O último
tralho de ‘bicla’ aconteceu na quinta-feira passada (feriado). O desconforto
que acabei de sentir na coxa esquerda, devido a uma senhora nódoa negra,
lembrou-me do incidente ocorrido há três dias.
Os dedos
das mãos são insuficientes para contabilizar o número de ternos, tralhos,
tombos, trambolhões ou quedas – para utilizar um termo mais adequado – de
bicicleta.
Pedalava muito
satisfeita no passeadouro de gravilha, contemplando o mar muito azul e
alvoraçado de ondas espumosas, em Leça da Palmeira. O detalhe do piso em
gravilha detém a sua relevância nesta descrição. À parte da responsabilidade
inerente e total da ciclista, as mãos e coxas e mais certas partes do corpo
conheceram o chão escorregadio, precisamente pela natureza da via: a gravilha.
A música
nos ouvidos foi subitamente interrompida pelo som do resvalar dos pneus –
semanas antes inspeccionados e declarados carecas pelo pai; “são assim de
origem”, apaziguou o moço da loja, dias depois. Alcatrão. A matéria mais
apropriada para a bicicleta citadina em causa. Os cabos dos travões foram
remendados horas mais tarde, pelo pai, com uma fita adesiva preta muito lisa e
discreta. O cuidado paterno muito apreciado disfarçou a distracção com
consequências aquém do desastroso – calças pretas cheias de pó, luvas da mesma
cor esbranquiçadas pelo mesmo efeito e a senhora nódoa negra na coxa – essa
mesma que invocou o terno e provocou a esferográfica.
“Faz
parte” – em sorriso e com a música a ecoar novamente, após revista e ajuste do
volante – o qual se ressentiu, mudando, carrancudo de posição. “Faz parte” –
para um dos transeuntes que, como eu, desfrutava do final da manhã soalheiro e
morno à beira-mar. Como ele, outros a manifestar algum cuidado ao ver uma
pessoa estatelada no chão – ainda que por segundos.
A queda –
regresso à palavra, possivelmente, mais apropriada – deveu-se à mudança brusca
de direcção. Objectivo: sair do caminho de gravilha e ingressar na estrada.
Guinar o volante, ou guiador, uma vez que é de uma bicicleta que se trata,
resultou numa decisão pouco acertada – naquele instante a intenção era
aproveitar o semáforo verde que dava passagem aos peões, para então avançar
para estrada no sentido da casa paterna.
E lá fui,
respirando fundo e afirmando também para mim, “Faz parte!”. Como fazem parte do
historial de ‘pseudo-ciclista’ uma série de muitos outros ‘tralhos de bicla’.
Em 2000 adquiri
a primeira bike de BTT, muito vermelha
e muito vistosa por quem alguém se enamorou, no final de 2013. Aquela que em
vão procurei na Feira
da Vandoma. No decorrer desse início
de milénio, participei no campeonato nacional de BTT-Orientação e nessas andanças,
para além de desorientada
e perdida com frequência, também com relativa frequência o verbo cair se
concretizava de forma vívida. A queda que recordo desses tempos sucedeu numa
experiência sem igual: downhill numa
encosta nas redondezas de Chaves com os amigos do L – o amigo que sempre me
incentivou para essas lides.
Voei!
Literalmente. O pneu de trás ficou no ar e o da frente impulsionou-me num voo
directo para a rocha que improvisava um trilho, não sem antes realizar um looping pelo ar que quase me provocou o
vómito – talvez exagere. A inclinação do trilho era de tal forma graduada que
não arrisco um valor. Felizmente o capacete também faz parte da indumentária
sempre que saio com a bicicleta – hum... há uma ou outra excepção: quando vou
cortar o cabelo ao F.
