Cortei-me no pé. O chão da casa
ficou completamente empastado com o sangue que sentia esvair-se. A minha sombra
assustou-se e agachou-se encolhida. Para animar à festa, não há luz: houve um
curto-circuito no prédio que provocou um apagão. Caí. Fui contra um jarrão mal
estacionado. O vidro transformou-se em cacos e escancarou-se-me um corte no pé.
Estava nu! Ando sempre nu em
casa; mesmo no Inverno. O aquecimento que se espalha até ao soalho autoriza um
conforto que me conduz ao nudismo. Gosto de estar em casa nuzinho. Isso provoca
algumas situações bizarras. Moro no terceiro andar. A janela do meu quarto é
visível pelo prédio da frente. As inquilinas do seu quinto andar já me
perceberam. Costumam estar de mirones. O que muito me agrada. Sou homem.
Sou um homem de coragem: outra
das minhas caraterísticas. É o que dizem. Se é verdade ou não é irrelevante. A
coragem alia-se à loucura dizem, também. Em particular nos últimos dias. Só
porque um dia destes fiz uma coisa que nem eu me imaginava a fazer.
Foi há dois dias. Ia na rua. Eram
oito horas da noite. No Inverno a escuridão é evidente. Não tanto como a que me
encerra neste momento – apenas disfarçada por uma pequena vela acesa. Aqui
estou. Com esperança que uma pessoa chegue: o Martin.
Um chileno de vinte e oito anos que
encontrei – que me encontrou, talvez. Pedia esmola. Eu voltava para casa na
noite invernosa. Um frio tremendo. Ele descalço – como eu ando sempre... em
casa, no chão aquecido. O Martin. Escanzelado e de roupa tão velha que fiquei
na dúvida se estaria realmente vestido. Dúvida não havia quanto ao frio que
sentia.
Convidei o Martin a vir comigo.
Aceitou relutante. A sua estranheza era natural. Senti que o devia fazer. Não
me perguntem porquê. Tomou banho. A minha primeira sugestão quando entrámos em
casa. Ao fim de vinte minutos de água quente a correr pressenti que se
hesitava. Bati à porta e dei-lhe roupa minha. Ficou-lhe muito larga, dando-lhe
um aspecto de garoto. O ar miserável desapareceu-lhe do rosto, então
rejuvenescido.
Preparara uma refeição simples
para o jantar enquanto ele estava no banho. Na sala fracamente iluminada abri
uma garrafa de vinho maduro tinto. Só bebo em companhia: agradeci a sua
presença. Ele agradeceu o convite. Ficámos a conversar pela noite dentro. As
suas histórias do Chile encantavam-me e faziam-me sonhar com a próxima viagem.
Ficou a dormir na sala: no
colchão que normalmente está debaixo do meu soumier.
Dormiu dois dias seguidos. Nesse entretanto prossegui com minha vida. O meu
irmão habitou-me – mas pouco – com as suas preocupações. Contei que tinha um
pedinte sozinho em minha casa. “Está a dormir. – dizia-lhe, tentando
descansá-lo... em vão – Não tenho nada de valor. Se levar alguma coisa é porque
precisa mais do que eu”.
O Martin despertou ao fim de quarenta
e oito horas. Eram sete da manhã de hoje. Saiu depois de tomarmos o
pequeno-almoço. “Fica cá enquanto quiseres”. Não aceitou. É teimoso – diz.
Prefere viver fora do estabelecido. Assim tem oportunidade de ser quem quer
ser. “Mas podes ser quem quiseres” – assegurei-lhe. Que não. Mais cedo do que
mais tarde eu iria cobrar-lhe – nem que fosse a manifesta gratidão. Sorri. Foi.
O Martin. Onde andará? Se aqui
estivesse ajudar-me-ia a limpar o sangue. Talvez me levasse ao hospital – seria
o mínimo que eu esperaria dele...
gostei de te ver a escrever sob o ponto de vista masculino, mas ao contrario de outras histórias esta precisava de ser mais desenvolvida fica a curiosidade no leitor ( o que é exclente) existe a vontade de saber mais acerca do protagonista e da relação dele com o martin, aproxima viagem enfim existem um sem numero de temas a abordar e para desenvolver. de resto nada a dizer muito bom.
ResponderEliminardeixo ao critério da tua imaginação... obrigada pelo comentário
ResponderEliminarSem duvida muito bom e quem sabe o ponto de partida para algo... seria muito interessante :)
ResponderEliminarQue bom que gostaste! Obrigada pelo comentário! Novos episódios... Quem sabe...tanana
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