Presa no elevador




Fiquei ‘presa’ no elevador.
Em primeiro lugar, há que dizer em minha defesa, àquele que me perguntou num tom de acusação – “mas tu andas de elevador?! Eu subo e desço sempre a escadas... e moro no sexto andar” – que “Eu também, não sempre, mas quase sempre”. O carácter definitivo do ‘sempre’ é muito difícil de ultrapassar; o mesmo se aplica ao advérbio de predicado com valor temporal, ‘nunca’.
Ora, o apartamento onde vivo nestes meses fica no oitavo andar. É com muita frequência que subo os oito lances de escadas (ainda não contei os degraus) e raramente desço de elevador. Nem quando vou para a garagem (no piso menos 1), onde está estacionada a bicicleta, que me leva a quase todo o lado. Como não me levaria ao aeroporto na sexta-feira passada, telefonei para a agência de táxis na véspera. Teria de sair de casa às cinco da manhã. Assim sendo, nem de metro poderia deslocar-me para tomar o voo para Lisboa.
Neste assunto esbarro nas eventuais argumentações para desconstruir a quase delação do meu amigo, com quem converso acerca de temas como reduzir a pegada ecológica. Se é certo que opto pela força motriz e evito o uso do elevador, as contradições e discussões interiores não cessaram, porém, nesta matéria (como em muitas outras... ainda muito a aprender).
O valor da viagem aérea era inferior à do comboio e o tempo a gastar, teoricamente, também compensaria. Chegando ao início da manhã teria a oportunidade de estar com pelo menos duas das pessoas amigas que residem em Lisboa. Por sua vez, o regresso seria pouco depois das oito da noite; o voo atrasou de tal modo, que entrei em casa à meia-noite. O que significa que o jantar – reles e caro no terminal 2 (também reles) – no aeroporto ficou por minha conta. Por conseguinte, não apenas aumentei estupidamente a minha pegada ecológica (o meu eterno dilema para as viagens...), como acabei por gastar mais que o previsto. Pior, corri o risco de nem sequer chegar a tempo do voo matinal – fiquei presa no elevador: às cinco da manha!
Acrescento que respondi plácida e serenamente ao meu amigo que a descida de elevador àquela hora da manhã se justificava: o tempo naquela caixa em sentido descendente permitiria confirmar a imagem, ainda que pouco tratada, no espelho. Um argumento deveras aceitável, que sustenta sem dúvida a ‘necessidade’ de utilizar o meio de transporte que também está ali para me servir – quando necessário for.
Até aqui tudo bem, não fosse o caso do elevador parar, bloquear, suspender o seu movimento, antes de alcançar o meu destino: o piso zero.
Foi uma estreia não muito agradável: havia um voo para apanhar. Não é propriamente o género de veículo a quem podemos acenar, espere um bocadinho, senhor piloto, que estou a chegar. Tão-pouco há como apresentar desculpas a uma companhia do tipo baixo custo – que, mais uma vez confirmei, de baixo custo pouco tem (pelo menos nas minhas andanças). A tal companhia, assim como outras, até aceitam razões para cancelar ou alterar datas de viagem, mas por motivos de força muito maior. Sei perfeitamente que ficar detida num elevador não é absolutamente nada de especial, mesmo que seja às cinco da manhã.
De qualquer modo, as primeiras imagens que assomaram, quando o elevador teimoso não respondeu às minhas tentativas para prosseguir até ao zero, foram as cenas de filmes onde há um criminoso entre os reféns dentro de um elevador bloqueado, onde o ar começa a ficar saturado até à asfixia quase total (o final feliz é recorrente), ou onde não há ninguém no edifício, eventualmente devoluto. Se a imaginação logo disparou, a primeira coisa que fiz foi verificar os pauzinhos no telemóvel, aqueles que me informaram que sim, podia estar descansada em relação à necessidade de efectuar chamadas telefónicas. Menos mal, não fosse o caso de na empresa do ascensor não existir ninguém no outro lado da linha... não obstante a placa informativa ter a indicação do contacto possível vinte quatro horas por dia.
