No último Natal


https://www.youtube.com/watch?v=E8gmARGvPlI 




Com ou sem certezas, a minha adolescência começou quando saíram os calendários com os cantores de música Pop, no início da década de 1980. Na revista Bravo, as fotografias de cantores como os Wham eram cortadas, coladas e admiradas por mim, pela Tété e pela Cristina nos Olivais Sul. Para além de participarmos e organizarmos campeonatos de bilas e de pião e de espeta, éramos acérrimas admiradoras dos ídolos que se começavam a formar nos nossos corações adolescentes.
Passávamos tardes no quarto da Cristina. Era ela quem tinha o álbum de vinil dos Wham, que incluía canções como Careless Whisper, Wake me up before you go... Ah, como nos imaginávamos nos braços daquele loiro de brinco na orelha: que ‘giro’, que ‘gato’, que ‘pão’... os termos utilizados para nos referirmos àquele que para nós era, seguramente, o cantor mais bonito à face da terra.
Com toda a certeza, a minha adolescência ficou marcada por uma figura paternal pouco exemplar, ahahah, mas também com certeza, marcada por uma figura assaz corajosa. Pelo menos é desse modo que fui interpretando as metamorfoses que o tornaram ‘older’. Amores rápidos, últimas tentativas com muita fé, em diferentes esquinas, íamos lá para fora, cantando com ele contra a xenofobia, contra o preconceito.
Escutando as músicas do ‘Last Century’, em liberdade, dancei, cantei muito feliz com a M.A em Coimbra, quando o George Michael nos presenteou em concerto, ao vivo! Terá sido odiado, criticado, mas certamente muito amado por quem sempre o admirou e cantou, escutando com respeito as letras que ao longo do tempo nos ofereceu, que connosco partilhou.
A notícia de hoje provocou uma torrente de doces memórias. Há que dizer, no entanto, que antes de viajar pelas recordações vívidas promovidas pelas músicas que ouço desde as onze da manhã, telefonei a chorar baba e ranha à L... Já não falávamos há quase dois anos, mas quando me atendeu, a L sabia muito bem a razão do meu telefonema. “As pessoas estão a ligar-me, como se eu fosse uma espécie de viúva...” As lágrimas eram assim facilmente substituídas pelo riso. Como não rir? O George Michael faz parte de nós, desde que despertámos para a música...
Morreu ontem, no dia de Natal. É quase certo que no próximo Natal o seu ‘Last Christmas’ seja ainda mais emotivo. Curiosa a data em que partiu, aos cinquenta e três anos: tão novo. Foi tão cedo... Neste ano que está prestes a terminar, as perdas são já algumas. Em Janeiro David Bowie, seguido de Prince em Abril e, há tão poucas semanas, Leonard Cohen...
Claro que a palavra ‘perda’ tem um sentido muito relativo quando é de vida ou morte que se trata. Não obstante, cada vez que alguma pessoa que me é querida se despede para sempre, o carácter definitivo do advérbio de predicado com valor temporal ‘sempre’ ganha novos significados. Neste caso, é provável que me venha a lembrar sempre do dia da sua morte, associando sempre a um último natal...

