O outro*








O outro. Alguém para além de nós. Alguém que se cruza no nosso caminho todos os dias. E que por isso não nos é indiferente.
O outro. Alguém distante, com frequência apenas um número, integrando mais uma estatística.
O outro. Alguém tão próximo que tem o poder de nos afectar com mais ou menos intensidade.
O outro. Quase sempre alguém que, sendo exterior a nós, reflecte parte do que somos, ou do que gostaríamos de vir a ser, ou que tememos vir a ser, ou que de modo algum queremos vir a ser.
Não é raro que o outro seja alguém a quem colocamos uma etiqueta para que seja mais fácil encaixar numa categoria criada. Seja pela educação, seja pela influência social, seja por experiências vividas anteriormente.
O outro. Alguém que categorizamos, nem sempre fazendo a pequena ideia de quem é a pessoa à nossa frente, mas que de uma ou outra maneira nos incomoda. E por isso criticamos, rejeitamos, excluímos, e até enxovalhamos. No limite, maltratamos – sempre com gravidade.
A pessoa com deficiência foi (e ainda é em muitos casos) o outro que sofre(u) a exclusão da vida social por ser diferente, por não se encaixar  naquilo que consideramos ser normal. Aqueles que teoricamente não têm qualquer deficiência (pelo menos visível) são consideradas pessoas normais. As pessoas que se distinguem por uma qualquer incapacidade foram durante muito tempo qualificadas como anormais – para usar um dos termos mais ‘suaves’. A ‘evolução’ conceptual transformou-as em deficientes, mais tarde em portadoras de deficiência (como se se pudesse portar uma amputação, por exemplo), actualmente pessoas com deficiência. Confio que num futuro próximo sejam apenas e tanto Pessoas.
É de salientar, porém, que o termo ‘pessoa com deficiência’ de entre as palavras e expressões ainda em uso é, a meu ver, um mal (não muito) menor. Ao substituir a palavra ‘deficiente’ pela expressão ‘pessoa com deficiência’ retiramos o peso de uma etiqueta, cujo poder é o de catalogar uma pessoa pela sua diferença. Como se a pessoa fosse apenas essa diferença. Deficiente mental, deficiente disto ou daquilo. E o resto? Essa classificação retira a possibilidade de se olhar para a pessoa para além dessa (eventual) incapacidade. Ao passo que quando se utiliza a expressão ‘pessoa com deficiência’, em primeiro lugar está a pessoa e só depois a deficiência que a ‘caracteriza’, ou que a torna distinta.
        Essa característica poderá então implicar cuidados especiais, sugerir necessidades educativas especiais, para usar os termos institucionalizados. Também é disso que se trata, essa institucionalização tem por objectivo criar condições para que as pessoas tenham acesso aos diversos sistemas, nomeadamente o de saúde e o educativo, entre outros.
          No entanto, é minha expectativa – mesmo que pareça uma utopia – que num futuro não longínquo toda essa carga de estereotipia se dissipe. Tenho a expectativa que, mais cedo que mais tarde, seja possível criar as condições para que os seres humanos se olhem entre si e tenham capacidade para ver além das diferenças. Neste caso as que impliquem cuidados de saúde distintos. Quando isso acontecer, ficará óbvio aquilo que sempre fomos: todos seres humanos. E a grande categoria ‘seres humanos’ é, como quase as espécies dos restantes reinos, muito diversa. O espectro de possibilidades é tão vasto que as estatísticas que constroem os padrões de normalidade, excluindo com maior ou menor desvio, tornar-se-ão desprezíveis. Pelo menos no que concerne àquilo que mais importa: as pessoas com toda a sua plenitude. Somos todos pessoas e todos somos semelhantes com as diferenças que nos tornam pessoas únicas.
            Deficiência é uma palavra poderosa. Sem dúvida é de poder que se trata. Quem tem ou teve o poder para classificar alguém com deficiência? A não ser que seja com o objectivo de salvaguardar os tais cuidados ‘especiais’ será eventualmente aceitável. Considero, no entanto, que essa categorização não tem de estar necessariamente associada à palavra ‘deficiência’ e muito menos ‘deficiente’. No limite, todos iremos necessitar em algum momento da vida de cuidados especiais. De facto, algumas diferenças são mais visíveis porque aqueles que têm poder para planificar, por exemplo as estruturas físicas, se esquecem das futuras dificuldades a que estarão sujeitos. Basta dar um exemplo muito simples. Se os arquitectos e engenheiros se projectassem com oitenta anos de idade, lembrar-se-iam de planear edifícios mais ‘amigos’ de todas pessoas, independentemente das suas ‘características’ – prefiro este termo. As portas seriam seguramente mais leves, as informações seriam mais legíveis e em diversos formatos, etc., etc... Já para nem mencionar o exemplo recorrente de passeios indevidamente ocupados por carros muito mal estacionados.
É utopia? Creio que não. Até porque o momento que se vive actualmente representa muito bem a incapacidade que temos de olhar o outro de forma compassiva. As diferenças nas crenças religiosas e posições políticas são porta-estandarte que se utilizam para justificar o injustificável: a morte de milhares de pessoas.
Parece que acontece só aos outros. Àqueles cuja distância justifica (???) a nossa indiferença. Será preciso que o outro nos seja muito próximo para então tomarmos uma atitude? Não pelo ódio, mas pelo amor. Afinal, o amor é das poucas palavras que – quando sentida – ainda tem o poder de nos unir e de nos mostrar que somos todos seres humanos, quaisquer que sejam as nossas características.
Os acontecimentos recentes e ainda a decorrer sugerem que se repense na importância que tem a Declaração dos Direitos humanos. No dia 10 de Dezembro celebra-se essa declaração. A sua proximidade é uma oportunidade para ultrapassar o papel. Para colocar em prática o gesto compassivo e não o gesto bélico. Os conflitos, quaisquer que sejam, não se resolvem com toda a certeza com mais conflitos, com o uso da força e das armas. O outro é afinal outro ser humano, como nós!
 Os dias 3 e 9 de Dezembro, dedicados às pessoas com deficiência, juntamente com o dia 20, lembram a importância da solidariedade. São datas que nos podem tocar e ajudar a reflectir sobre o ‘outro’ que também mora em nós.



*este texto foi publicado no jornal o Chapinheiro

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