Entre Laranjas e Romãs*


 
O avô Alfredo era um artesão das árvores, um cirurgião das videiras, um artista da poda e, note-se, um criativo na arte do enxerto.
Ontem, ao fim de duas décadas após a sua partida, soube que o avô paterno tinha dotes que ultrapassavam a tradicional agricultura. A novidade, para mim, despontou enquanto a televisão transmitia uma reportagem sobre jovens e inovadores agricultores alentejanos, que se dedicam à produção da romã. Deixou de ser um fruto para poucos, para se tornar alvo de (re)invenções, contribuindo para o aumento das exportações portuguesas. Hectares e hectares de romãzeiras pintam as planuras alentejanas.
A cor rubra avivou memórias gustativas e visuais recentes: as pitaias com que me deliciei em Granada. Uma textura macia que se desfazia na boca extasiada – era um sabor doce, exótico e agradavelmente distinto de qualquer outro fruto. Enquanto revivia mentalmente essa lembrança do palato, o pai despertou-me com as recordações do seu pai.
O avô Alfredo. O avô Alfredo era um (re)inventor dos seus acres e pomares – talvez exagere na amplitude das suas terras, mas enquanto criança os meus olhos abarcavam a realidade com outras medidas. Salivava com as suas sopas de cavalo cansado. Um hectare era mais que muito. Uma imensidão, o salgueiro onde, com o avô Alfredo e a querida avó Altina, descasquei espigas de milho, ao mesmo tempo que me afastava, ligeira e com repulsa, das lesmas negras e viscosas que povoavam os carreiros para o regadio.
Ontem, o pai descrevia as artes do avô que, de forma compenetrada e mesmo artística, desferia enxertos nas videiras, experimentando novas castas para as vindimas seguintes. Infelizmente, o rigoroso calendário escolar (mais o rigor da minha mãe) nunca me autorizou a assistir, tão-pouco a participar na festa dos lagares em Nogueira do Cravo. Lagares mecânicos onde pés nus (mais ou menos olorosos, um pormenor que o álcool proveniente da fermentação dissiparia... acho eu) pisavam as uvas que chegavam em pesados cestos à adega. As portas de madeira de um azul celeste, desbotado pelos anos e pelo sol, são uma das recordações mais azuis da minha infância com os avós paternos.
A adega já não existe, muito menos esse lagar onde o pai ajudou o seu querido pai na produção vinhateira. A jeropiga do meu avô era soberba. Lembrou-nos ontem a mãe, de quem o paladar prefere vinhos mais leves ou derivações mais adocicadas. As castanhas cozidas na mesa, pacientemente descascadas pela tia Teresa, reavivaram a sua terna memória do avô Alfredo.
O gatilho para que as imagens de outros tempos fossem disparadas: as tais romãs, de várias qualidades, mais doces ou mais amargas. Um dos agricultores entrevistados revelava o truque para descascar com sucesso. Um golpe bem torneado no topo é o segredo para que as trezentas e sessenta e cinco sementes muito vermelhas facilmente se degustem – uma para cada dia do ano (não neste, que é bissexto). A aprendizagem não se ficou por aqui – nem sei se divulgue um detalhe que de imediato me mostrou a importância de ser cuidadosa nas próximas incursões a mercados de frutas. Um detalhe que colocou a minha fruta favorita – não a romã! – no patamar das rameiras. Um trocadilho forçado, mas foi a primeira palavra que assomou ao escutar a sabedoria paterna.
As laranjas – essas sim, as minhas predilectas de todas as frutas. As laranjas mais doces têm ascendente de romã. Romalaranja? Ramanja... Rameira – acabara de escutar a palavra romãzeira. É verdade, foi a palavra que me veio à cabeça: rameiras.... doces, as rameiras. Assim se podem explicar as experiências de hibridismo dos agricultores: laranjeiras enxertadas por rebentos de romã. Uma laranja com sabor a romã. Ou pelo menos adoçada pela romã e com uma forma distinta daquelas laranjas mais puras ou daquelas com umbigo. Aquelas que um amigo muito querido preferia: eram um sinal de um açúcar de qualidade.
O meu pai tinha ali mesmo na fruteira um espécime à mão para comprovar a sua teoria. Um espécime que rapidamente açambarquei: uma laranja com fundo manietado, resultado da enxertia romanesca, rameira... ok, de romãzeira. Uma rameira no meu bolso, ahahah... há quem diga que sou um (bocadinho) teimosa ou obstinada... Aquela rameira que neste momento descasco com uma navalha – exactamente como o avô Alfredo e tal qual o pai me ensinou a descascar: um corte para retirar o topo, outro para extrair o fundo (depende sempre da perspectiva, é sabido), seguidos de golpes consecutivos em forma de gomos, que se apartam fácil e eficientemente.
Sim senhor, a laranja é ela mesma uma obra de arte – não fica nada atrás das romãs – merecendo todo um ritual que hoje é ainda mais cuidadoso, não fosse esta laranja uma autêntica rameira, talvez alentejana...

13 de Novembro de 2016
Matosinhos, Portugal
*Este texto foi publicado no Jornal Chapinheiro

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