Fui mordida - Colca Canyon III

Fui mordida! Pela primeira vez na vida fui atacada por um cachorro. Parecia inofensivo. A marca na perna direita mostrou o contrário. Duas dentadas que avisavam ser péssima ideia avançar no caminho, a não ser que desejasse uma cicatriz para exibir a pretensa coragem.
Tal aconteceu no final do primeiro dia de trekking no Colca Canyon (em Novembro de 2014). O dia começou bem cedo, tendo a primeira paragem acontecido no miradouro mais conhecido e procurado para contemplar os condores que decidem fazer as alegrias dos turistas, viajantes e curiosos. Assim aconteceu e eu agradeci.
Após esse momento de profundo êxtase, uma carrinha de nove lugares transportou-nos para o local onde se iniciaria o trekking. Ainda mal começávamos e já no sentíamos cheios com tal visão maravilhosa.
O caminho iniciou-se, pois, com enorme satisfação e desde logo nos apresentámos entre nós. O casal de ingleses, a Claire e o Kevin, juntamente com duas moças de nacionalidade incerta, eram os elementos do meu grupo de trekking liderado pelo jovem e bem-disposto guia, o Nelson.
Ao fim de seis horas a descer, a descer e a descer pelas encostas íngremes, secas e estreitas do Vale chegámos ao alojamento onde pernoitaríamos a primeira de duas noites.
Uma escada em caracol, mas sem corrimão vai a caminho do sol, mas nunca passa do chão. Contrariamente ao fado de Camané, a nossa escada não nos conduzia  ao sol; sem corrimão e em sentido descendente prosseguíamos para o rio Colca. Sem sustos, sem sobressaltos, os sonhos eram alimentados pela paisagem vulcânica, que de tão assombrosa mal cabia em mim.

As pernas sentiam as ladeiras quando nos aproximávamos daquele que seria o descanso do guerreiro. Eu e as duas jovens instalámo-nos num dos seis quartos da casa de adobe. Sequiosa, quis comprar água na loja. Engoli em seco o preço a que a proprietária vendia esse bem mais do que precioso. Respirei fundo e decidi tentar a minha sorte de outra forma. Eram quase seis horas da tarde, quase no lusco-fusco. Mesmo assim, caminhei pelo trilho que aí nos conduzira. Muito próximo do alojamento havíamos parado por alguns minutos num quintal, onde uma senhora vestida a rigor nos seus trajes Incas vendia água e fruta. Também o seu preço me desmotivara. Porém, não era tão elevado quanto o do alojamento, o qual roçava o escandaloso.
Nestes sítios é o usual; tinha sido alertada. Como prevenida que costumo ser, fui abastecida. A questão é que bebo muita água. Além disso, ser prevenida é uma coisa. Ser masoquista é outra. Uma mochila para duas noites deve ter o suficiente sem com isso se tornar um fardo, que impeça o deleite de uma passagem tão extraordinária como a do Colca Canyon.
Por conseguinte, enquanto a proprietária do alojamento nos preparava o jantar, e já depois da breve paralisação, fui em busca daquela outra senhora inca. Não só não a encontrei, como fui agraciada por outro tipo de encontro: dois cachorros muito ciosos das suas funções de guardas. Fui eu que enfiei o rabo entre as pernas e regressei e paguei sem piar a água que realmente necessitava.
A luz do gerador apagou-se cedo e cedo nos deitámos para descansar, para assim ficarmos novamente fresquinhos na manhã seguinte. E assim foi. Às cinco e meia da manhã do dia seguinte prosseguíamos no trilho do canyon.
O alojamento da segunda noite deixou o grupo sem respiração. Uma piscina com as paredes mais altas do mundo! O que os nossos sentidos percepcionavam. Paredes onde o vento e a erosão gravaram figuras míticas, providenciando-nos viagens pelo mundo onírico. O final da tarde, com as pernas debaixo da água da piscina, auxiliou à merecida recuperação. O dia seguinte prometia um percurso totalmente ascendente e era fundamental que os músculos das coxas, sobretudo os ísquio-tibiais em cujas fibras se mantinham as memórias das descidas, se restabelecessem.

Na manhã seguinte, partíamos à mesma hora da madrugada anterior. Seis horas a subir. Uma ou duas pausas que permitiram a passagem das mulas carregadas e montadas por alguns viajantes mal preparados ou mal calçados, como era o caso de uma das jovens do nosso grupo. A chegada ao topo foi digna de comemoração. Para pessoas amadoras como nós, o sentimento de missão cumprida era exultante. Abraços e fotografias para a posteridade - assim guardávamos os quase três dias de partilha num lugar de beleza incomparável e indizível.
 
Fotografia de Kevin Trew
















Janeiro, 2016
Porto, Portugal

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