A mosca


Esta história é simples, mas foi comigo que aconteceu. Quer dizer, comigo e com uma mosca. Como o insecto não tem a mesma linguagem que eu aprendi, partilho contigo que a lês: obrigada!
O nome por que fui batizada é Célia: dou-te este elemento para que me identifiques de algum modo. Dou-te outro: nasci há vinte e seis anos. “Já ninguém tem vinte e seis anos!” – a minha vizinha um dia destes. Fiquei admirada com o seu tom. Parecia saudosa desse seu tempo, apesar de ter um rosto que adivinha pouco mais de trinta.
Eu ainda não sinto saudade nem dessa idade nem das anteriores. E tu, que estás nesta página, costumas ter esse sentimento face ao que passou ou ao que virá? Achas que vale a pena? O passado já não existe e o futuro não sabes se alguma vez o terás ou pelo menos no modo que gostarias – se é que sonhas com o que há-de vir.
A mosca. Esse belo insecto, quando vem só e nos vem dizer que a temperatura exterior queima: a sua razão para querer estar na nossa sala fresca. Se vives no Porto como eu, tu que estás ainda à espera da história que te disse ser simples, saberás que a presença daquele ser minúsculo de asas não estava no meu quarto por causa do calor. Janeiro ainda não acabou: o que significa que faltam muitas semanas para que a temperatura se altere de forma notória. Isto é relevante para ti, se como eu te sentires mais confortável com o sol mais forte.
Porém, os porém são frequentes na vida: é o seu sal: há quem diga. Não sei se o sal é assim tão bom: a minha comida até costuma ser insossa... para os outros. De qualquer modo, nem sequer é um porém pejorativo aquele a que me reporto. Neste mês de Inverno aceito o frio e frequentemente até de bom grado. Malgrado as frieiras que estão em visita – por muito mais tempo que o desejável: se é que tal coisa possa ser desejável.
A mosca. Ainda está aqui. E tu? Ainda bem, obrigada. Entrou sem pedir licença. Já se sabe que se o fizesse eu não lhe daria autorização. É por isso até que às vezes o melhor é não pedir. Queremos, pegamos. Queremos fazemos. Se o outro ficar incomodado, que diga!
Apesar de estar sozinha no momento em que a janela aberta lhe deu essa oportunidade, preferia esse estado: mais vale só que mal acompanhada. Repara que não o digo por dizer. Não é treta. A tal vizinha saudosa é que de quando em vez me pergunta: “Ainda é solteira? Olhe que está na altura de juntar os trapinhos”. “Sabe como é – desculpo-me por cortesia – nem todos apreciam o sol de Maio. E eu gosto mesmo dele durante esse mês – em especial quando o posso contemplar na sua hora nascente”.
Parece-me que a minha vizinha não sabe bem do que falo, assim como não sei se tu aí do outro lado da página virtual acolhes esta minha característica com simpatia: a de ver o nascer do sol... quase todas as manhãs.
Hoje foi o caso. Foi precisamente nessa altura que abri a janela do quarto. Vai daí, a mosca que gelava no parapeito agarrou a oportunidade do calor do quarto dormido: entrou!
Olhámos uma para a outra. Quantos minutos terei insistido para que se ausentasse? Não os suficientes. Se eu sou teimosa – é o que me dizem –, a mosca ganha-me aos pontos. Como estou a aprender a render-me ao inevitável, retirei-me dessa luta. Há uns tempos atrás teria recorrido a uma arma que me dá poder – pelo menos em relação a esse reino de minorcas, nem por isso menos aborrecido: o insecticida!
Não valia a pena: afinal até me preparava para sair. Era eu que me ausentaria. Fui. Três horas depois regressava. E tu, que ainda estás aqui comigo, calculas que a casa não esteja vazia. É verdade. A senhora mosca – nesta altura já se pode considerar uma senhora, tal a sua resistência – mantinha-se à janela.
A chatice disto tudo são os vidros. Limpara-os no dia anterior. Mesmo que seja uma tarefa que me agrada – uma das minhas formas de limpeza mental –, não me apetecia repeti-la tão cedo. Há coisas mais interessantes que limpar vidros: estou certa que concordarás comigo. É possível até que tenhas alguém que o faça por ti. Aproveito para me oferecer – calma! não sou nenhuma oferecida: nesses termos que porventura magicaste por momentos. De qualquer modo, se quiseres que te visite, terei todo o gosto em ir a tua casa com esse propósito. Assim estejas perto de mim e no final partilhes um chá. Eh lá! Pensas tu que estou a gozar contigo. Podes perguntar à Judite, a quem disse que ajudaria nessa tarefa, para si árdua e aborrecida.
Aborrecida também poderia ser a mosca. Não só continua cá em casa – são três da tarde –, como conseguiu apagar a minha perseverante limpeza; que pelos vistos de perseverante não tem nada. Isto só confirma que a limpeza da casa, tal qual tantas outras coisas na vida, são como o mito de Sísifo. Eternamente repetidas, repetíveis e sempre com o mesmo objectivo: serem repetidas e voltar ao mesmo, apenas porque sim. Neste caso, para ter o vidro transparente. E até que valia a pena essa transparência total: o arco-íris assomou diversas vezes no horizonte. Ali fiquei a contemplá-lo.
Uma contemplação partilhada: com a mosca. É que mesmo que a linguagem não seja a mesma, há coisas para as quais as palavras são de somenos importância. E tu? Apreciaste algum arco-íris hoje? Não te preocupes. Ontem também observei uns quantos. Tendo em conta que a chuva nos continua a fazer companhia: desfruta a sua água e a sua ausência sob o sol. É quase certo que agarres esse instante num longo farrapo azul com uma tira em arco com sete cores. 
A fotografia não a tentes: pode dar-se o caso do instante se ter desvanecido entretanto.
A mosca. Finalmente saiu. São quatro da tarde e ela lá terá concluído a sua missão. O vidro, esse, esperará até que eu necessite de uma pausa nos pensamentos.

2 comentários:

  1. Confirmo a veracidade do teu gosto e dos teus préstimos por limpar vidros! E assim eu apareço mencionada na história da mosca, contada por ti é muito interessante , só tu para construíres u uma história que conseguiu despertar a minha curiosidade mesmo antes de saber que eu aparecia referenciada. Parabéns Any e obrigado por partilhares!

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    1. Obrigada tu, querida... Já sabes, quando o sol vier por um tempo prolongado, tomamos um chá ... Depois dos vidros :)

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