26 de Dezembro de 2016
Matosinhos, Portugal

Presa no elevador




Fiquei ‘presa’ no elevador.
Em primeiro lugar, há que dizer em minha defesa, àquele que me perguntou num tom de acusação – “mas tu andas de elevador?! Eu subo e desço sempre a escadas... e moro no sexto andar” – que “Eu também, não sempre, mas quase sempre”. O carácter definitivo do ‘sempre’ é muito difícil de ultrapassar; o mesmo se aplica ao advérbio de predicado com valor temporal, ‘nunca’.
Ora, o apartamento onde vivo nestes meses fica no oitavo andar. É com muita frequência que subo os oito lances de escadas (ainda não contei os degraus) e raramente desço de elevador. Nem quando vou para a garagem (no piso menos 1), onde está estacionada a bicicleta, que me leva a quase todo o lado. Como não me levaria ao aeroporto na sexta-feira passada, telefonei para a agência de táxis na véspera. Teria de sair de casa às cinco da manhã. Assim sendo, nem de metro poderia deslocar-me para tomar o voo para Lisboa.
Neste assunto esbarro nas eventuais argumentações para desconstruir a quase delação do meu amigo, com quem converso acerca de temas como reduzir a pegada ecológica. Se é certo que opto pela força motriz e evito o uso do elevador, as contradições e discussões interiores não cessaram, porém, nesta matéria (como em muitas outras... ainda muito a aprender).
O valor da viagem aérea era inferior à do comboio e o tempo a gastar, teoricamente, também compensaria. Chegando ao início da manhã teria a oportunidade de estar com pelo menos duas das pessoas amigas que residem em Lisboa. Por sua vez, o regresso seria pouco depois das oito da noite; o voo atrasou de tal modo, que entrei em casa à meia-noite. O que significa que o jantar – reles e caro no terminal 2 (também reles) – no aeroporto ficou por minha conta. Por conseguinte, não apenas aumentei estupidamente a minha pegada ecológica (o meu eterno dilema para as viagens...), como acabei por gastar mais que o previsto. Pior, corri o risco de nem sequer chegar a tempo do voo matinal – fiquei presa no elevador: às cinco da manha!
Acrescento que respondi plácida e serenamente ao meu amigo que a descida de elevador àquela hora da manhã se justificava: o tempo naquela caixa em sentido descendente permitiria confirmar a imagem, ainda que pouco tratada, no espelho. Um argumento deveras aceitável, que sustenta sem dúvida a ‘necessidade’ de utilizar o meio de transporte que também está ali para me servir – quando necessário for.
Até aqui tudo bem, não fosse o caso do elevador parar, bloquear, suspender o seu movimento, antes de alcançar o meu destino: o piso zero.
Foi uma estreia não muito agradável: havia um voo para apanhar. Não é propriamente o género de veículo a quem podemos acenar, espere um bocadinho, senhor piloto, que estou a chegar. Tão-pouco há como apresentar desculpas a uma companhia do tipo baixo custo – que, mais uma vez confirmei, de baixo custo pouco tem (pelo menos nas minhas andanças). A tal companhia, assim como outras, até aceitam razões para cancelar ou alterar datas de viagem, mas por motivos de força muito maior. Sei perfeitamente que ficar detida num elevador não é absolutamente nada de especial, mesmo que seja às cinco da manhã.
De qualquer modo, as primeiras imagens que assomaram, quando o elevador teimoso não respondeu às minhas tentativas para prosseguir até ao zero, foram as cenas de filmes onde há um criminoso entre os reféns dentro de um elevador bloqueado, onde o ar começa a ficar saturado até à asfixia quase total (o final feliz é recorrente), ou onde não há ninguém no edifício, eventualmente devoluto. Se a imaginação logo disparou, a primeira coisa que fiz foi verificar os pauzinhos no telemóvel, aqueles que me informaram que sim, podia estar descansada em relação à necessidade de efectuar chamadas telefónicas. Menos mal, não fosse o caso de na empresa do ascensor não existir ninguém no outro lado da linha... não obstante a placa informativa ter a indicação do contacto possível vinte quatro horas por dia.
Era o dia em que tal não se verificava. Logo no dia em que eu decidira dar asas à vaidade e logo no dia em que me deslocaria com as asas de um engenho, cuja pegada ecológica me fazia sentir imensamente culpada – vá, naquele momento isso não me passava pela cabeça.
O corpo reagia de forma natural à situação: suores quentes e frios, alguns tremores. Até porque foram várias as tentativas em vão para a empresa de manutenção. O alarme foi a estratégia seguinte, os vizinhos que me desculpassem da hora, mas estava cada vez mais assustada; precisava de ajuda! Apesar do som soar tão alto como uma sirene do INEM – para os meus ouvidos, pelo menos – depreendi que tal impressão auditiva, não passasse disso mesmo. Nenhum vizinho dava o ar da sua graça! Sete pisos com pelo menos seis habitações e não surgia viva-alma... às cinco da manhã.
E se supunha estar muito fresquinha e arranjadinha à saída de casa para me deslocar para a capital, as gotas grossas de suor que escorriam sem pudor pelas costas e peito eram um pormenor do qual me desviava – em particular por serem a expressão de uma emoção que começava a roçar o medo – ou um pouco mais forte, como o pânico... nah, não chegou a tal, só estava presa num elevador... às cinco da manhã.
O ensaio seguinte foi telefonar para a agência de táxis. Um, dois, três, quatro, cinco toques: atenderam! A minha voz era já embargada, para não dizer aos soluços e até mesmo temperada de sal pelas lágrimas que não se seguraram ao escutar a voz do homem do outro lado. De maneira que para além de estar a suar, lá se ia a pintura no olho. Felizmente decidira reduzir esse pormenor ao usual – um risco preto na linha de água. Água essa que apagou o leve artifício. Aquando dos preparos hesitei na aplicação da máscara para as pestanas; dispensei. Uma opção que se veio a revelar acertada, pois naquela altura os olhos estariam seguramente negros e esborratados – qual madalena.
“Pode dizer ao senhor taxista que estou presa no elevador e pedir-lhe o favor de tocar à campainha de algum vizinho?” – uma das frases que consegui dizer à pessoa que, do outro lado, me tentava acalmar. É de notar que a simpatia alheia não se ficou por aqui. Entretanto soaram vozes no exterior: duas vizinhas e o taxista.
A sorte parecia começar. Fiquei a saber que estava muito perto do piso zero – uma informação seriamente relevante para o desenlace. Uma das vizinhas logo contactou a empresa. Alguém atendeu e assegurou que um funcionário chegaria em vinte minutos. Eram cinco e dez. A percepção dos dez minutos anteriores fora equivalente a um dia inteiro. Eram cinco e dez. O funcionário estaria, com muita sorte, em vinte minutos no prédio. O voo era às seis e vinte. E eu acabara de dizer ao senhor taxista que a porta de embarque fecharia às cinco e quarenta e cinco. Eram cinco e doze. Perguntava-me se os vinte minutos seriam efectivamente vinte minutos.
Por esta altura estava mais serena. O pior que poderia acontecer era perder o voo. De resto, as histórias que uma das vizinhas partilhava não eram nada animadoras – uma delas ficara presa duas vezes naquele mesmo elevador, o da direita. Acrescentava pormenores quanto aos truques e manhas do ascensor. O que me mostrava que não só não era nada de extraordinário ter tido a pouca sorte de ficar presa no elevador, como seria apenas uma questão de tempo para dali escapar. Ora, tempo era ‘coisa’ que naquela madrugada não abundava, para mim.
Quer dizer, até tinha tempo ir para Campanhã e apanhar um comboio. A reunião que me conduzia a Lisboa estava marcada para o início da tarde – como tal, nem sequer tinha justificação para usar das asas para voar, por mais que seja uma metáfora que muito me encante.
E sentada no chão, com as mãos a segurarem ora a cabeça, ora a boina castanha, ora o lenço que limpava o ranho e secava as últimas lágrimas, visualizava-me num filme de Hollywood com a diferença que era a vida real – uma das diferenças; presume-se, e bem, que o glamour não me assistia.
Abri a carteira e verifiquei a impressão do cartão de embarque. Um laivo de esperança. O fecho da porta de embarque afinal era às 5:55h e não às 5:45h. De qualquer modo, havia dito diversas vezes ao senhor Dinis - o taxista a quem entretanto perguntara o nome - para se ir embora. Não me parecia de todo possível que o avião esperasse por mim. O senhor Dinis não ia nada embora enquanto não chegasse o tal funcionário da empresa de manutenção. A senhora Susana – a vizinha que se mantinha de pedra e cal, continuava a apoiar-me, adicionando mais detalhes às suas experiências naquele mesmo elevador. Ao mesmo tempo que se lamentava dos “vizinhos que temos”. Foi o seu cachorro quem me salvou. Latia e latia. Não se calou enquanto a dona não reagiu ao alarme que soava há uma dezena de minutos.
Pela sua experiência, fiquei informada que podia ser muito fácil ou muito complicado resolver aquele incidente. Podia ser uma tarefa muito morosa e sujeita a cuidados acrescidos. O que aumentava a minha sensação de estar a viver num filme, de cujo argumento e desfecho era ignara. Saber da necessidade do elevador ser manuseado desde a casa das máquinas – no nono e último piso – de forma manual para que a caixa não caísse despencada até ao piso mais baixo... comigo lá dentro!, não me tranquilizava. Dali não podia saltar. A queda podia ser no entanto a única saída.
Ou então, podia ser um exercício muito fácil. Bastava que o funcionário usasse da chave-mestra do elevador e a porta abrisse ali mesmo, onde me encontrava. Funcionário que finalmente chegou. Eram 5:35h quando ouvi a vizinha dizer-lhe que estaria muito perto do piso zero.
E não é que estava mesmo? No minuto seguinte, a porta abria-se e três pessoas olhavam para mim, que ainda estava sentada no chão. Só teria de saltar de um metro de altura. E saltei! Saí do elevador, dei dois beijinhos à senhora Susana que, desgrenhada e de roupão, aceitou a minha forma de agradecer o seu cuidado e ajuda. E saí rapidamente com o senhor Dinis, um homem todo aprumado, de fato e gravata pretos, debaixo de um sobretudo da mesma cor - estava frio!
De Mercedes e na esgalha, o taxista deixou-me na zona das partidas do aeroporto às 5:50h! Num corre-corre do balcão do check-in – que afinal podia ter evitado, uma vez que o tinha realizado anteriormente no site da companhia – segui a correr para o corredor de controlo e segurança e refreei os movimentos. Havia que esperar pela minha vez. O bulício àquela hora continua a surpreender-me. Após proceder de acordo com aquelas normas de segurança – que continuam a aborrecer-me – voltei ao passo de corrida. De cinto na mão, com os casacos pendurados, lá cheguei ofegante à porta de embarque. Onde ainda esperei... vinte minutos.
Eram 6:25h quando o avião descolou comigo lá dentro, rumo à capital. Ah, Lisboa... O susto ficou lá atrás, quando do lugar da janela os olhos se arregalaram com o céu em metamorfose. O azul índigo ia sendo substituído pelo laranja e o amarelo dourado e outros azuis. A tela que vislumbrava do rectângulo aéreo promovia mais emoções, dessa feita de gratidão por ter oportunidade de contemplar o nascer do sol, a pelo menos dez mil metros de altitude. Agradecia o dia que havia começado com a percepção de estar rodeada de pessoas que teimam em ser generosas para pessoas desconhecidas...

