Corte no pé V




Cortei-me no pé! Outra vez. É verdade! Quase verdade. Uma meia verdade. Também poderá ser apenas uma meia mentira. Como preferes o teu copo leitor@: meio cheio, ou meio vazio? “Depende do que escreves”, dirás leitor@; “depende do que bebo”, acrescentas ainda. Concordo contigo. A perspectiva altera quase sempre o modo como percepcionamos a realidade.
Um dia destes apercebi-me disso de uma forma muito concreta. Fui andar de bike com o meu amigo Martin. Já te disse leitor@ que estive com ele aqui em Santiago do Chile: convidou-me para ficar uns dias em sua casa e para o acompanhar numa série de coisas, entre as quais conhecer o Parque Auracano sobre duas rodas.
E fomos então de BMX para o parque. O meu amigo Martin é rapaz muito afoito, irreverente, audaz, destemido e outros atributos do género também o vestem. Deve ser da idade: ainda não tem trinta anos. O meu discurso, a ti leitor@, quase te soa a bota-elástico. Calma, como te disse, a perspectiva com que a realidade nos entra pelos olhos depende sempre do nosso ângulo posicional. A minha idade... pois ainda não tens essa informação. Será este o momento para ta revelar? Hum... pelo que já leste, leitor@, estou certo que terás um palpite... deixo para mais tarde.
O meu amigo Martin: além de ter duas bmx, é skatista, surfista e snowborder. É verdade, desta vez sem ser só pela metade. Pelo menos do que vou conhecendo dele.
Fomos para o Parque Auracano. Um parque urbano na cidade de Santiago. Até aqui tudo bem, não fosse o caso de ter chovido copiosamente nos dias anteriores. A temperatura é excelente, para mim claro: sempre acima dos 25ºC; mas houve uma pequena lembradura por parte de São Pedro (para quem acreditar nesse santo, claro). A chuva tem algumas consequências num parque, nomeadamente no piso... transforma-se em lama! Verbos como chafurdar, atascar, atolar aplicam-se como luvas neste passeio. Essa foi a razão porque numa das descidas muito loucas ia dando um belo trambolhão.
O meu vocabulário de chileno vai-se enriquecendo de dia para dia. Sinto-te atent@ e fazes um reparo: “é espanhol!” Não foi por lapso, nem tão-pouco provocação. Decorre da mesma diferença entre o nosso português e o português brasileiro. Sobre isso não me alongo. Já terás percebido leitor@, que prefiro o português sem muitos acordos. Geralmente o desacordo traz novas discussões, quiçá novas formas de perspectivar a realidade. Neste caso a que me aconteceu. Tem calma leitor@, não me esqueci do corte no pé, nem do copo mais ou menos cheio, ou mais ou menos vazio.
Antes de começarmos uma das descidas mais perigosas - não estou a exagerar. No topo li uma placa com este aviso: “Bajada muy peligrosa”. Nesse momento passou-me uma vertigem pela frente: ‘estou mesmo aqui?’ Estava! Não foi necessário beliscar-me – não havia tempo para essa lamechice de pouco homem. Quando se pedala, pedala-se e pouco mais – eventualmente também se fará uma ou outra pausa para desfrutar da paisagem: neste caso repleta de muitos outros sobre outras rodas, como os skates.
O meu amigo Martin só queria ser o primeiro a chegar – esqueci-me de te dizer, leitor@, que éramos mais de dez ganapos sobre rodas. Isso tem várias implicações; desde logo se se vai atrás de um deles. Sendo a lama e as poças de água o cenário rasteiro, podes visualizar a quantidade de salpicos que alcançaram os meus olhos, as minhas orelhas e também a barba – uso uma barba rala; aquela que dizem ser a de três dias. A minha já tinha pelo menos cinco. Espelhos não havia pela casa do meu anfitrião... de maneira que só me restava confiar que o meu rosto estivesse minimamente aceitável.
Como te lembras, leitor@ – pressinto que ainda estejas aí – numa das descidas ‘más peligrosas’, a dúvida existencial desvaneceu-se e subitamente eu não era só eu. Éra-me mais o garoto que em mim mora, mas que me esquecera. E então, icei o rabo para trás e para cima, relaxei os braços, segurei bem o volante e deixei-me ir pela encosta abaixo. Era uma inclinação superior a 30%. Foi já no final da descida que as poças de água me travaram e conheci de perto o cheiro do chão. Não foi apenas o nariz que teve as melhores condições para o seu sentido primeiro. Também o tacto teve oportunidade de se expandir: agarrei-me a uma cerca de arame para não voar de dez metros de altura. Foi então que bradei pelo meu amigo: “espérame, Martin!! – o sotaque cantado acompanhou esta chamada – ia dando um tralho” (saiu-me no meu calão, claro...).
“Na próxima vez salta” – eis que também tu, leitor@, deves ter lido o mesmo que eu escutei: saltar. De facto, não tinha de cair: podia saltar. E repentinamente a perspectiva de perigo, medo, receio, sobressalto, alterou-se-me por completo. Eu não voltaria a cair, escolheria antes saltar. E isso muda tudo! Como quase tudo na vida...
Porque saltei na vez seguinte, cortei-me no pé. Quer dizer, não foi bem no pé. Foi no tornozelo. Felizmente por aqui posso andar de calções e as meias são daquelas que só tapam o pé. Os tornozelos nus ficam expostos à vegetação que em mim entrou, lacerando o tornozelo direito. Tu, se fores leitora, prevês que sejam apenas alguns arranhões; se fores leitor, serás muito mais solidário e sentirás que o sangue que se esvaiu foi o suficiente para me fazer vomitar. Claro que esse despejo era resultado de duas horas de pura adrenalina. A minha idade começa a tecer algumas limitações: não muitas: quero saltar, sempre... em vez de cair!


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