Guilherme



Está feliz, Guilherme. O seu sorriso debaixo do bigode pintado de castanho, tal como o seu cabelo ralo, está estampado desde que acordou. Não se lembra de se mirar no espelho e ver os dentes brancos e certos expostos logo pela manhã. De taxa arreganhada, afirmou enquanto penteava o bigode: hoje não preciso de ti! atirando o boné cor-de-laranja para a cadeira do quarto.
O sol quente da manhã rapidamente o fez arrepender da rejeição por vaidade. Desviou-se do pormenor e foi caminhando num passo levemente dançado até ao restaurante Mandala. Guilherme é proprietário de um dos poucos restaurantes vegetarianos de Arequipa. Provavelmente o mais económico e natural da segunda cidade do Peru. Ao contrário dos inúmeros restaurantes turísticos da cidade, o Mandala tem uma decoração simples, porventura semelhante ao tipo de refeições que oferece. O preço do almoço não é directamente para o turista, apesar de muitos turistas aí se sentarem e desfrutarem do menu completo por pouco mais de um euro, câmbio efectuado. Entrada, sopa, segundo prato, sobremesa e refresco, tudo incluído.
Dada a escassez de restaurantes desse género e principalmente atraída pelo preço, Luísa entrou no restaurante para almoçar. Turista de mochila às costas, alojada num albergue próximo e sempre a fazer contas de cabeça. Luísa gostou, repetiu o restaurante e voltou a repetir. Até que Guilherme, mesmo percebendo-se muito mais velho que a mulher jovem, se aproximou da sua mesa e perguntou se poderia fazer-lhe companhia. Claro que sim, estava sozinha. É sempre mais agradável almoçar e conversar com alguém. Além disso, Luísa viaja sozinha e uma das razões é precisamente essa, a de estar disponível para conhecer gente dos locais por que vai passando.
Entusiasmado pela abertura, Guilherme de imediato perguntou de onde era, o que fazia ali. Luísa está habituada a esse tipo de questões, assim como está ciente que gera curiosidade em quase todos os nativos com quem vai entabulando conversa.
Guilherme não era excepção. Escutava maravilhado a história da mulher que abandonou o emprego e viaja sozinha, sem marido, sem filhos. Talvez à procura de alguma coisa. A busca do desconhecido magnetizou Guilherme. E arriscou: posso convidar-te para jantar amanhã? Foi a rapidez da afirmativa que mais surpreendeu Guilherme. De cima dos quase sessenta anos havia uma mulher, aparentando menos vinte, que aceitava jantar consigo.
Guilherme não sabia, porém, que Luísa ficara sobretudo cativada pelo seu bigode. Desde o primeiro momento em que viu o homem que este a fazia lembrar alguém. Por mais que se esforçasse a memória não ajudava. Luísa também tinha ficado interessada na sua história e no seu restaurante vegetariano. Desejava compreender como é que o viúvo   uma das primeiras informações de Guilherme: também sou sozinho... se decidira abrir um estabelecimento de comida saudável, a um preço tão reduzido num local onde aparentemente as pessoas ainda estão pouco sensibilizadas para aquele tipo de alimentação.
Na  noite seguinte, lá estava Luísa e foi a sua vez de escutar. Sem nada de especial para  vestir e também sem necessidade para se produzir, Luísa notou que Guilherme estava aperaltado. Ao mesmo tempo nervoso. Ou pelo menos um pouco agitado. Luísa sabia que era a primeira vez que o homem convidava alguém desde que a sua mulher morrera dez anos antes.
Abri este restaurante depois de sair do hospital... Do hospital?; interrompeu Luísa com surpresa e expectante pelo resto da história. Guilherme sofreu de cancro. Foi a fé em Deus que me salvou repetiu várias vezes. E tu acreditas em Deus? perguntou ansioso. À semelhança da maioria dos peruanos, Guilherme é um fervoroso crente em deus e sem dúvida que para si foi um milagre ter ficado curado. A vida que recomeçou ao sair do hospital impelia-o a retribuir a dádiva. Encontrou no Mandala o modo para agradecer, oferecendo refeições saudáveis e quase ao preço de custo. Luísa sorria. Conheceu muitos casos com desfechos totalmente distintos. Compreendia o sentimento que motivava Guilherme.
No final do jantar acompanhado de pisco, o vinho tradicional do Peru, Luísa despediu-se grata e Guilherme reforçou o convite. Sempre que quiseres vir aqui almoçar, és muito bem-vinda. Eu ofereço!
Na manhã seguinte, frente ao espelho, Guilherme sente-se leve. Como se tivesse menos dez anos. Tem esperança que Luísa apareça novamente para almoçar. Ao meio-dia a ansiedade é já o seu estado. Não sabe a que horas virá, se vier. Nos dias em que ali foi, as horas não coincidiram. Parece ser imprevisível. Ao meio-dia e meio, Guilherme tinha ido pelo menos três vezes à porta do restaurante espreitar como quem não quer a coisa à rua. Não era necessário. As janelas são amplas e a sala tem o mobiliário simples disposto para as mesmas. A hora de ponta do restaurante é entre as treze e as catorze horas e Guilherme está sempre ocupado a servir e a receber os pagamentos. Às duas e meia nem sinal de Luísa. O sorriso foi substituído por um beicinho discreto e Guilherme é agora um homem a sentir o abalo de uma possível rejeição. Quem sabe amanhã, em suspiro esperançoso...
Guilherme não vê Luísa de mochila às costas a sair do albergue. Entrou num táxi e dirigiu-se para o aeroporto. E finalmente lembrou-se. Guilherme era igualzinho ao Cantiflas. Seguiu no táxi emocionada. Foi o tio Manuel quem a levou pela primeira vez ao cinema e para ver um filme do mexicano cómico. O tio Manuel que morreu há meia dúzia de meses com o mesmo cancro que Guilherme.

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