Christine. Nos seus olhos brilhavam
esperanças esverdeadas. Do seu rosto suave emanava uma espécie de afago. Quem
sabe fosse do tom de voz, no limiar do audível. Na esplanada do terraço do hostal em Xela: a melhor vista sobre a
cidade, gabava o anúncio exterior. Conhecemo-nos durante uma das refeições.
Fim de tarde, lanche ajantarado, o meu: um abacate com tomate, temperado com um
fio de azeite e sal com sabor a alho. Encontrei na cozinha do albergue,
disponível para aqueles que se serviam da cozinha. O meu caso, o de Christine,
também. No seu prato algo semelhante ao meu. Estávamos as duas a iniciar a
refeição e sozinhas. Por pouco tempo. Com natural naturalidade, uma de nós terá
entabulado conversa. A redundância não é despicienda. É com naturalidade que
aqueles que viajam aparentemente sozinhos se encontrem ou se dêem a encontrar.
Tínhamo-nos encontrado, o que senti em relação a mais esta
alemã.
Christine estava de férias na Guatemala. Era professora
numa instituição para pessoas com deficiência - pressinto que a sua vocação se
tenha desenvolvido pelo facto do seu irmão viver com síndrome de Down. Também
fiquei com a sensação que a sua opção de residir em Zurique fora uma maneira de
se distanciar, o suficiente, da sua família. Das suas palavras, depreendi que
esperavam demais dela. Contudo, é possível que a sua percepção fosse antes
resultado de dilemas interiores. Quantas vezes dou por mim a julgar-me; com
frequência percebo que era eu que me exigia algo que aos outros nem sequer
passara pela cabeça. Não é raro, por isso, que sejamos nós próprios as pessoas
mais críticas relativamente à nossa forma de ser e estar. De qualquer modo,
aquela sua circunstância familiar provocou-me algumas cogitações sobre os laços
mais ou menos lassos, mais ou menos fortes que nos (des)ligam aos que nos são
mais próximos por via genealógica.
Como eu, Christine passara uns dias
em Antígua, a antiga
capital da Guatemala. Não como eu, passou toda a primeira quinzena de Julho na
cidade mais turística do país. Uma cidade muito limpa, com a maioria das casas
em estilo colonial muito arranjadas e coloridas. Até o turista mais distraído
reconheceria a influência da cultura (forma simpática de dizer imposição,
invasão...) espanhola. As amplas e rasgadas varandas de madeira escura
contrastando com cores garridas, como o amarelo torrado, o azul eléctrico ou
cor-de-laranja eram alvo de fotografia e admiração por aqueles que passeavam
nas ruas e ruelas em paralelo esbatido pelos cascos de cavalos de outrora.
Uma das razões para que Antígua seja
muito visitada, sobretudo por pessoas dos Estados Unidos, é a fama das suas
escolas de espanhol. Local onde se aprende esse idioma da forma mais correcta
em toda a América Central: um dos slogans, ao qual Christine não ficou
indiferente. Aí se alojou numa família de acolhimento, enquanto frequentou uma
das inúmeras escolas, sentindo-se comprometida em comunicar dia após dia em
espanhol.
Foi, pois, nessa língua envolvente
que começámos a conversar, partilhando experiências e histórias que se foram
transformando em confidências à medida que os dias se alongavam em nós.
Estivemos as duas no hostal o tempo
suficiente para conhecer a cidade e para irmos juntas num trekking ao vulcão Santa Maria. Um dos mais emblemáticos nos
arredores de Xela. O plural, já que a Guatemala é um país cuja geografia se
caracteriza pela existência dessas formações vulcânicas. Havia outros, mais
altos, mas que implicavam mais dias e acampamento. Nem eu nem a alemã tínhamos
a intenção de subir mais alto que os quase quatro mil metros que o vulcão de
Santa Maria impunha. Desde logo pela preparação fisiológica que tal
pressupunha. E, mesmo assim, a nossa escolha era já arriscada para Christine,
como de facto se veio a confirmar. A alemã não estava habituada a tão longas
caminhadas, nem tão-pouco à altitude.
Eram cinco da manhã quando saímos do
carro que nos transportou ao início do trekking.