15 de Dezembro, de 2016
Matosinhos, Portugal

Tombos de 'bicla'




O último tralho de ‘bicla’ aconteceu na quinta-feira passada (feriado). O desconforto que acabei de sentir na coxa esquerda, devido a uma senhora nódoa negra, lembrou-me do incidente ocorrido há três dias.
Os dedos das mãos são insuficientes para contabilizar o número de ternos, tralhos, tombos, trambolhões ou quedas – para utilizar um termo mais adequado – de bicicleta.
Pedalava muito satisfeita no passeadouro de gravilha, contemplando o mar muito azul e alvoraçado de ondas espumosas, em Leça da Palmeira. O detalhe do piso em gravilha detém a sua relevância nesta descrição. À parte da responsabilidade inerente e total da ciclista, as mãos e coxas e mais certas partes do corpo conheceram o chão escorregadio, precisamente pela natureza da via: a gravilha.
A música nos ouvidos foi subitamente interrompida pelo som do resvalar dos pneus – semanas antes inspeccionados e declarados carecas pelo pai; “são assim de origem”, apaziguou o moço da loja, dias depois. Alcatrão. A matéria mais apropriada para a bicicleta citadina em causa. Os cabos dos travões foram remendados horas mais tarde, pelo pai, com uma fita adesiva preta muito lisa e discreta. O cuidado paterno muito apreciado disfarçou a distracção com consequências aquém do desastroso – calças pretas cheias de pó, luvas da mesma cor esbranquiçadas pelo mesmo efeito e a senhora nódoa negra na coxa – essa mesma que invocou o terno e provocou a esferográfica.
“Faz parte” – em sorriso e com a música a ecoar novamente, após revista e ajuste do volante – o qual se ressentiu, mudando, carrancudo de posição. “Faz parte” – para um dos transeuntes que, como eu, desfrutava do final da manhã soalheiro e morno à beira-mar. Como ele, outros a manifestar algum cuidado ao ver uma pessoa estatelada no chão – ainda que por segundos.
A queda – regresso à palavra, possivelmente, mais apropriada – deveu-se à mudança brusca de direcção. Objectivo: sair do caminho de gravilha e ingressar na estrada. Guinar o volante, ou guiador, uma vez que é de uma bicicleta que se trata, resultou numa decisão pouco acertada – naquele instante a intenção era aproveitar o semáforo verde que dava passagem aos peões, para então avançar para estrada no sentido da casa paterna.
E lá fui, respirando fundo e afirmando também para mim, “Faz parte!”. Como fazem parte do historial de ‘pseudo-ciclista’ uma série de muitos outros ‘tralhos de bicla’.
Em 2000 adquiri a primeira bike de BTT, muito vermelha e muito vistosa por quem alguém se enamorou, no final de 2013. Aquela que em vão procurei na Feira da Vandoma.  No decorrer desse início de milénio, participei no campeonato nacional de BTT-Orientação e nessas andanças, para além de desorientada e perdida com frequência, também com relativa frequência o verbo cair se concretizava de forma vívida. A queda que recordo desses tempos sucedeu numa experiência sem igual: downhill numa encosta nas redondezas de Chaves com os amigos do L – o amigo que sempre me incentivou para essas lides.
Voei! Literalmente. O pneu de trás ficou no ar e o da frente impulsionou-me num voo directo para a rocha que improvisava um trilho, não sem antes realizar um looping pelo ar que quase me provocou o vómito – talvez exagere. A inclinação do trilho era de tal forma graduada que não arrisco um valor. Felizmente o capacete também faz parte da indumentária sempre que saio com a bicicleta – hum... há uma ou outra excepção: quando vou cortar o cabelo ao F.
O valor do corte e, a bem da verdade, a vaidade, nesses dias ultrapassa o razoável, na mesma proporção da redução dos níveis de segurança – os desejáveis para quem pedala nas ruas de uma cidade, onde muitos automobilistas ainda não estão sensibilizados para a onda de ciclistas urbanos que vai crescendo em vagas. Quem sabe seja mais que uma moda e os responsáveis pela sinalização urbana aumentem o número de ciclovias (se por acaso este texto for lido por alguma pessoa com poder nessa matéria, aqui fica desde já o meu agradecimento antecipado por esse mesmo aditamento). Apresento mais um argumento deveras relevante para que aquelas excepções aconteçam e que é certamente bem compreendido por quase todos os elementos do sexo feminino que se deslocam no máximo três vezes por ano ao cabeleireiro – neste caso ao hairdesigner, como reforça o F. Com uma ‘mise’ fresquinha quem quer amassar, assapar, espalmar ou mesmo amarfanhar os cabelos muito lisos e muito bem penteados pelas mãos glamorosas e criativas (às vezes demais...) do F?
Pese embora o currículo de quedas seja vasto, existe uma quase queda que jamais esquecerei (assumo o carácter definitivo desse advérbio). Não cheguei a conhecer a outra margem do regato onde fui desembocar, após uma descida sempre a abrir numa prova de BTT – uma competição de pares de Road Book que realizei com o N, em Fevereiro de 2014. Um dos companheiros de vida do L e que me desafiou a acompanhá-lo nessa prova, a qual decorreu nos arrabaldes de Chaves. Nessa prova estreava uma bicicleta também muito atractiva para outro alguém. Mas essa espécie de fuga não me instigou a nova investida naquela feira das Fontainhas.

