Caminho térreo para a Índia...*

Templo Dourado, Amritsar

Escrevo à beira-rio, a ver os elefantes passarem... Em Chitwan, a cidade de onde regressarei à Índia daqui a uns dias, com intenção de visitar Dharamshala, no Estado Himachal Pradesh. Aí vive Dalai Lama, exilado do seu país, o Tibete, considerado território chinês desde 1950. A invasão da China transformou, adulterou, destruiu uma cultura, um país, em nome da sua "libertação pacífica" face ao império da Índia britânica. Invasão sobre invasão, o Tibete continua a ser um anexo chinês, cujo controlo se repercute muito além da geografia.
 
Cerimónia Kalachacra, Templo Dalai Lama, Dharamshala

Os assuntos geopolíticos não são um assunto fácil. Não obstante, quando se adentra um pouco mais por outras realidades e contextos, as influências sócio-políticas ficam mais evidentes, com implicações e repercussões não apenas sobre os destinos a conhecer, mas sobretudo nas práticas quotidianas das respectivas populações. É difícil ficar indiferente, mesmo que o tema da territorialidade e das fronteiras políticas me intimide. É com demasiada frequência que estas linhas imaginárias que os homens criam resultam em conflitos, na sua maioria armados. Conflitos apenas termináveis para os que perecem durante essas guerras.


Dada a natureza pacífica do povo tibetano, o "acordo" foi assinado, mas uma grande parte das gentes exilou-se no mencionado Estado do norte da Índia Himachal Pradesh. Arrisco, por isso, a atravessar novamente a fronteira de autocarro (o corpo ainda se lembra das quase 40 horas sobre rodas) em direcção a Déli.

Não arrisco ir à ainda mais populosa Calcutá onde, no dia 20 de Maio de 1498, terá chegado Vasco da Gama. O explorador cumpria assim o sonho de D. João II: o de descobrir o caminho marítimo para a Índia. Ainda que o rei português já não fosse vivo para celebrar a descoberta.

As incursões dos portugueses pela Índia, ao longo da História, não se ficaram por aí. Goa é um exemplo de como Portugal terá expandido o seu império à escala global. Invasão atrás de invasão, soberania sobre soberania. É difícil aceitar de braços cruzados a necessidade que certos homens sentem em dominar, controlar, subjugar tantos outros homens.

Recorro novamente à 'nossa' História para ilustrar, de forma pouco colorida, aquele que é, a meu ver, o início de uma das épocas mais negras da vida portuguesa: o estabelecimento da 'santa'(???) inquisição em Portugal. A 23 de Maio de 1536 começava oficialmente a perseguição aos 'hereges'. Mais um pretexto, creio, para alguns aumentarem o seu poder sobre muitos outros.

Corro o risco. Mas pergunto: em nome de deus? qual deus? o do cristianismo? o do islão? o do judaísmo? ou em nome dos milhares do hinduísmo? o do sikhismo ou o do janaísmo? ou em nome das pessoas que terão dado origem ao budismo, confucionismo ou taoísmo?
Serve esta enumeração para realçar a pluralidade e a diversidade, sem com isso pretender fazer sobressair ou apagar qualquer crença religiosa.

Templo Sique, Amritsar


Na génese de (quase) todas está a necessidade humana de dotar sentido à existência. Ao mesmo tempo, podemos entrever em todas elas uma base compassiva, cujos princípios são, afinal, semelhantes e coincidentes entre si na sua essência: os do amor compassivo e incondicional.

O amor infinito que a Natureza nos demonstra a cada instante, providenciando de forma amorosa e incondicional o necessário para todos os seres vivos. Estejam eles atentos. Todavia, quando um homem se põe a pensar, transforma e quantas vezes adultera aquela ideia básica de compaixão. E, sem que se dê conta, surge aqui e ali uma luta de deuses (humanos) pelo poder... em nome de outros deuses. Ah... Como pode ser triste a vitória do deus do islão sobre o deus cristão e vice-versa.

Tristezas, angústias e pessimismo à parte, em alguns países é possível observar a co-existência de diferentes crenças religiosas. O Nepal e a Índia são disso exemplo. A entrada em algumas cidades nepalesas suscita, até, certas dúvidas. É no Nepal que encontramos o hinduísmo como religião oficial, mesmo que em Lumbini existam centenas de templos dedicados a Buda. Não fosse esta a cidade-berço de Siddhartha Gautama Buda. Aqui, os templos construídos e doados por muitos países asiáticos, como a Coreia do Sul, Myanmar, Camboja, Índia, concorrem entre si, em termos de grandiosidade, e com os pequenos templos dedicados a Shiva ou a Krishna ou a outros deuses hindus.
Lumbini, Cidade berço de Buda

Esta convivência cultural estende-se aos níveis mais prosaicos da vida quotidiana. 

Ao ponto de por vezes me perguntar se estou no Nepal ou na Índia. As vestes coloridas das mulheres, os cabelos pintados de quase todas as pessoas com cabelos brancos quantas vezes ficando de cor alaranjada, pela fraca qualidade da tinta , a música, os filmes de Bollywood, a mescla culinária entre o dal bath nepalês e o curry indiano, alguns hábitos como o de mascar paan (uma semente a que se junta nicotina e outras forma de tabaco, enrolado em folhas da árvore bétele) são facilmente visíveis em Chitwan a cidade que dá acesso ao Parque Nacional com o mesmo nome.

No 'parque protegido', (ainda) se podem observar muitos animais selvagens, como o rinoceronte, veados, crocodilos ou elefantes. Quanto a estes, a maioria já não é assim tão selvagem, e o uso e abuso a que estão sujeitos para satisfazer os caprichos turísticos, sugerem muitas outras questões...



Mas as semelhanças entre os dois países, pelo menos nas proximidades fronteiriças, são de tal modo visíveis que se pode perguntar se as guerras a que assistimos fazem sentido... Sobretudo num tempo em que a globalização promove o intercâmbio de culturas, tornando ainda mais difícil encontrar diferenças de substância. Daí que me questione cada vez mais acerca da necessidade de manter as fronteiras territoriais, geopolíticas... Claro que este assunto é sensível, mas fica uma semente para reflectirmos acerca do que queremos para as gerações vindouras...

Ironicamente, a data de 23 de Maio serve para evocar a proclamação da independência a Portugal, em 1179, concedida pelo Papa Alexandre III, através da bula "Manifestis Probatum".

Também nesta data, mas já em 1977, nascia uma pessoa muito especial, por isso, sinto-me compelida a abusar deste espaço para desejar feliz aniversário ao meu querido irmão...

Para terminar e tentando fazê-lo com mais cor, o mês de Maio é, a meu ver, um mês muito propício à contemplação em todo o território 'português'. De norte a sul, as flores oferecem-se aos insectos que espalham, voando, ainda mais cor e possibilidade para germinar muitas outras vidas. Uma celebração constante, iluminada e pintada pelas vozes das aves que cantam, em modo contínuo, para quem quiser escutar.

Depende, pois, de cada um de nós reconhecer e receber a generosidade infinita da Natureza. E depende, sem dúvida de nós, humanos, estar atentos e conscientes para A proteger e preservar. Se quisermos proteger e preservar a vida... Humana. E que seja uma vida mais humana...



*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

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