É muito raro consultar guias de
viagens antes de embarcar. Se pesquiso no mundo virtual informação sobres os
locais em que já me encontro, é sobretudo para ter noção do que será mais ou
menos interessante conhecer. Parece óbvio. Não é estranho, porém, que essas
buscas decorram de forma caótica e sem grande curiosidade.
Poder-se-ia perguntar então como
escolhi este ou aquele destino. Escutando de viva voz quem por lá andou. As
histórias, aventuras e desventuras de outros viajantes e/ou turistas são os
meus guias preferidos para prosseguir a cada dia.
Segui para a Isla del Sol em
Copacabana, Bolívia, por exemplo, por sugestão de Hanuku. Encontrámo-nos numa das ruas de Cusco,
dois dias depois do Salkantay trekking. Vinha com Bastien muito
sorridente – como sempre, aliás. “Vou para Puno, quero conhecer o Lago Titicaca”.
O lago mais alto do mundo – a cerca de 3800 metros – está entre o Peru e a Bolívia. “Porque não vais antes para
Copacabana? Estive lá e penso que é mais interessante que do lado do Peru,
desde logo por ser muito menos turístico...” Porque não, pensei. Afinal, até
prefiro lugares mais tranquilos. Das palavras de Hanuku (mais do que as
expostas aqui) emanava algum mistério.
Na
noite do dia seguinte, apanhei o autocarro nocturno rumo a Copacabana, não a do
Rio de Janeiro, mas da Bolívia. Uma novidade para mim. A viagem nocturna
proporcionou-me um encontro com Arnaud. Um rapaz pouco mais novo que eu, de
origem francesa. Tal como em Bastien – o namorado de Hanuku –, denotei aversão
ao seu país, parecendo também renegar a sua nacionalidade. Que terão os
franceses contra a França? Perguntar-me-ia dois meses depois, ao conhecer Vivian em Bogotá.
Por
outro lado, ao longo destas viagens tenho vindo a apreender aquilo que pode ser
entendido pela célebre expressão ‘cidadã(o) do mundo’. A partir de certa
altura, quando os meses fora do país de origem ultrapassam a mão cheia,
torna-se irrelevante a resposta à questão: De onde és? Observo, antes, uma
tendência entre os viajantes de longa duração perguntarem e/ou a reflectirem
sobre uma possível resposta às perguntas: De onde vens? Para onde vais e
porquê?
Durante
a viagem para Copacabana, Arnaud contou-me, em castelhano, parte da sua vida
pelas ruas, de várias cidades da América do Sul, a tocar trompete. Não me
falava em francês, não me falava em inglês. Na sua perspectiva, se estávamos no
Peru a caminho da Bolívia, fazia mais sentido que nos ligássemos através do
idioma local. Nem sempre era fácil para mim. Aterrara em terras ‘calientes’
havia apenas três semanas. Esforcei-me. Compreendia o que me dizia. Pela minha
parte, era sobretudo em inglês que me expressava.
A sua
tatuagem no antebraço, desde o início que me suscitou curiosidade. Foi a
primeira de muitas semelhantes que, entretanto, observei em muitos estrangeiros,
a viverem mais ou menos temporariamente em terras além-mar. Copacabana – um
local misterioso, afirmava Arnaud. Como que confirmando a suspeita que sentira
em relação à sugestão de Hanaku. Copacabana convoca, acrescentava, mais um ou
outro sentido para além dos cinco a que estamos habituados a estimular. Estou a
ser optimista; o sentido da visão é o predominante nas sociedades ocidentais e
nas cada vez mais ocidentalizadas.
No
pulso de Arnaud estava gravado, segundo ele, o símbolo do infinito e da eternidade:
duas linhas em torno do pulso separadas por dois ou três centímetros, sendo que
uma das linhas apresentava o dobro da largura da outra. Arnaud desejava viver na eternidade do momento.
Enquanto
vagueava pelas poucas ruas de Copacabana, percebi ao que Arnaud se referia ao
chamar-me a atenção de que seria muito fácil encontrar o que eu quisesse em matéria
de estupefacientes. Razão pela qual muitos aí se detinham por tempo
indeterminado. Não obstante, ao ver um grande edifício da polícia especial de
narcotráfico, não deixei de ficar surpreendida. Era o primeiro que via. Ademais,
vinha assistindo a um controlo muito grande das bagagens.
De
todo em todo, Copacabana foi o único local na América Latina em que vi mais do
que uma pessoa a utilizar seringas para se apaziguar. A última vez que tivera
essa infeliz visão (na minha perspectiva, claro) fora em Saigão – ou Ho Chi
Minh – um ano e meio antes. Não será estranho que estivesse atenta a alguns
pormenores; algumas semanas antes revisitara a vida de Christiane F.
Essas
visões não alteraram, todavia, o meu estado de ser ao embarcar na pequena
lancha, que saía da vila rumo à Isla del Sol. Eram oito da manhã quando um
rapaz sentado ao meu lado entabulou conversa em inglês. Rapidamente passámos ao
modo português. Paulo era de São Paulo e estava quase a terminar a sua viagem
de seis meses. Um jovem de vinte e sete anos, cuja simpatia transformou as duas
horas de ondulação no lago em pouco mais de cinco minutos.
É
curioso como a coordenada temporal é experienciada de forma tão distinta,
dependendo da pessoa com quem a vivenciamos. Apesar de não me recordar dos
inúmeros temas que pintaram o nosso trajecto, o sorriso aberto é a imagem que
guardo do jovem brasileiro.
Paulo
só tinha duas horas na ilha. Despedimo-nos, pois, com um abraço até um dia
destes, quem sabe... Segui pelo lado oposto, com o objectivo de calcorrear tranquila
e serenamente a ilha que dizem ser o berço da civilização Inca.
Em cada
passo sentido e escutado na ilha do Sol, agradecia a Hanuku a experiência de
silêncio colorido que escutava. Os sons corriqueiros das actividades humanas
estavam ausentes. O chilrear dos pássaros, o rumorejar das folhas pela brisa
que as trespassava, o zurrar das mulas e o ruminar das alpacas e dos lamas: os
elementos da minha paisagem sonora.
Merendei
debaixo de uma oliveira numa clareira de um pequeno planalto. Os meus olhos
abraçavam a vastidão do lago tíbio e azul de loio. Tentavam também agarrar as
cores quentes e terrosas da ilha.
No
caminho de regresso ao cais, parei uns largos minutos a fim de contemplar as
brincadeiras de duas crianças. Corriam e saltavam rindo muito, muito. Espiava o
deslumbramento que só as crianças – ou aquelas que permitem as crianças em si –
vivenciam. Os seus papagaios amarelos, vermelhos e azuis voavam. E voavam por
tão-somente correrem escutando a direcção do vento.
Para
onde iriam os papagaios de papel? A lado nenhum. Deixavam-se ir... pelo vento
morno e terno que envolvia a Ilha do Sol – no lago Titicaca...
Março de 2016
Matosinhos, Portugal
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