Era o dia em que tal não se verificava. Logo no dia em que eu decidira dar asas à vaidade e logo no dia em que me deslocaria com as asas de um engenho, cuja pegada ecológica me fazia sentir imensamente culpada – vá, naquele momento isso não me passava pela cabeça.
O corpo reagia de forma natural à situação: suores quentes e frios, alguns tremores. Até porque foram várias as tentativas em vão para a empresa de manutenção. O alarme foi a estratégia seguinte, os vizinhos que me desculpassem da hora, mas estava cada vez mais assustada; precisava de ajuda! Apesar do som soar tão alto como uma sirene do INEM – para os meus ouvidos, pelo menos – depreendi que tal impressão auditiva, não passasse disso mesmo. Nenhum vizinho dava o ar da sua graça! Sete pisos com pelo menos seis habitações e não surgia viva-alma... às cinco da manhã.
E se supunha estar muito fresquinha e arranjadinha à saída de casa para me deslocar para a capital, as gotas grossas de suor que escorriam sem pudor pelas costas e peito eram um pormenor do qual me desviava – em particular por serem a expressão de uma emoção que começava a roçar o medo – ou um pouco mais forte, como o pânico... nah, não chegou a tal, só estava presa num elevador... às cinco da manhã.
O ensaio seguinte foi telefonar para a agência de táxis. Um, dois, três, quatro, cinco toques: atenderam! A minha voz era já embargada, para não dizer aos soluços e até mesmo temperada de sal pelas lágrimas que não se seguraram ao escutar a voz do homem do outro lado. De maneira que para além de estar a suar, lá se ia a pintura no olho. Felizmente decidira reduzir esse pormenor ao usual – um risco preto na linha de água. Água essa que apagou o leve artifício. Aquando dos preparos hesitei na aplicação da máscara para as pestanas; dispensei. Uma opção que se veio a revelar acertada, pois naquela altura os olhos estariam seguramente negros e esborratados – qual madalena.
“Pode dizer ao senhor taxista que estou presa no elevador e pedir-lhe o favor de tocar à campainha de algum vizinho?” – uma das frases que consegui dizer à pessoa que, do outro lado, me tentava acalmar. É de notar que a simpatia alheia não se ficou por aqui. Entretanto soaram vozes no exterior: duas vizinhas e o taxista.
A sorte parecia começar. Fiquei a saber que estava muito perto do piso zero – uma informação seriamente relevante para o desenlace. Uma das vizinhas logo contactou a empresa. Alguém atendeu e assegurou que um funcionário chegaria em vinte minutos. Eram cinco e dez. A percepção dos dez minutos anteriores fora equivalente a um dia inteiro. Eram cinco e dez. O funcionário estaria, com muita sorte, em vinte minutos no prédio. O voo era às seis e vinte. E eu acabara de dizer ao senhor taxista que a porta de embarque fecharia às cinco e quarenta e cinco. Eram cinco e doze. Perguntava-me se os vinte minutos seriam efectivamente vinte minutos.
Por esta altura estava mais serena. O pior que poderia acontecer era perder o voo. De resto, as histórias que uma das vizinhas partilhava não eram nada animadoras – uma delas ficara presa duas vezes naquele mesmo elevador, o da direita. Acrescentava pormenores quanto aos truques e manhas do ascensor. O que me mostrava que não só não era nada de extraordinário ter tido a pouca sorte de ficar presa no elevador, como seria apenas uma questão de tempo para dali escapar. Ora, tempo era ‘coisa’ que naquela madrugada não abundava, para mim.
Quer dizer, até tinha tempo ir para Campanhã e apanhar um comboio. A reunião que me conduzia a Lisboa estava marcada para o início da tarde – como tal, nem sequer tinha justificação para usar das asas para voar, por mais que seja uma metáfora que muito me encante.