Guardo aquele quase tralho nessa prova de BTT pela frase que o meu companheiro de equipa proferiu. É de notar que ficámos muito bem classificados. Há que ressalvar que o N é um robusto e espadaúdo atleta, com forte espírito de equipa, ajudando-me em muitas fases ascendentes da prova – um simples toque na minha zona lombar tinha o poder de me empurrar pelos trilhos de vegetação densa e enlameada também – chovera na véspera. Um pormenor não despiciendo para alguém longe de ser ‘pró’, como eu. Muito menos agora, com esta bicicleta de cidade – um belo espécimen, há que dizê-lo e que muito me tem auxiliado nas deslocações, desde o natal do ano passado – o Pai Natal continua a ser muito generoso para esta menina, mesmo que nem sempre compreenda os seus representantes.
Quando, naquela famigerada prova, descia sem freios e a uma velocidade que até a mim me assustava, não tive a habilidade nem o discernimento necessários para efectuar a curva no momento certo. De maneira que travei no último instante com a ajuda de uma vedação fraca na sua função, mas suficiente para me segurar e evitar que voasse para a outra margem do regato ou mesmo para as águas geladas de um Fevereiro sempre invernoso. Com muita sorte disse apenas ao N, ainda aterrar do susto: “Ufa... quase caía!”
- Da próxima vez não tens de cair: salta! – ora aí está a sua resposta que fica para os anais da minha existência. Uma frase que quase se tornou numa máxima de vida: não há que cair, posso e escolho saltar. E quando de bicicleta, voltei a estar prestes a conhecer o relevo e protuberâncias de mais um chão, observei-me (nem sempre tranquila, confesso) na trajectória descendente, saltando.
Como é óbvio, saltar não evita as mazelas, mas estas são aceites como ‘ossos do ofício’ e, como é sabido, tudo passa. Todavia, se estiver consciente durante o salto, estarei mais atenta aquando do contacto em terceiro ou quarto grau com o solo, ainda que de forma, por vezes, dolorosa.
Desde então, tenho escolhido saltar e do mais alto que me é possível – quem sabe um dia até possa voar...


