Há palavras que
nos beijam. As de D. Mercedes, mãe do Marlon, o proprietário do hostal Marlons’ house em Arequipa, eram
notas de música de uma sinfonia harmoniosa. Palavras de amor, palavras de
esperança sopradas sem condições, tocando como quem abraça.
Fiquei uma
semana em Arequipa, a segunda maior cidade do Peru. O objectivo era visitar o Colca Canyon. De
entre as opções oferecidas pela Lily – a recepcionista simpática muito
prestável de Marlons’ house – o trekking
de três dias foi o que logo me cativou. Sobretudo pela extensão do percurso.
Os dias que
antecederam essa caminhada foram a calcorrear as ruas, a contemplar a grandiosa
basílica construída em silhar – uma verdadeira obra arte neo-renascentista com
influência gótica – e os três portais da cidade. Outras vezes deixava-me estar
por muito tempo sentada num dos raros bancos vagos da Praça de Armas. Este tipo
de praça é a mais importante de cada cidade ou vila, sendo geralmente habitada
por um dos heróis de guerra de libertação do domínio espanhol. Os bancos
estavam quase todos quase sempre ocupados por locais ou turistas observando as
crianças atrás dos pombos, depois de lhes atirarem o milho comprado a um dos
muitos vendedores ambulantes da praça. Havia mais do que um fotógrafo atento, para
quem quisesse guardar uma memória materializada de uma brincadeira, de um beijo
ou um abraço.
Passei muitas
horas no hostal do Marlon, assistindo
às aulas de escrita por skype,
desenvolvendo os respectivos trabalhos de casa e conversando com Jeff: um
fotógrafo e guia americano que passava o dia em frente ao computador e a fumar
cigarro atrás de cigarro. Escutar o Jeff era sinónimo de uma boa gargalhada.
Percebi que organizava viagens personalizadas e de longa duração para uma ou
duas pessoas – basicamente para gente com muito dinheiro.
Mesmo que em
certos momentos duvidasse da veracidade das suas histórias, o seu modo de
contar era delicioso, muito divertido e repleto de pormenores bizarros que
temperavam as narrativas com perfeição. A sua presença quase contínua na sala
de jantar da casa do Marlon – nunca o vi sair do alojamento – permitia-lhe,
igualmente, observar os demais hóspedes, entre os quais um jovem de Toronto.
A voz rouca e o
rosto enrugado de sessenta anos com muitas aventuras tornavam o seu discurso
ainda mais eloquente. As minhas lágrimas não se contiveram quando Jeff
descreveu detalhadamente o quotidiano do canadiano de vinte e um anos em
Arequipa. Pouco saíra do quarto privado durante as já três semanas (!) que aí
permanecia alojado. Só vi o rapaz duas vezes. Estava sentado à porta do seu
quarto com um gorro andino enfiado na cabeça. Estava adoentado: informou-me
Jeff. A sua mãe autorizou-o a viajar durante um ano pela América Latina. Sem
experiência, o jovem não fazia a mínima ideia de como viajar. Aplicava-se bem a
esta pessoa o ditado: “deus dá nozes a quem não tem dentes”.
As suas três
semanas foram muito diversificadas, entre tomar o pequeno-almoço (incluído nos
menos de seis euros por noite e muito bom por sinal: muita fruta, pão fresco
com queijo, manteiga, fiambre ou doce, acompanhado de sumo de fruta natural e
café, leite e/ou chá), jogar computador e sentar-se alguns minutos à porta do
quarto, saía de vez em quando para comprar comida; pouco mais sabia como
passar o tempo. Todavia, fez algo mais: tornou o seu quarto mais aconchegado:
comprou mobília! Uma secretária e uma cadeira de rodas de assento recostável.
Imaginávamos o rapaz a fazer corridas contra si próprio no quarto – ainda que pouco
espaçoso – durante os intervalos dos jogos online
e quem sabe a bater com a cabeça na parede por perder dinheiro na jogatana: o
uso que consignámos ao gorro de lã pouco prático para as temperaturas cálidas
de Arequipa.
O seu portátil
de quinze polegadas não era suficiente para aprender a ler mapas: a sugestão que
Jeff lhe dera, uma vez que teria a intenção de planear a viagem até à
Patagónia. ‘A blind leading a blind’
– o mapa que o americano entre risos disse ter-lhe proposto.
A D. Mercedes
foi outra pessoa que me encantou com a sua voz serena. Enquanto lavávamos roupa
no terraço, a senhora descrevia-me Nazca. Com muita pena não tive tempo para
aceitar e desfrutar do seu convite gentil. D. Mercedes era de lá e sei que
serei recebida de braços abertos no dia em que regressar ao Peru para sobrevoar
as linhas de Nazca. Por ora, vou resgatando as memórias em sorriso. Quem sabe
um dia destes surja uma nova oportunidade para voltar e assim visitar Guilherme, o
dono do restaurante vegetariano Mandala, onde fiz grande parte das refeições enquanto
na cidade.
Dezembro, 2015
Matosinhos, Portugal
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