Desde o Chile


... Um corte no pé X



            A viagem ao Chile. Calculo que tu, leitor ou leitora queiras saber um pouco mais. Afinal, pouca informação te terá dado a minha querida namorada Margarida, de quem com efeito sinto tremendas saudades. É natural. Sou português e o sentimento da saudade deve estar impregnado nos meus genes, assim como nos meus conterrâneos. E tu leitora ou leitor, costumas viver esse sentimento amiúde? Confesso que tento desviar-me da saudade: mostra-me o quão importante são os afectos, ao ponto de se tornarem mais do que isso e de se transformarem em autênticas algemas. Felizmente, no que à minha namorada concerne, a saudade mútua não nos impede de sermos e estarmos como ambos queremos.
O mesmo não posso dizer da minha figura maternal. Sim, já terás uma mínima ideia da minha idade; mas os meus vinte e nove anos não impedem que a minha mãe me continue a ver como o seu lindo e muito querido menino: “Ai, o meu Jorginho... será que se alimenta em condições? Será que tem onde dormir? Onde andará ele?” – guardaste, leitor ou leitora? Ainda não te tinha revelado o meu nome: Jorge. Dou-te mais alguma informação. Tenho 1,85 m – só para ficares com uma pequena imagem da minha longa e esguia (sim, esguia, mas não menos atlética) estatura.
            Aquelas e outras questões são muito vívidas e poderás perguntar, leitor ou leitora como se gerem. Não se gerem. Aceitam-se! Assim como aceito as minhas próprias questões, também essas no âmbito existencial. Terás até percebido, leitor ou leitora, que terão sido essas dúvidas que me terão conduzido até Santiago do Chile. O frio que sentia em Janeiro foi apenas um pretexto. Sentia-me um tanto esgotado do ram ram do meu emprego. Todos os dias entrava às nove da manhã no banco e todos os dias chegava a casa a hora incerta, depois de ter atendido uma série de rostos tão impessoais que não sou capaz de te traçar uma fisionomia com acerto.  
Bom, na realidade, é provável que tal também se deva ao facto de enquanto no balcão tentar uma outra realidade. Viste o filme ‘A Vida secreta de Walter Mitty’, leitor ou leitora? O meu caso era efectivamente muito semelhante, com a diferença de me observar, qual espectador confortavelmente instalado numa nuvem. Não é raro que esta atitude onírica me coloque em situações embaraçosas e chego mesmo a duvidar-me no estado em que me encontro. Tal como Lao Tsé questionou depois de sonhar ser uma borboleta: ao acordar viu que afinal era um homem. Nesse momento, não sabia se era um homem que sonhara ser borboleta ou se era uma borboleta que sonhava ser um homem. Às vezes eu não agarro o sonho; outras vezes não desperto... da realidade. Prefiro-me no sonho – e nas nuvens! Por isso, voei até ao Chile e daí para outros lugares – dar-te-ei pormenores a seu tempo.
Pergunto-me, então, quando observo em complacência a brancura macia sob os meus pés: estarei nas nuvens ou as nuvens estarão em mim? De que substância é feita a felicidade? De que substância é feita a liberdade? Calma, leitor ou leitora! Nem sempre divago sobre essas questões, pese embora tal me ocupe com certa frequência. De qualquer modo, é a planar nas nuvens que me sinto realmente bem. Diria mesmo que esse é um dos meus lugares preferidos: a paisagem é quase sempre singularmente extraordinária. Não é por isso estranho que aí me deseje o mais tempo possível.
Se pudesse manter-me-ia sempre nesse plano – a vista tende a ser muito mais abrangente. Consigo ter uma perspectiva global da realidade e não me retenho no que é normalmente acessório. Senti isso o ano passado na Madeira – onde fiz o baptismo de vôo de parapente. Como era a primeira vez, saltei acompanhado de um monitor. O vento nesse dia era brando, mas o suficiente para subir, subir bem alto. E do alto das nuvens, com o mar azul sob os meus pés, deslumbrei-me com a ilha das flores.
No parapente, qual sofá aéreo e sem chão, contemplei os socalcos de cultivo, as veredas e escarpas, as praias de cascalho e ao fundo o Vale do Curral das Freiras. “És doido, Jorge”, escutei quase de imediato. Ora, quem como eu já saltou de para-quedas, sabe perfeitamente que o vôo de parapente em tandem é para meninos. Foi o meu pai, outrora orgulhosamente para-quedista na tropa, que ofereceu o curso! Ficou todo satisfeito quando o seu Jorginho mostrou gosto em seguir as suas pisadas aéreas. Como dizia, saltar de para-quedas – sozinho! –dispara todas as endorfinas e mais algumas e nas várias fases.
A primeira aquando da passagem para a asa. No alto dos mil metros, sentado na borda da avioneta, a transferência para o vazio da asa é uma sensação indizível. Erguer-me para me transpor para a asa. E se o pé falhasse? Não falhou! Com as mãos apoiadas na barra da asa, o momento seguinte é elevar um dos joelhos até ao peito, contar até três e lançar-me para trás. O que é o mesmo que dizer, atirar-me para o espaço sideral. Cinco segundos contados e o para-quedas abre-se. E depois... depois é planar, planar... As mãos nos comandos guiando a velocidade da descida e a trajectória; mais para a direita, mais para a esquerda. O que não é propriamente o mais relevante. O fundamental é mesmo tentar desfrutar pelo maior período de tempo.
O último momento de tensão: a aterragem. A técnica de aproximação ao solo, a fim de evitar impactos bruscos nos joelhos e tentar uma abordagem suave do corpo ao relvado. Foi no último de quatro saltos: uma branca; falhou qualquer coisa. Esqueci-me totalmente dos procedimentos para a aterragem e embati de rabo no chão! A minha namorada Margarida observava-me estarrecida. Ficou em pânico: terei caído de cinco ou seis metros de altura. A fissura no cóccix diagnosticada pela radiografia ainda hoje me impede de estar mais de hora e meia sentado.
Deve ser uma das razões por que prefiro voar e planar ao invés de me sentar... no balcão do banco! Já não aguento mais os clientes. Muitos, como eu, sem dinheiro e sem saberem  como esticá-lo. Não saberão eles que o dinheiro não é como como as chicletes. Antes fosse, mascar e deitar fora. Mas não é bem assim. Na verdade, compreendo-os muito bem. Tivera eu uma árvore pejada de notas de cem euros e é quase certo que não mais me veriam sentado por mais de quinze minutos. A não ser que fosse com os pés debaixo de uma mesa rodeado de amigos com bom vinho maduro – tinto de preferência!






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