11 de Dezembro de 2016
Matosinhos, Portugal



A propósito do dia do voluntário




Dia cinco de Dezembro: dia internacional do voluntário para a economia e desenvolvimento social. O tema do voluntariado não me é estranho. A experiência como voluntária foi vivenciada em várias situações, em diversos contextos e com motivações distintas. Se bem que distintas apenas na aparência.
Até há uns anos, considerando os meus próprios motivos para partilhar o tempo, pensava que o voluntariado acontecia sobretudo, senão quase unicamente, pela dádiva. Este ‘apenas’ não é redutor – reporto-me ao facto de supor que, como eu, aqueles que se dispõem a contribuir com o seu tempo para uma ‘qualquer’ causa, o fazem com esse mesmo fim.
Como escuteira e avezinha (uma das categorias nos grupos femininos de Cristo Rei, seguindo-se as guias, nas quais não cheguei a entrar...) participei amiúde em peditórios e actividades similares. Partilhava o tempo, ajudando de alguma forma, alguma causa, alguma instituição, ou alguma comunidade.
Em adulta, as tardes que passei a separar alimentos, no armazém do Banco Alimentar, proporcionaram-me a sensação de ser útil. Os meus afazeres eram colocados de lado, em prol de pessoas desconhecidas, é certo, mas certamente necessitando de ajuda. O ambiente no armazém era claramente de boa disposição. Nos últimos anos que fui, havia tanta gente ao longo dos tapetes rolantes que, mais do que me sentir relevante, emergiu o desconforto de me sentir a mais. Muita gente com vontade de ajudar, excelente! Muita confusão inibindo movimentos, ao ponto de aceitar que, enfim, a minha presença era desnecessária. Até que notícias acerca das pessoas que dirigiam o Banco Alimentar e sobre o seu usufruto dúbio dos bens alimentares, doados por gente com muita frequência com mais necessidades do que se vislumbra, me fizeram questionar a continuidade nas iniciativas promovidas pelo Banco. Não regressei ao armazém de Perafita.
Por outro lado, as experiências que fui vivendo tornaram evidente que a minha perspectiva acerca do voluntariado era deveras pobre. O contacto com estudantes universitários apostando no seu futuro profissional, mostrou-me que o seu Curriculum Vitae é muito mais atractivo se integrar pelo menos uma linha dedicada ao serviço comunitário, ao voluntariado. Um aluno afirmava com recorrência ser voluntário no Banco Alimentar – o M era um fervoroso e activo militante de um partido político, no qual trabalhava infatigavelmente, demonstrando claras pretensões em ser dirigente político.
Os meus horizontes alargaram-se com a investigação, através da qual entrevi que muitas pessoas, sobretudo as mais jovens, preparam as suas viagens, pesquisando também sobre como podem contribuir para as comunidades dos seus destinos.
Os meus horizontes alargaram-se quando as minhas viagens se tornaram mais longas e, como consequência, com mais tempo – esse tesouro!, talvez o mais valioso – para observar as pessoas e os seus modos de agir. Conheci pessoas que viajam com o intuito de aprender. A melhor maneira de aprenderem, de crescerem afirmam, é participando nas actividades quotidianas de uma comunidade em particular, compartilhando as suas valências. Ensinando inglês às crianças menos favorecidas, por exemplo. O retorno é tão evidente que o seu benefício é, sem margens para dúvidas, muito superior.
O ano passado conheci Alberto, no México. Um professor espanhol de férias naquele país. Passou um mês numa comunidade indígena – o seu olhar era refulgente, o seu sorriso era luminoso, as suas palavras eram de deslumbramento. Alberto sentia-se feliz e profundamente grato por ter sido acolhido e por terem aceite o seu modesto contributo. Os presentes, em formas de abraços apertados das crianças da região de Chiapas, eram a maior oferenda que alguma vez recebera.
Houve uma época em que pesquisei afincadamente (mesmo que sem resultados) sobre como ser voluntária em diversas ONG’s. O valor que eu tinha de pagar era tão elevado (para mim...) que desisti das ilhas Galápagos, de Madagáscar... – locais onde desejava realizar voluntariado... Com essas incursões percebi que muitas ONG's se mantêm com base nos donativos dos que querem ser voluntários. Se nessa altura me era estranho pagar para servir, posteriormente compreendi um pouco melhor as circunstâncias – mesmo que ainda me seja difícil concordar e candidatar-me ao voluntariado nesse tipo de acção.
Em finais de 2014, o sítio das Nações Unidas publicava um anúncio para os Jogos Olímpicos de 2016. Inscrevi-me! Realizei diversos testes on-line, ao longo de um ano, que culminaram com a participação em corpo presente no Evento-Teste de Mountain Bike. No início de Outubro de 2015 voava desde a Cidade do Panamá para o Rio de Janeiro. Estava exultante e orgulhosa por ter sido seleccionada para o maior acontecimento desportivo do planeta. No dia nove de Outubro de 2015, chorava baba e ranho quando, na sala de formação, era transmitido um vídeo da candidatura do Rio de Janeiro para a realização dos Jogos Olímpicos. As lágrimas eram de emoção incontida: eu fazia parte do maior evento à face da Terra. Pela primeira vez na vida, testemunhava de dentro outra forma de ser voluntária, ao mesmo tempo que o contacto com outros voluntários me apresentava outras razões para que também eles ali estivessem.
Quando este ano, também como voluntária, participei na realização do Campeonato Europeu de Natação Adaptada no Funchal, os significados do voluntariado tornaram-se ainda mais ambíguos. As mais de cem crianças, jovens, adultos e idosos que ali estavam sorridentes, disponíveis e ansiosas para integrarem a equipa tão diversa de voluntários, traziam consigo uma energia desprovida de expectativas em relação a eventuais ganhos. Estavam ali para doar o seu tempo: como contrapartida, bastava-lhes desfrutar desse tempo com outras pessoas e aprender algo com essa experiência. Ah, como puderem aprender e apreender como são, como éramos todos tão abençoados. Os atletas especiais demonstravam ao minuto, ao segundo, como a minha vida é fácil, ao mesmo tempo que nada, vezes nada, é garantido. Escutei algumas mães dizerem que no dia seguinte levariam os filhos para que observassem e comprovassem a vida privilegiada que viviam.
No final das duas semanas maravilhosas que vivi na ilha atlântica das flores, era forçoso integrar mais factores de ordem pessoal e social. E, se em Maio, decidi parar de pensar sobre esse assunto, ser coordenadora (ainda que paga) de voluntários no Rio 2016, ampliou infinitamente os elementos para possíveis reflexões.
A alegria expressa, por aqueles que eram chamados a participar (após as várias etapas por que também eu anteriormente passara), confirmou como pode ser ilimitada a disponibilidade do ser humano para ajudar: tão-somente estando no centro do universo desportivo (e não só!) durante três ou quatro dias.
Sagan, um jovem indiano ilustra-me. Quando recebeu o meu telefonema, extático, só lhe escutava desde o outro lado da linha: “Obrigado! Obrigado! Obrigado!” A única coisa que eu havia feito fora ler o seu percurso na ficha de voluntário e contactá-lo para saber se ainda estava disponível. Como? Claro!!! E confirmei a sua presença sorrindo. Alguma vez me passara pela cabeça que o Sagar, da Índia, e a Azucena do México (dois de múltiplos exemplos que poderia expor) ansiavam tanto como eu integrar os Jogos Olímpicos e ajudar a escrever uma linha na história da humanidade?
O Sagar marcou nesse mesmo dia a sua viagem desde Mumbai. Às suas custas, claro! Reservou alojamento. Às suas custas, claro! No seu primeiro dia de actuação, e depois de ter passado no centro de acreditação e de uniforme orgulhosamente vestido, oferecia-me mais um presente (os seus abraços e palavras de rejubilo já me tinham avassalado...): uma saia cor-de-rosa, linda. Apenas por lhe ter telefonado e de o ter incluído na equipa de voluntários do Ciclismo.
Talvez tenha sido um dos momentos mais bonitos daqueles quase quatro meses no Rio de Janeiro, e que me permitiu apreender, ainda que de forma ténue, o alcance de um mero acto inerente às funções para que fora contratada. A experiência prévia como voluntária no Evento-Teste ajudou-me a compreender um pouco a euforia de Sagar, assim como a de muitos outros voluntários, em particular os estrangeiros – aqueles que organizaram as suas férias para participar e oferecer o seu tempo na realização dos Jogos Olímpicos. Contribuindo, assim, para o tal desenvolvimento económico e social implícito no conceito de voluntário.
A teoria não me explica, porém, os sentidos de acção e de dádiva dos cinquenta mil inscritos na base de dados do Rio 2016. A proximidade aos atletas, aos super-atletas, aos heróis desportivos é, indubitavelmente, um elemento a ponderar. Mas não me esclarece cabalmente. Na verdade, a renitência e mesmo recusa de brasileiros, residentes no Rio de Janeiro, em participar acrescentou dúvidas acerca do assunto. Cada vez que desligava o telefone após uma resposta negativa num português quente e carioca, perguntava-me como era possível que aquela pessoa, tão próxima do centro do mundo (para mim...), apresentasse razões mais do que plausíveis para, no fim de contas, não estar disponível e não vestir um uniforme de voluntária. E, ao contrário dos estrangeiros, sem qualquer custo, a não ser o seu tempo – ah!, esse bem tão precioso, que de tão valioso me provoca indagações sobre como viver cada instante de forma a eternizá-lo.
Questionamentos pessoais à parte, vou despendendo tempo a pensar sobre este tópico, até porque dia cinco de Dezembro intervirei numa sessão dedicada voluntário. A P convidou-me para participar numa sessão dedicada ao assunto na escola em que lecciona. Tenho, pois, mais uma oportunidade de ser útil, nem que seja apenas para a minha querida amiga P.
É nesta acepção de utilidade, de realizar algo pelo outro que me parece estar o cerne de todas as iniciativas associadas ao voluntariado. Esta é, aliás, uma tendência em crescendo – não fosse eu, por exemplo, tal como outros voluntários que conheci no Rio de Janeiro, já nos termos candidatado a futuros eventos desportivos.
Os dados que os meus sentidos captam – naturalmente condicionados pelas minhas experiências – sugerem-me que existem cada vez mais pessoas insatisfeitas com os seus empregos. Aqueles que lhes providenciam o suficiente (ou, talvez, nem sempre suficiente) para as suas necessidades (e aqui incluo todos os tipos de necessidades, desde as básicas, às mais supérfluas, ainda que não deixem de ser necessárias para o bem-estar vivenciado como um todo). O que vou assistindo, no entanto, é que essas mesmas necessidades se têm tornado cada vez mais insuficientes. A sensação que tenho é que, de alguma forma, um crescente número de pessoas se questiona quanto ao sentido que faz ter um emprego que não satisfaz por aí além, tão-pouco garante os bens (materiais, sublinho), que entretanto vão perdendo importância.
Ao escutar o senhor presidente do Uruguai, as minhas cogitações tomaram forma nas suas palavras. E creio que para muitas outras pessoas, também. Gastar tempo – o bem mais valioso e cada vez mais escasso – num emprego que não satisfaz para comprar coisas que ao fim de meia dúzia de dias (estou a ser optimista) se juntam as outras mil e uma coisas – num armário... cheio, talvez a abarrotar. E é aqui que encaixo o aumento da participação no voluntariado. É um trabalho. Um trabalho no sentido mais humano que apreendo. Um trabalho, cujo propósito é palpável e que, acima de tudo, proporciona o sentimento único de se ser útil, de se estar a contribuir para algo que realmente confere sentido – sem com isso se esperar retorno financeiro.
É possível – e o contacto com voluntários do IPO apoia-me neste raciocínio – que muitos daqueles que têm necessidade e/ou desejo de serem voluntários numa causa ‘maior’ – coloco assim – procurem situações que lhes promovam esse sentimento ‘superior’ de serem importantes, úteis.
O que me provoca outras indagações do género: o que será que aconteceu para que cada vez mais gente viva em contextos e a viver uma profissão que cada vez menos contribui para o bem da Humanidade.
Quem sabe o ficcional “Admirável mundo novo” de Aldous Huxley seja tudo menos ficção. E assim aquele mundo virtuoso, onde o apanágio da felicidade era ‘real’; aquele em que se fazia acreditar gostar daquilo que se é obrigado a fazer – o tal segredo da felicidade daquele ‘admirável mundo’ – tenha deixado de ser ficção científica (foi escrito em  1931!) e seja mais real que admirável...
Não obstante, nos Jogos Olímpicos, os meus sentidos apreenderam uma matéria infinita de sorrisos imateriais e ilimitados, em pessoas vindas de todo o mundo (admirável ou não), que se expandiam numa felicidade só invisível e ‘obrigada’ ao mais céptico dos examinadores...
Admirável, para mim, é o voluntário despojado que partilha o seu tempo sem orgulho. Admirável, para mim, é a pessoa que compartilha o seu tempo, porque sim, porque está cheia, porque tem um emprego que lhe providencia os sentimentos de realização e felicidade. Cheia que está, partilha-se, é útil, sem estar a pensar que a sua utilidade contribuirá para o tal desenvolvimento social e económico...

