Índia II – Uma viagem perdida




Na madrugada de três de Agosto de 2012, estacionei o ‘meu’ carro (onde é que o bolinhas cinzento andará por estes dias...) próximo do aeroporto Sá Carneiro. A E esperava-me. Ainda não eram cinco da manhã!, mas a minha querida amiga fazia questão de me abraçar e de me desejar boa sorte antes de eu embarcar numa viagem, quase, sem retorno. O duplo sentido literal e metafórico aplica-se na perfeição. O ‘quase’ no sentido metafórico é um excesso.
“Difícil de dizer que é sem sentido
para um homem que sabe que um sentido
viria a mudar tudo” (Lars Forsell).
Aterrei em Pune, no centro de meditação do Osho, ao fim da manhã do dia quatro de Agosto. As condições do ashram contrastavam irrevogavelmente com as ruas do centro da cidade. A limpeza asséptica era assegurada por funcionários incansáveis que se revezavam continuamente sem que o seu olhar negro se cruzasse com o dos meditadores – seriam eles 'intocáveis'?
O crepúsculo sorriu e depois de um curto passeio de reconhecimento pela cidade entrava na cápsula sem chave. Um trânsito infernal, muitos narizes tapados e protegidos da poluição que também escorria pelo meu. As pernas e braços esquálidos de muitos transeuntes eram uma amostra de uma cidade indiana, da qual tenho somente laivos de percepção – as saídas do ashram eram curtas e rápidas.
Ao início da noite fui jantar ao Zorbha Bar – o restaurante do resort com uma esplanada virada para a piscina. Como eu, muita gente a chegar. Não como eu, gente a despedir-se. Raman – um actor de Bollywood – sentou-se na mesma mesa que eu.  Terminava as suas férias meditativas. Sentia-se renovado, (re)preenchido de amor e compaixão pelas semanas anteriores. O seu rosto, magnificamente esculpido, transbordava a beleza serena de um artista desconhecido, num sorriso muito branco e jovial. Regressaria a casa, em Mumbai, na manhã seguinte. Convidou-me a conhecer a sua cidade – oferecia um dos quatro quartos de sua casa. A fadiga e o jet lag não me impediram de acolher as palavras ternas e amáveis do jovem de Bollywood.
Talvez embriagada pelo ambiente que lentamente se ia entranhando em mim, o ramo do tempo encurvou-se e arredondou-se. Saíra do Porto, no dia três de Agosto, com a perspectiva de viver um mês exacto entre a partida e o regresso. Era dia quatro... Ainda por descobrir o desatino que o jet lag terá provocado no meu calendário interno. Enquanto conversava com Ramam sobre a possibilidade de passar um dia em Mumbai, efectuava contas e concluía, que sim senhor, uma vez que a minha estadia terminaria no dia três, ainda teria uma noite para usufruir e daquela cidade, essa, sim, realmente indiana.
A proporção do silêncio ensaiado nos sete de vinte e um dias do programa Mystic Rose – aquele em que estava incluída e que integrava igualmente sete dias de riso e de choro (a partilha fica para um dia destes) – desmantelou camadas arcaicas das quase quatro décadas vividas. As monções terão certamente efeitos, difíceis de expor, em pessoas que, como eu, procuravam tratar os segredos da ‘alma’ – ainda não encontrei um termo que se adeqúe ao que apreendo ser uma dimensão incognoscível e imaterial do ser que em mim habita.
No dia um de Setembro, após o programa de meditação que varreu as ruas da minha memória, abri a bolsa com os documentos da viagem. Confirmei a hora dos voos e combinei com os meus pais a minha chegada ao Porto. O Raman, o jovem actor de Bollywood, estava distante... Ir para Mumbai não se afigurava boa opção depois de tantas vivências num lugar sem pó, sem lixo, sem nuvens negras de fumo, sem ruídos tenebrosos de tráfegos insuportáveis. Passei a última noite em Pune num hotel a cem metros de distância do resort.
No dia quatro apanhei um táxi para o aeroporto doméstico de Pune, de onde voaria para Mumbai. Devido aos atentados, à época ainda recentes na Índia, os procedimentos de segurança e controlo nos aeroportos começavam antes mesmo de se entrar nos edifícios. Como tal, foi indispensável mostrar o bilhete aos polícias de serviço que, muito zelosos, davam passagem apenas aos passageiros. Assim o fiz, uma, duas, três vezes, tantas quantas as entradas até alcançar o balcão de check-in – estava encerrado. Faltava uma hora para a sua abertura. Pousei as coisas num banco e olhei em redor. Inspirava com profundidade, como se desejasse prolongar o tempo antes de regressar a ‘casa’. E peguei na bolsa dos documentos para reconfirmar os dados da viagem.
Teria sido muito interessante aceder às imagens que terão gravado a minha reacção ao olhar com olhos de ver o bilhete, naquela tarde de quatro de Setembro de 2012. Se antes conferira a hora dos voos, faltou confirmar um pormenor tudo-nada desprezível. A data do voo! A câmara de filmar terá captado um arregalar de olhos em cima do papel com a informação: data da viagem: três de Setembro de 2012! Um dia antes! Essa lente terá apreendido o tremor das mãos – o receptáculo de um espasmo interno que se consumava no movimento nervoso de uma delas a tapar a boca, como que para silenciar o choque sonoro das minhas vísceras em convulsão. Pelo menos fiquei a saber que não sofro do coração, caso contrário teria caído estatelada no chão com um enfarte do miocárdio. Tal era a corrente de electricidade de uma voltagem que me era desconhecida até àquele momento: quando terei dito – “Oh não!... devia ter ido ontem! Enganei-me!!!”