O valor
do corte e, a bem da verdade, a vaidade, nesses dias ultrapassa o razoável, na
mesma proporção da redução dos níveis de segurança – os desejáveis para quem
pedala nas ruas de uma cidade, onde muitos automobilistas ainda não estão
sensibilizados para a onda de ciclistas urbanos que vai crescendo em vagas. Quem
sabe seja mais que uma moda e os responsáveis pela sinalização urbana aumentem
o número de ciclovias (se por acaso este texto for lido por alguma pessoa com
poder nessa matéria, aqui fica desde já o meu agradecimento antecipado por esse
mesmo aditamento). Apresento mais um argumento deveras relevante para que
aquelas excepções aconteçam e que é certamente bem compreendido por quase todos
os elementos do sexo feminino que se deslocam no máximo três vezes por ano ao
cabeleireiro – neste caso ao hairdesigner,
como reforça o F. Com uma ‘mise’ fresquinha quem quer amassar, assapar,
espalmar ou mesmo amarfanhar os cabelos muito lisos e muito bem penteados pelas
mãos glamorosas e criativas (às vezes demais...) do F?
Pese
embora o currículo de quedas seja vasto, existe uma quase queda que jamais esquecerei
(assumo o carácter definitivo desse advérbio). Não cheguei a conhecer a outra
margem do regato onde fui desembocar, após uma descida sempre a abrir numa
prova de BTT – uma competição de pares de Road
Book que realizei com o N, em Fevereiro de 2014. Um dos companheiros de
vida do L e que me desafiou a acompanhá-lo nessa prova, a qual decorreu nos
arrabaldes de Chaves. Nessa prova estreava uma bicicleta também muito atractiva
para outro alguém. Mas essa espécie de fuga não me instigou a nova investida
naquela feira das Fontainhas.
Guardo
aquele quase tralho nessa prova de BTT pela frase que o meu companheiro de
equipa proferiu. É de notar que ficámos muito bem classificados. Há que
ressalvar que o N é um robusto e espadaúdo atleta, com forte espírito de
equipa, ajudando-me em muitas fases ascendentes da prova – um simples toque na minha
zona lombar tinha o poder de me empurrar pelos trilhos de vegetação densa e
enlameada também – chovera na véspera. Um pormenor não despiciendo
para alguém longe
de ser ‘pró’, como eu. Muito menos agora, com esta bicicleta de cidade – um
belo espécimen, há que dizê-lo e que muito me tem auxiliado nas deslocações,
desde o natal do ano passado – o Pai
Natal continua a ser muito generoso para esta menina, mesmo que nem sempre
compreenda os seus representantes.
Quando,
naquela famigerada prova, descia sem freios e a uma velocidade que até a mim me
assustava, não tive a habilidade nem o discernimento necessários para efectuar
a curva no momento certo. De maneira que travei no último instante com a ajuda
de uma vedação fraca na sua função, mas suficiente para me segurar e evitar que
voasse para a outra margem do regato ou mesmo para as águas geladas de um
Fevereiro sempre invernoso. Com muita sorte disse apenas ao N, ainda aterrar do
susto: “Ufa... quase caía!”
- Da
próxima vez não tens de cair: salta! – ora aí está a sua resposta que fica para
os anais da minha existência. Uma frase que quase se tornou numa máxima de
vida: não há que cair, posso e escolho saltar. E quando de bicicleta, voltei a
estar prestes a conhecer o relevo e protuberâncias de mais um chão, observei-me
(nem sempre tranquila, confesso) na trajectória descendente, saltando.
Como é
óbvio, saltar não evita as mazelas, mas estas são aceites como ‘ossos do
ofício’ e, como é sabido, tudo passa. Todavia, se estiver consciente durante o
salto, estarei mais atenta aquando do contacto em terceiro ou quarto grau com o
solo, ainda que de forma, por vezes, dolorosa.
Desde
então, tenho escolhido saltar e do mais alto que me é possível – quem sabe um
dia até possa voar...
11 de Dezembro de 2016
Matosinhos, Portugal
Sem comentários:
Enviar um comentário