16 a 21 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal

Numa noite... depois do hospital (a propósito do dia do voluntário)*



Numa cama estreita, onde o enfermo dorme como um ser inóspito, duplos são os sentidos de quem o visita. As paredes pálidas de um quarto asséptico aniquilam uma qualquer autocomiseração. Reduzo-me a imaginar papoilas muito vermelhas de uma infância há muito vivida. Resgato memórias infantis que me auxiliam a passear por atalhos, enquanto a corda de uma vida se esfia ao limite da (in)existência.
Encostada na borda da cama escuto: absorvo cada palavra, buscando malmequeres amarelos para sorrir e não deixar que as trevas sejam mais fortes que a esperança esfomeada, de alguém que se debate entre a negação e a aceitação de uma doença... Com estatísticas pouco animadoras.
Sou feita de carne e o que me perturba é a impotência face ao que os meus olhos nublados observam. Horas depois, num outro quarto com vista para o mar, a memória é fragmentada, esparsa, dissolvendo-se num sono reconfortante, que a saúde (ainda) garantida me autoriza.
A caverna onde mora a solidão seca é pequena e nela não cabem os anos vividos de aventuras adiadas no espaço... de uma ilusão. Desejo a insónia para me lembrar que o tempo é a minha maior riqueza. Propagar centelhas de luz – o muito que pode originar uma pessoa que numa vida secreta doa o seu maior tesouro: o tempo. A história recente da humanidade revela-me que o maior bem que preservo é o tempo que guardo para partilhar com aqueles que, de um ou outro modo, o aceitam sem reservas.
À minha volta morrem dias vermelhos escurecendo, ceifando vidas. Ao entrar naquele lugar, agarrava os minutos, preparando-me para o amor. Improvisava palavras embrulhadas como um presente que ansiava acolhido. O ânimo de quem as consentia era uma dádiva, inigualável por dissipar o egoísmo que em mim persiste. Prontificava-me a (re)nascer e a expressar um pouco de silêncio. Escutava sem ranger as articulações. Os lábios esboçavam sorrisos, redigindo uma história interior com as letras doridas, umas vezes, outras: mornas e incertas.
Horas mais tarde, num conforto concedido e profundamente apreciado, agradeço o tempo fugaz, antes vivido – os sorrisos quentes e estendidos são abrigados e revividos num sonho descansado...

