo mesmo? Conheces alguém neste tipo de situação? É que se não percebeste ainda, como ainda não terá percebido vividamente a minha querida amiga: isto são MAUS TRATOS!
Isto seria apenas mais uma de entre muitas histórias banais (!), não fosse esta pessoa me ser muito querida e não fosse esta ser uma situação que se repete todos os dias, em muitos lugares, a muitas mulheres. Sem que estas alterem a sua circunstância por pelo menos três razões: medo, medo e medo. Medo de estarem efectivamente paranóicas – não estão! Medo de serem humilhadas e ainda mais mal-tratadas – mas isto é já uma humilhação e com toda a certeza um mau trato. Medo de ficarem sozinhas!
Queridas amigas! Vocês não estão malucas! Vocês não merecem ser humilhadas! O silêncio e a solidão podem ser a vossa melhor companhia: apenas e tanto porque estarão com a pessoa que mais devem amar e bem tratar: vocês mesmas!

Carta ao Pai Natal







Querido Pai Natal


Chamam-me Ana Luísa e não sei muito bem quantos anos tenho. O calendário diz que estou quase a fazer quatro (mais trinta e seis) anos... mas sinto mesmo que esse calendário está um bocadinho esquisito. A cada dia que passa fico mais confusa com as horas que se me atravessam. Às vezes tenho a sensação que também sou um caso curioso, como o Benjamin Button... pelo menos no que toca aos pensamentos e sentimentos... cada vez mais infantis.
Isso parece-me ser uma boa coisa, sem querer contudo estar a fazer julgamentos. Mas exactamente por isso, senti esta espécie de compulsão: escrever-TE.
Sabes, é que este ano sinto que realmente fui uma menina bem comportada. Quer dizer... nem todos pensam da mesma maneira, mas só a mim e a TI isso importa. TU viste! – eu senti que estava a ser sempre observada por TI. E sabes, tenho mesmo a impressão que alguém me protegia em cada momento. Serias tu? Talvez sim: daí que esta carta seja mesmo para TI. Se não te importares, partilha-a com tod@s aquel@s que estavam ao TEU lado nesses momentos, protegendo-me... basicamente Sempre!
Querido Pai Natal. A minha lista de prendas é muito vasta. E só TU ma podes dar. Antes disso, quero dizer-te uma coisa.
 Muito obrigada! Muito obrigada por cada minuto que vivi, por cada pessoa que esteve comigo mais ou menos tempo... essa coisa do tempo é muito relativa. Houve pessoas com quem estive apenas uma hora, mas que me ficaram para sempre. Obrigada por cada ser que se integrou em mim, transformando cada célula. Deve ser essa a razão porque me sinto progressivamente intemporal...
Muito obrigada por cada lugar que se inscreveu em mim... hoje o meu espaço não é meu: é o infinito – a potencialidade total de ser e estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa. Hoje sou, estou imensamente vasta. Muito obrigada!
Em relação à minha lista... é esta: a consciência em cada minuto, cada hora, para, desse modo, escutar e estar atenta a cada pessoa e lugar: só assim posso desfrutar plenamente cada instante precioso que me é concedido viver.
E pronto! Acho que já é muito... esta coisa de viver apenas no presente é um presente nem sempre simples e fácil...
Querido Pai Natal, para terminar gostaria ainda de acrescentar que tenho muito a aprender, por isso, se não TE importares, podes também deixar-me... mas onde? Ainda nem a árvore de Natal fiz! Ah, já sei... podes deixar um pouco de magia nos olhos de tod@s aquel@s que se cruzam comigo, para que eu me lembre que somos todos muito... basta que queiramos!
Obrigada
Ana Luísa

PS: esqueci-me de dizer-TE que gostaria de poder voltar a deslocar-me de bicicleta para todo o lado... obrigada!