Estava um dia atrasada. Pegara no papel, mas só me detivera na hora... e o dia? Abanei, agitei a folha – os algarismos não se mexeram, tão-pouco se alteraram. A tinta era implacável: três de Setembro. Mas... não havia mas nem meio mas. A taquicardia avançava, avassalando a corrente sanguínea a uma velocidade que tinha tudo para provocar uma explosão na bomba que não cabia no meu peito.
Era fundamental que me acalmasse. Percorri o longo corredor do aeroporto doméstico de Pune, num torpor de emoções que se sucediam e manifestavam num caminhar lento e pesado, como quem pisa o chão para se assegurar que está acordada, com a esperança vã de que afinal seja apenas um pesadelo. Era com efeito um pesadelo, mas estava a vivê-lo na dimensão da realidade consciente.
Dez minutos. Dez minutos de anseios e receios apaziguados pelas lágrimas que escorriam numa avalanche. Um leito espesso e salgado que chegava aos lábios – desse modo ajudavam a superar a secura da boca.
Dez inspirações profundas “Como é que isto aconteceu?! Como é que isto aconteceu?! Como é que me enganei?!” Engolia em seco... não muito. As lágrimas continuavam a suprir essa necessidade líquida. Sentia-me consumida por uma vergonha ainda oculta, cavalgando sem freio pelo meu ser.
Dez inspirações profundas que decifravam as sirenes neurais: Calem-se! Chega! Calma! Pensa, pensa! O sol da tarde iluminava, resplandecente, uma meditadora apressada na constatação do seu erro inabalável. O comprimento de onda sem arquitectura visível, buscava uma fórmula mágica. Ao longe, os polícias que me tinham dado passagem, sintonizavam-me com o instante presente. O passado erróneo era um estranho a transpor. Nada a fazer. Como uma violenta rajada de vento, os vinte e um dias de monções desceram sobre mim: “O que é que eu posso fazer, agora? Tenho várias hipóteses: regressar ao resort e meditar mais quinze dias (ah,ah,ah), apanhar um autocarro para Mumbai e visitar o Raman...” Possibilidades que me surgiam, depois das tentativas em vão para corrigir o erro: o balcão da companhia aérea pela qual supostamente viajaria era um apêndice – a hospedeira de terra não podia fazer absolutamente nada. A senhora simpática não tinha como providenciar uma resolução para a embrulhada com que eu própria me presenteara. 
Voltei a entrar no aeroporto: não havia um único telefone público. Presumia-se que toda a gente tinha o seu telemóvel. O lusco-fusco não tardaria e eu chorava o parco saldo que não me permitia grandes chamadas telefónicas. Mas era imprescindível. 
     Telefonei aos meus pais; não sem antes libertar ainda que lenta, mas resignadamente, o susto que ainda circulava nas veias. “’Tou mãe? Tenho de ser rápida. Perdi o avião. Enganei-me, mas está tudo bem, não te preocupes. Preciso que me faças o favor de carregar o telemóvel. Estou a resolver a situação e ligo mais tarde...” Não sei onde encontrei o tom de voz sereno que escutava, tão-pouco a displicência para falar com a minha mãe e dizer-lhe que perdi a viagem de avião, como quem perde uma viagem de metro.
Eram dez da manhã em Portugal. Sentada no exterior do aeroporto, mirava o bilhete de avião à frente dos olhos, que entretanto amarrotei e escondi, tentando esquecer o inesquecível. Telefonei para a agência de viagens do Porto, onde adquirira a passagem para a Índia.
O senhor António atendeu ao fim de dez minutos. Dez minutos de inspirações profundas. E no avançar dos ponteiros do relógio, o senhor António retornou a chamada. O cartão visa é um instrumento senão milagroso, pelo menos elementar em determinadas circunstâncias. No seu escritório do Porto, o senhor António comprou a minha viagem de regresso desde Pune. E a hospedeira de terra teve então a sua oportunidade de se tornar prestável: imprimiu o email que gentilmente o agente de viagens do Porto enviou.
Horas depois limpava as feridas da vergonha no aeroporto de Mumbai. Se houvesse uma maca para uma posição cómoda, ter-me-ia estacado e apagado o tombo inexorável na minha conta bancária. Mas estava abrigada. A liberdade depositada num pé de meia (ainda que frágil) assegurou um regresso a casa nessa mesma noite. No dia seguinte aterrava no aeroporto Sá Carneiro. Avancei na minha história e as rodas da mala de viagem transportavam com leveza uma bagagem de experiências e livros. Os braços que me receberam foram compassivos e evitaram perguntas embaraçosas. Quem me traz a Primavera de Vivaldi, recolhe-me sempre.
Desde então pondero sempre acerca da compra das viagens de avião. Neste caso, decidira pela aquisição através de um balcão ‘físico’, no trato pessoal, materializado num rosto com nome. Só meses mais tarde compreendia o instante em que o meu calendário se inclinou silenciosamente para um espaço que só por sorte não me fez deslizar para outro pesadelo... ou sonho. É quase sempre uma questão de perspectiva.

15 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal


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