Abraçar a tolerância*





É no jardim da casa que escrevo esta crónica. Ao fim de mais de cinco meses na América Latina, de novo em casa. O jardim da casa é o cenário tranquilo que enche os meus olhos e o coração. É bom regressar a casa, muito bom! Foi isso que senti ao atravessar o corredor que separa a sala da recolha das bagagens, da zona de espera do aeroporto. Ali estava a família num sorriso único. Os abraços fortes e prolongados fizeram-me sentir querida, amada e, sobretudo, ligada.
O abraço tem esse poder! Não é a primeira vez que saliento este gesto tão simples e tão poderoso e é quase certo que o volte a fazer. Como não? A ligação que é possível sentir quando dois corpos se unem pelo abraço desenvolve, renova, reforça os afectos. No toque que se permite, o aconchego; na união de corpos que se estabelece, uma ligação que com frequência nos envolve numa cápsula sem as coordenadas do tempo e do espaço. Como se tudo o resto não existisse; como se nada mais importasse para além do odor mesclado, das batidas de dois corações em uníssono; como se duas pessoas se tornassem numa única entidade, cuja união tem a força de dissipar as fronteiras materiais da corporalidade. Creio que o poder do abraço está nessa possibilidade tão fácil de se concretizar. Talvez seja essa facilidade que torna o acto de abraçar não muito comum – na minha perspectiva.
Observo amiúde que as pessoas se coíbem de abraçar. Imagino que essa inibição seja fruto do reconhecimento do poder do gesto. Parece uma contradição, todavia, penso que é por isso que o verbo abraçar e a palavra abraço se reduzem a isso mesmo: a uma palavra no final de uma mensagem escrita, ou de uma conversa telefónica. Ao vivo e a cores tudo se altera.
As afirmações anteriores decorrem da convicção de que um abraço forte e genuíno é capaz de transformar e abrir o coração. No contacto físico sentem-se as semelhanças perenes em todos os seres humanos. Compreende-se a vulnerabilidade individual e apreende-se o sentimento de união capaz de dissipar qualquer conflito. É essa mesma vulnerabilidade, coloquemos assim, que permite que dois seres se liguem profundamente.
É provável que se as pessoas envolvidas em conflitos se encontrassem frente-a-frente, se se olhassem directamente nos olhos e se se tocassem, nem que fosse por escassos segundos, se dariam conta de como são as diferenças que nos tornam tão semelhantes. Porém, aquele estado de vulnerabilidade demonstra que sem os outros, sem os afectos, sem as ligações pouco somos. Calculo que seja uma das razões porque, na minha perspectiva, o abraço é mais raro do que o desejável.
Não é à toa que existe o dia internacional da Tolerância, a 16 deste mês. Ainda há muito a fazer em relação à Tolerância. Nem sequer é necessário dar exemplos sobre a sua falta. Importa antes, na minha opinião, destacar um dos princípios básicos para que as pessoas estejam em harmonia entre si. É um princípio válido para todos os níveis de inter-acção. Desde o mais simples com um desconhecido na rua, até ao nível das instituições mais poderosas; sendo que as instituições são constituídas por pessoas. Pessoas que se se olhassem de forma compassiva e com tolerância, se lembrariam a cada instante que os números e estatísticas são apenas falácias que escamoteiam o que realmente importa: as pessoas. Todas semelhantes na essência e todas distintas na sua singularidade única, se me é permitida a redundância.
Acredito que se nos abraçássemos mais, teríamos mais oportunidades de sentir cada pessoa em nós. Acredito, igualmente, que se em cada abraço nos deixássemos envolver profundamente reconheceríamos o que é primordial. Sendo provável, por conseguinte, que dias como o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher – a 25 deste mês – deixariam de fazer sentido. Não quero com isto dizer que basta um abraço para desculpar essa violência. Como não basta um abraço para qualquer tipo de violência. Contudo, a Mulher continua a ser vítima de muitos tipos de violência. A sua integridade física (emocional e de tantas outras dimensões) é posta em causa de forma tão frequente que até custa acreditar que se viva num mundo dito civilizado! Não obstante, se aqueles que incorrem sobre as mulheres, ao invés de as violentarem, as olhassem como seres humanos dignos que são, teriam um instante para reconhecerem que qualquer acto vil não passa disso mesmo: um acto vil que em nada dignifica a humanidade.
Bem sei que muita tinta correria sobre este dia; há tanto a fazer, tanto a fazer... eu vou neste momento fazer a minha parte: vou abraçar uma mulher linda que está em mim e dissipar as saudades de cinco meses de ausência física. E o melhor é ir já; o tempo prega tantas partidas que é melhor não deixar para depois.

*Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro

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