Connosco, mais um casal de belgas, esse sim, bem preparado física e
fisiologicamente. Mantive sempre a tranquilidade suficiente para assegurar que
Christine nos acompanhasse sem receio de não ser capaz. Caminhávamos devagar, a
fim de permitir que os nossos corpos se adaptassem à crescente altitude. Apesar
de 3700 metros não ser uma altitude muito elevada, para quem não estava acostumada
como a professora, era já o suficiente para que algum mal-estar interviesse no
seu modo ascendente. Ademais, o ritmo lento permitia que fruíssemos e
apreciássemos a paisagem circundante.
O dia flutuava sobre a montanha que
íamos subindo, passo a passo, sentindo o ar que se ia tornando um pouco rarefeito.
Lado a lado, quando o ‘sendero’ oferecia a largura para ambas. Eu atrás quando
assim era necessário. Escutava os passos como em sonhos. Auscultava a
respiração mais forte, como quem quer inspirar o mundo num arfar que se ia
aprofundando. A bruma matinal ocultava o recorte das serras que os olhos
ansiavam vislumbrar. A partir das oito horas o sol jorrava já sem pruridos ou
filtros os seus raios de luz límpidos. Agradecemos.
Eram nove e meia quando, no alto do
vulcão e num fulgor de um instante, os sentidos se abriram ainda mais para
captar a névoa quente que nos tocava a pele. Abaixo do topo outro vulcão.
Santiaguito, mais pequeno mas em contínua actividade desde que se formou. De
quando em vez uma erupção. Os jactos de vapor que Santiaguito lançava sobre nós
lembravam os contornos de fantasmas, enquanto sentadas fazíamos o merecido
descanso, ao mesmo tempo que compartilhávamos o lanche já necessário. Ali
ficámos meia hora a contemplar a cidade, o vulcão e as serras. Não as de
Almeida Garrett, mas as que o nosso coração guardou como um segredo.
Em segredo pareciam estar as pessoas que se haviam
descolado desde a povoação até ao topo da montanha, para realizarem um ritual
pagão com laivos cristãos mesclados com as práticas Maias. Pelo que o guia nos
contou, era muito frequente que os nativos de Xela fossem até ao cume do Vulcão
Santa Maria. Saíam de madrugada, a fim de alcançarem o topo antes do amanhecer.
Realizavam o seu ritual de agradecimento à Mãe Terra pelos campos cultivados e
respectivas colheitas. Desde o início do nosso percurso que reparámos em grupos
de duas ou mais pessoas. O ritmo que imprimiam ao seu andamento não nos era indiferente,
à medida que nos ultrapassavam numa leveza invejável. “Caramba, tão rápido e
nós aqui quase a morrer...”
Os farrapos de felicidade que nos cobriam eram mais que
suficientes para que aceitássemos as nossas limitações, desviando-nos das comparações
que em nada contribuíam para desfrutar de um lugar, onde a magia se fazia sentir
no ar frio e quente da manhã. A nossa fadiga era já invisível, estava lá atrás.
Apenas assomou quando, na descida, os joelhos nos lembraram que a descer
existem alguns inimigos para as articulações. Um discurso que, apesar de
parecer hiperbólico, resulta antes da ressonância do trilho pejado de pedras e
rochas, em relação às quais importava dar a devida atenção.
A chuva que nos visitou a um terço
do caminho de regresso foi um estímulo ao avanço mais rápido, sem com isso
ignorar a necessidade de manter os olhos bem abertos e as mãos sempre alerta.
As sombras de um azul molhado, no
verde exuberante da vegetação, dissiparam o tremor das pernas e o sol, que
entretanto regressou dardejando os seus raios quase escaldantes, contribuíram
para uma serenidade líquida. Uma serenidade calada que só aqueles que se
aventuram no desconhecido conhecem e agradecem no regresso a casa... Neste caso
ao hostal em Xela.
No dia seguinte, almoçámos juntas na
esplanada com a melhor vista sobre a cidade. A despedida que sabíamos ser um até
já. Christine seguiu para o Lago Atitlán, onde eu estivera
anteriormente. Mas duas semanas depois, a vida quis que nos voltássemos a
abraçar. Ainda na Guatemala, na cidade ancestral Tikal, fizemos a visita guiada
num mesmo grupo...
Março,
2016
Matosinhos
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