Página em branco…*









Cada vez que os três dedos – polegar, indicador e médio – seguram a esferográfica e a pressionam sobre o caderno – neste caso, uma sebenta igual àquelas que usava quando andava na escola primária; adquiri algumas na feira da Vandoma e só por isso vale a pena regressar; o que não está longe de acontecer. Cada vez que os dedos seguram a esferográfica e a pressionam sobre a sebenta, dizia, aguardo com confiança que as palavras surjam. Palavras que se encadeiam, umas a seguir às outras, com o intuito de expressar uma ideia, um sentimento, uma opinião, ou tão-somente, como acontece neste instante, para mostrar que estou receptiva a uma Qualquer Inspiração. Inspiro profundamente, calo os pensamentos, como numa atitude meditativa, e permito que a esferográfica flua.
Até ao momento ainda não terei alcançado ou escutado algo que valha a pena partilhar.
Há uns tempos, tomei a decisão de desenvolver estas crónicas, e grande parte do que vou escrevendo para partilhar, com o objectivo de provocar no leitor e na leitora pelo menos o esboço de um sorriso. Nem sempre é fácil, dado que os temas que cada mês me oferece nem sempre são passíveis de gerar textos que a tal conduzam. Pretensão minha, poderá aventar-se. Todavia, essa resolução tem um motivo.
Partilhar as minhas opiniões sobre assuntos da actualidade não é, a meu ver, um bom propósito para o espaço que aqui me é concedido. É natural que as minhas apreciações sejam distintas de quem as lê. Podem até ser tão pessimistas em determinadas ocasiões, que a sua publicação seria apenas mais um momento infeliz. Quero com isto dizer que, tal como na minha vida, também aqui prefiro compartilhar o que, pelo menos na minha perspectiva, conduza a uma reflexão – mesmo que superficial – de um modo positivo – coloquemos assim.
A vida quotidiana é tão cheia de estímulos negativos – mais uma vez coloquemos assim –, que ler um texto que surta o mesmo efeito não é, de todo, a minha vontade.
É provável que nessa empresa nem sempre alcance o sorriso na leitora ou no leitor. Porém, posso afirmar que quase sempre é com esse intuito que a sebenta se abre, os dedos seguram na esferográfica e a pressionam em direcção à página em branco.
Com todo este paleio, é quase certo que o único efeito que terei provocado até ao momento tenha sido um bocejo. Ora, isso pode até ser interessante. Repare o leitor ou leitora: em noites de insónia, pode sempre pegar no jornal e abri-lo na página onde aparece uma fotografia da minha pessoa e pensar: aqui está alguém que me pode ajudar a dormir. Et voilá!
Este mês corro, pois, o risco de me ser aplicada a expressão: fala fala fala, mas não diz nada.
Bom, até pode ter a sua razão, a leitora ou o leitor. De qualquer modo, pode eventualmente aproveitar a oportunidade para desenvolver um pouco mais a empatia e a tolerância. Qualidades, a meu ver, primordiais para que olhemos as pessoas que nos rodeiam de forma compassiva. Aceitar, mesmo que não se compreenda o porquê, os comportamentos e as atitudes dos outros sem tecer qualquer crítica ou julgamento. Afinal, que sei eu por que experiências esta ou aquela pessoa terá passado. Pois é... quantas vezes terei eu mordido a minha língua viperina escassos segundos após um comentário mordaz. Só porque alguém terá dito algo que me terá soado desagradável. Contudo, tenho aprendido que quase nada é pessoal, que quase nada é dirigido a mim. Com muita frequência, as palavras menos simpáticas que escuto decorrem de incidentes ou acidentes prévios à interacção em que estou envolvida. Por esse motivo, tem sido cada vez mais comum que, antes de reagir, olhe para a pessoa à minha frente e me lembre que também ela é um ser humano, como eu, cuja história de vida eu não tenho a mais pequena ideia e que por isso sou totalmente ignorante em relação ao seu modo de estar. Um modo de estar que não é necessariamente – e é até improvável – o seu modo de ser.
Como no dia 25 de Abril se comemora o dia da Liberdade em Portugal, acabo de ter o meu momento de livre expressão, confiando que a leitora ou o leitor também aproveite a não garantida liberdade de ser quem é. Obrigada pela compreensão...


* Este texto foi publicado no Jornal o Chapinheiro

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