11 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal

*Na companhia de António Gedeão

Entre Laranjas e Romãs*


 
O avô Alfredo era um artesão das árvores, um cirurgião das videiras, um artista da poda e, note-se, um criativo na arte do enxerto.
Ontem, ao fim de duas décadas após a sua partida, soube que o avô paterno tinha dotes que ultrapassavam a tradicional agricultura. A novidade, para mim, despontou enquanto a televisão transmitia uma reportagem sobre jovens e inovadores agricultores alentejanos, que se dedicam à produção da romã. Deixou de ser um fruto para poucos, para se tornar alvo de (re)invenções, contribuindo para o aumento das exportações portuguesas. Hectares e hectares de romãzeiras pintam as planuras alentejanas.
A cor rubra avivou memórias gustativas e visuais recentes: as pitaias com que me deliciei em Granada. Uma textura macia que se desfazia na boca extasiada – era um sabor doce, exótico e agradavelmente distinto de qualquer outro fruto. Enquanto revivia mentalmente essa lembrança do palato, o pai despertou-me com as recordações do seu pai.
O avô Alfredo. O avô Alfredo era um (re)inventor dos seus acres e pomares – talvez exagere na amplitude das suas terras, mas enquanto criança os meus olhos abarcavam a realidade com outras medidas. Salivava com as suas sopas de cavalo cansado. Um hectare era mais que muito. Uma imensidão, o salgueiro onde, com o avô Alfredo e a querida avó Altina, descasquei espigas de milho, ao mesmo tempo que me afastava, ligeira e com repulsa, das lesmas negras e viscosas que povoavam os carreiros para o regadio.
Ontem, o pai descrevia as artes do avô que, de forma compenetrada e mesmo artística, desferia enxertos nas videiras, experimentando novas castas para as vindimas seguintes. Infelizmente, o rigoroso calendário escolar (mais o rigor da minha mãe) nunca me autorizou a assistir, tão-pouco a participar na festa dos lagares em Nogueira do Cravo. Lagares mecânicos onde pés nus (mais ou menos olorosos, um pormenor que o álcool proveniente da fermentação dissiparia... acho eu) pisavam as uvas que chegavam em pesados cestos à adega. As portas de madeira de um azul celeste, desbotado pelos anos e pelo sol, são uma das recordações mais azuis da minha infância com os avós paternos.
A adega já não existe, muito menos esse lagar onde o pai ajudou o seu querido pai na produção vinhateira. A jeropiga do meu avô era soberba. Lembrou-nos ontem a mãe, de quem o paladar prefere vinhos mais leves ou derivações mais adocicadas. As castanhas cozidas na mesa, pacientemente descascadas pela tia Teresa, reavivaram a sua terna memória do avô Alfredo.
O gatilho para que as imagens de outros tempos fossem disparadas: as tais romãs, de várias qualidades, mais doces ou mais amargas. Um dos agricultores entrevistados revelava o truque para descascar com sucesso. Um golpe bem torneado no topo é o segredo para que as trezentas e sessenta e cinco sementes muito vermelhas facilmente se degustem – uma para cada dia do ano (não neste, que é bissexto). A aprendizagem não se ficou por aqui – nem sei se divulgue um detalhe que de imediato me mostrou a importância de ser cuidadosa nas próximas incursões a mercados de frutas. Um detalhe que colocou a minha fruta favorita – não a romã! – no patamar das rameiras. Um trocadilho forçado, mas foi a primeira palavra que assomou ao escutar a sabedoria paterna.
As laranjas – essas sim, as minhas predilectas de todas as frutas. As laranjas mais doces têm ascendente de romã. Romalaranja? Ramanja... Rameira – acabara de escutar a palavra romãzeira. É verdade, foi a palavra que me veio à cabeça: rameiras.... doces, as rameiras. Assim se podem explicar as experiências de hibridismo dos agricultores: laranjeiras enxertadas por rebentos de romã. Uma laranja com sabor a romã. Ou pelo menos adoçada pela romã e com uma forma distinta daquelas laranjas mais puras ou daquelas com umbigo. Aquelas que um amigo muito querido preferia: eram um sinal de um açúcar de qualidade.
O meu pai tinha ali mesmo na fruteira um espécime à mão para comprovar a sua teoria. Um espécime que rapidamente açambarquei: uma laranja com fundo manietado, resultado da enxertia romanesca, rameira... ok, de romãzeira. Uma rameira no meu bolso, ahahah... há quem diga que sou um (bocadinho) teimosa ou obstinada... Aquela rameira que neste momento descasco com uma navalha – exactamente como o avô Alfredo e tal qual o pai me ensinou a descascar: um corte para retirar o topo, outro para extrair o fundo (depende sempre da perspectiva, é sabido), seguidos de golpes consecutivos em forma de gomos, que se apartam fácil e eficientemente.
Sim senhor, a laranja é ela mesma uma obra de arte – não fica nada atrás das romãs – merecendo todo um ritual que hoje é ainda mais cuidadoso, não fosse esta laranja uma autêntica rameira, talvez alentejana...