E sentada no chão, com as mãos a segurarem ora a cabeça, ora a boina castanha, ora o lenço que limpava o ranho e secava as últimas lágrimas, visualizava-me num filme de Hollywood com a diferença que era a vida real – uma das diferenças; presume-se, e bem, que o glamour não me assistia.
Abri a carteira e verifiquei a impressão do cartão de embarque. Um laivo de esperança. O fecho da porta de embarque afinal era às 5:55h e não às 5:45h. De qualquer modo, havia dito diversas vezes ao senhor Dinis - o taxista a quem entretanto perguntara o nome - para se ir embora. Não me parecia de todo possível que o avião esperasse por mim. O senhor Dinis não ia nada embora enquanto não chegasse o tal funcionário da empresa de manutenção. A senhora Susana – a vizinha que se mantinha de pedra e cal, continuava a apoiar-me, adicionando mais detalhes às suas experiências naquele mesmo elevador. Ao mesmo tempo que se lamentava dos “vizinhos que temos”. Foi o seu cachorro quem me salvou. Latia e latia. Não se calou enquanto a dona não reagiu ao alarme que soava há uma dezena de minutos.
Pela sua experiência, fiquei informada que podia ser muito fácil ou muito complicado resolver aquele incidente. Podia ser uma tarefa muito morosa e sujeita a cuidados acrescidos. O que aumentava a minha sensação de estar a viver num filme, de cujo argumento e desfecho era ignara. Saber da necessidade do elevador ser manuseado desde a casa das máquinas – no nono e último piso – de forma manual para que a caixa não caísse despencada até ao piso mais baixo... comigo lá dentro!, não me tranquilizava. Dali não podia saltar. A queda podia ser no entanto a única saída.
Ou então, podia ser um exercício muito fácil. Bastava que o funcionário usasse da chave-mestra do elevador e a porta abrisse ali mesmo, onde me encontrava. Funcionário que finalmente chegou. Eram 5:35h quando ouvi a vizinha dizer-lhe que estaria muito perto do piso zero.
E não é que estava mesmo? No minuto seguinte, a porta abria-se e três pessoas olhavam para mim, que ainda estava sentada no chão. Só teria de saltar de um metro de altura. E saltei! Saí do elevador, dei dois beijinhos à senhora Susana que, desgrenhada e de roupão, aceitou a minha forma de agradecer o seu cuidado e ajuda. E saí rapidamente com o senhor Dinis, um homem todo aprumado, de fato e gravata pretos, debaixo de um sobretudo da mesma cor - estava frio!
De Mercedes e na esgalha, o taxista deixou-me na zona das partidas do aeroporto às 5:50h! Num corre-corre do balcão do check-in – que afinal podia ter evitado, uma vez que o tinha realizado anteriormente no site da companhia – segui a correr para o corredor de controlo e segurança e refreei os movimentos. Havia que esperar pela minha vez. O bulício àquela hora continua a surpreender-me. Após proceder de acordo com aquelas normas de segurança – que continuam a aborrecer-me – voltei ao passo de corrida. De cinto na mão, com os casacos pendurados, lá cheguei ofegante à porta de embarque. Onde ainda esperei... vinte minutos.
Eram 6:25h quando o avião descolou comigo lá dentro, rumo à capital. Ah, Lisboa... O susto ficou lá atrás, quando do lugar da janela os olhos se arregalaram com o céu em metamorfose. O azul índigo ia sendo substituído pelo laranja e o amarelo dourado e outros azuis. A tela que vislumbrava do rectângulo aéreo promovia mais emoções, dessa feita de gratidão por ter oportunidade de contemplar o nascer do sol, a pelo menos dez mil metros de altitude. Agradecia o dia que havia começado com a percepção de estar rodeada de pessoas que teimam em ser generosas para pessoas desconhecidas...

15 de Dezembro, de 2016
Matosinhos, Portugal

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