13 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

Índia II – Uma viagem perdida




Na madrugada de três de Agosto de 2012, estacionei o ‘meu’ carro (onde é que o bolinhas cinzento andará por estes dias...) próximo do aeroporto Sá Carneiro. A E esperava-me. Ainda não eram cinco da manhã!, mas a minha querida amiga fazia questão de me abraçar e de me desejar boa sorte antes de eu embarcar numa viagem, quase, sem retorno. O duplo sentido literal e metafórico aplica-se na perfeição. O ‘quase’ no sentido metafórico é um excesso.
“Difícil de dizer que é sem sentido
para um homem que sabe que um sentido
viria a mudar tudo” (Lars Forsell).
Aterrei em Pune, no centro de meditação do Osho, ao fim da manhã do dia quatro de Agosto. As condições do ashram contrastavam irrevogavelmente com as ruas do centro da cidade. A limpeza asséptica era assegurada por funcionários incansáveis que se revezavam continuamente sem que o seu olhar negro se cruzasse com o dos meditadores – seriam eles 'intocáveis'?
O crepúsculo sorriu e depois de um curto passeio de reconhecimento pela cidade entrava na cápsula sem chave. Um trânsito infernal, muitos narizes tapados e protegidos da poluição que também escorria pelo meu. As pernas e braços esquálidos de muitos transeuntes eram uma amostra de uma cidade indiana, da qual tenho somente laivos de percepção – as saídas do ashram eram curtas e rápidas.
Ao início da noite fui jantar ao Zorbha Bar – o restaurante do resort com uma esplanada virada para a piscina. Como eu, muita gente a chegar. Não como eu, gente a despedir-se. Raman – um actor de Bollywood – sentou-se na mesma mesa que eu.  Terminava as suas férias meditativas. Sentia-se renovado, (re)preenchido de amor e compaixão pelas semanas anteriores. O seu rosto, magnificamente esculpido, transbordava a beleza serena de um artista desconhecido, num sorriso muito branco e jovial. Regressaria a casa, em Mumbai, na manhã seguinte. Convidou-me a conhecer a sua cidade – oferecia um dos quatro quartos de sua casa. A fadiga e o jet lag não me impediram de acolher as palavras ternas e amáveis do jovem de Bollywood.
Talvez embriagada pelo ambiente que lentamente se ia entranhando em mim, o ramo do tempo encurvou-se e arredondou-se. Saíra do Porto, no dia três de Agosto, com a perspectiva de viver um mês exacto entre a partida e o regresso. Era dia quatro... Ainda por descobrir o desatino que o jet lag terá provocado no meu calendário interno. Enquanto conversava com Ramam sobre a possibilidade de passar um dia em Mumbai, efectuava contas e concluía, que sim senhor, uma vez que a minha estadia terminaria no dia três, ainda teria uma noite para usufruir e daquela cidade, essa, sim, realmente indiana.
A proporção do silêncio ensaiado nos sete de vinte e um dias do programa Mystic Rose – aquele em que estava incluída e que integrava igualmente sete dias de riso e de choro (a partilha fica para um dia destes) – desmantelou camadas arcaicas das quase quatro décadas vividas. As monções terão certamente efeitos, difíceis de expor, em pessoas que, como eu, procuravam tratar os segredos da ‘alma’ – ainda não encontrei um termo que se adeqúe ao que apreendo ser uma dimensão incognoscível e imaterial do ser que em mim habita.
No dia um de Setembro, após o programa de meditação que varreu as ruas da minha memória, abri a bolsa com os documentos da viagem. Confirmei a hora dos voos e combinei com os meus pais a minha chegada ao Porto. O Raman, o jovem actor de Bollywood, estava distante... Ir para Mumbai não se afigurava boa opção depois de tantas vivências num lugar sem pó, sem lixo, sem nuvens negras de fumo, sem ruídos tenebrosos de tráfegos insuportáveis. Passei a última noite em Pune num hotel a cem metros de distância do resort.
No dia quatro apanhei um táxi para o aeroporto doméstico de Pune, de onde voaria para Mumbai. Devido aos atentados, à época ainda recentes na Índia, os procedimentos de segurança e controlo nos aeroportos começavam antes mesmo de se entrar nos edifícios. Como tal, foi indispensável mostrar o bilhete aos polícias de serviço que, muito zelosos, davam passagem apenas aos passageiros. Assim o fiz, uma, duas, três vezes, tantas quantas as entradas até alcançar o balcão de check-in – estava encerrado. Faltava uma hora para a sua abertura. Pousei as coisas num banco e olhei em redor. Inspirava com profundidade, como se desejasse prolongar o tempo antes de regressar a ‘casa’. E peguei na bolsa dos documentos para reconfirmar os dados da viagem.
Teria sido muito interessante aceder às imagens que terão gravado a minha reacção ao olhar com olhos de ver o bilhete, naquela tarde de quatro de Setembro de 2012. Se antes conferira a hora dos voos, faltou confirmar um pormenor tudo-nada desprezível. A data do voo! A câmara de filmar terá captado um arregalar de olhos em cima do papel com a informação: data da viagem: três de Setembro de 2012! Um dia antes! Essa lente terá apreendido o tremor das mãos – o receptáculo de um espasmo interno que se consumava no movimento nervoso de uma delas a tapar a boca, como que para silenciar o choque sonoro das minhas vísceras em convulsão. Pelo menos fiquei a saber que não sofro do coração, caso contrário teria caído estatelada no chão com um enfarte do miocárdio. Tal era a corrente de electricidade de uma voltagem que me era desconhecida até àquele momento: quando terei dito – “Oh não!... devia ter ido ontem! Enganei-me!!!”
Estava um dia atrasada. Pegara no papel, mas só me detivera na hora... e o dia? Abanei, agitei a folha – os algarismos não se mexeram, tão-pouco se alteraram. A tinta era implacável: três de Setembro. Mas... não havia mas nem meio mas. A taquicardia avançava, avassalando a corrente sanguínea a uma velocidade que tinha tudo para provocar uma explosão na bomba que não cabia no meu peito.
Era fundamental que me acalmasse. Percorri o longo corredor do aeroporto doméstico de Pune, num torpor de emoções que se sucediam e manifestavam num caminhar lento e pesado, como quem pisa o chão para se assegurar que está acordada, com a esperança vã de que afinal seja apenas um pesadelo. Era com efeito um pesadelo, mas estava a vivê-lo na dimensão da realidade consciente.
Dez minutos. Dez minutos de anseios e receios apaziguados pelas lágrimas que escorriam numa avalanche. Um leito espesso e salgado que chegava aos lábios – desse modo ajudavam a superar a secura da boca.
Dez inspirações profundas “Como é que isto aconteceu?! Como é que isto aconteceu?! Como é que me enganei?!” Engolia em seco... não muito. As lágrimas continuavam a suprir essa necessidade líquida. Sentia-me consumida por uma vergonha ainda oculta, cavalgando sem freio pelo meu ser.
Dez inspirações profundas que decifravam as sirenes neurais: Calem-se! Chega! Calma! Pensa, pensa! O sol da tarde iluminava, resplandecente, uma meditadora apressada na constatação do seu erro inabalável. O comprimento de onda sem arquitectura visível, buscava uma fórmula mágica. Ao longe, os polícias que me tinham dado passagem, sintonizavam-me com o instante presente. O passado erróneo era um estranho a transpor. Nada a fazer. Como uma violenta rajada de vento, os vinte e um dias de monções desceram sobre mim: “O que é que eu posso fazer, agora? Tenho várias hipóteses: regressar ao resort e meditar mais quinze dias (ah,ah,ah), apanhar um autocarro para Mumbai e visitar o Raman...” Possibilidades que me surgiam, depois das tentativas em vão para corrigir o erro: o balcão da companhia aérea pela qual supostamente viajaria era um apêndice – a hospedeira de terra não podia fazer absolutamente nada. A senhora simpática não tinha como providenciar uma resolução para a embrulhada com que eu própria me presenteara. 
Voltei a entrar no aeroporto: não havia um único telefone público. Presumia-se que toda a gente tinha o seu telemóvel. O lusco-fusco não tardaria e eu chorava o parco saldo que não me permitia grandes chamadas telefónicas. Mas era imprescindível. 
     Telefonei aos meus pais; não sem antes libertar ainda que lenta, mas resignadamente, o susto que ainda circulava nas veias. “’Tou mãe? Tenho de ser rápida. Perdi o avião. Enganei-me, mas está tudo bem, não te preocupes. Preciso que me faças o favor de carregar o telemóvel. Estou a resolver a situação e ligo mais tarde...” Não sei onde encontrei o tom de voz sereno que escutava, tão-pouco a displicência para falar com a minha mãe e dizer-lhe que perdi a viagem de avião, como quem perde uma viagem de metro.
Eram dez da manhã em Portugal. Sentada no exterior do aeroporto, mirava o bilhete de avião à frente dos olhos, que entretanto amarrotei e escondi, tentando esquecer o inesquecível. Telefonei para a agência de viagens do Porto, onde adquirira a passagem para a Índia.
O senhor António atendeu ao fim de dez minutos. Dez minutos de inspirações profundas. E no avançar dos ponteiros do relógio, o senhor António retornou a chamada. O cartão visa é um instrumento senão milagroso, pelo menos elementar em determinadas circunstâncias. No seu escritório do Porto, o senhor António comprou a minha viagem de regresso desde Pune. E a hospedeira de terra teve então a sua oportunidade de se tornar prestável: imprimiu o email que gentilmente o agente de viagens do Porto enviou.
Horas depois limpava as feridas da vergonha no aeroporto de Mumbai. Se houvesse uma maca para uma posição cómoda, ter-me-ia estacado e apagado o tombo inexorável na minha conta bancária. Mas estava abrigada. A liberdade depositada num pé de meia (ainda que frágil) assegurou um regresso a casa nessa mesma noite. No dia seguinte aterrava no aeroporto Sá Carneiro. Avancei na minha história e as rodas da mala de viagem transportavam com leveza uma bagagem de experiências e livros. Os braços que me receberam foram compassivos e evitaram perguntas embaraçosas. Quem me traz a Primavera de Vivaldi, recolhe-me sempre.
Desde então pondero sempre acerca da compra das viagens de avião. Neste caso, decidira pela aquisição através de um balcão ‘físico’, no trato pessoal, materializado num rosto com nome. Só meses mais tarde compreendia o instante em que o meu calendário se inclinou silenciosamente para um espaço que só por sorte não me fez deslizar para outro pesadelo... ou sonho. É quase sempre uma questão de perspectiva.

15 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal